Sobras de um amor…

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         – Boa noite flâneur ou deveria dizer andarilho do bem?

Márcio estava distraído quando ouviu uma voz fazendo esse misto de observação com pergunta, mas ficou sem saber de onde vinha. Apenas sabia que a voz era de Amadeu. Ao vê-lo, fez aquela cara de quem não estava entendendo nada de nada. Principalmente aquela expressão que o bêbado usou, parece ser em outra língua. Mas resolveu deixar passar, já queria mesmo conversar com ele.

– Novidade o moço estar por aqui domingo à noite. Não tem namorada, não tem mulher, não tem ninguém para chamar de seu? Acho que nem o seu pênis te quer, pois ao invés de ficar aqui enchendo a cara, deveria estar em casa se masturbando, pensando na gostosona que te assombra toda noite.

O jornalista ficou com vontade de esmurrar Amadeu por conta daquela absurda observação, mas ao mesmo tempo invasiva. Porém, pensou bem e entendeu que o seu interlocutor poderia estar em estágio alucinatório, então o melhor era deixar o assunto para outra hora.

– Mas vamos lá meu camarada! Diga-me como foi o seu domingo? Pela sua cara, deve ter sido uma bosta, para terminá-lo aqui conversando comigo e tendo como amiga essa garrafa! Só pode ter sido horrível. Seus olhos me inspiram piedade, mas como não sou religioso, quero que você e sua vida desgraçada vão para o inferno!

– O que é isso, meu caro Amadeu? Estou aqui de boa para conversar com você e só recebo pedradas!? Só voltei aqui para continuarmos a entrevista que começamos e preciso dar sequência no trabalho que foi publicado hoje.

– E a propósito, o material que você publicou hoje é de quinta categoria. Horrível! Você não sabe escrever! Não sabe encantar! Não usa as palavras como elas deveriam, por isso não inebriam seus leitores. Você é um derrotado! A escrita não é para ser crucificada como o senhor fez hoje naquele texto mequetrefe. Cristo já morreu na cruz, inclusive para salvar a escrita. Não precisaria ser crucificado novamente a cada parágrafo que você escreveu e publicou hoje. Estou envergonhado da sua escrita! Suas enunciações estavam tão horríveis que eu não forraria as gaiolas dos meus pássaros com aquela porcaria que você chama de matéria.

– O que está errado na matéria?

– Tudo! Começando por quem a escreveu. Não sabe onde está o próprio nariz. Em que faculdade você fez sua graduação? Lá não te ensinaram a não maltratar a Língua Portuguesa?

Quando Márcio ia começar a responder as perguntas formuladas por Amadeu, este foi taxativo: “- Deixa pra lá! Não precisa responder nada! Pelo seu texto deve ter comprado o diploma ou colado nas provas! Isso é bem típico de embusteiros que acham que sabem alguma coisa. Jornalista tem essa ideia de que sabe de tudo, analisa tudo, mas no fundo é um mero reprodutor de casos da vida alheia que gostam de chamar de matéria!”.

Como a garrafa de uísque já estava sobre a mesa, Amadeu encheu o copo e virou a primeira dose de uma vez só. Depois pediu gelo e colocou a segunda dose e esperou um pouco. Depois pediu água de coco para Rodolfo. Ao receber o que pediu, despejou no copo o líquido e olhando bem nos olhos do repórter lhe disse: “- O que quer saber?”

– Tudo! Sua história. Você começou a contar de uma moça que vendia livros e te espionava no supermercado onde você trabalhava. Depois foi você quem começou a ficar no mesmo lugar esperando ela passar, indo até o lançamento dum livro e no final do evento, levou ela para casa.

– Foi isso daí mesmo. Aquela noite foi maravilhosa, a não ser que foi uma quase noite, pois nunca terminou. Até hoje eu quero compreender porque nunca acaba. Fico sempre vendo a mesma cena.

– Qual cena?

– Nenhuma! Vamos mudar de assunto. Choveu muito essa manhã. O senhor viu? Eu vi a enxurrada arrastando carros com gente dentro, caindo no bueiro. Crianças pedindo socorro e jacarés com faca e garfo prontos para degustarem um lauto almoço. Vi tanta gente assim que os jacarés puderam estocar comida para a semana inteira, como os seres humanos fazem, achando que amanhã não haverá alimento. Pode até ser que nem mundo haverá, mas por que sofrer com antecedência?

Assim que terminou de falar, Amadeu olhou para o relógio. Levantou-se e pegou a garrafa de uísque e já ia saindo, quando Márcio fez menção de segurá-lo, lhe dizendo.

– Falemos de outra coisa então, caso essa noite que nunca acabou te incomoda tanto.

Conversaram sobre tudo um pouco e quando Márcio preparava para voltar ao assunto das alucinações e da noite que nunca termina, Amadeu lhe disse: “- O moço vai me dar licença, mas já estou atrasado. Qualquer dia desses voltamos a conversar sobre isso. Agora quero ver se aquela noite já terminou!”

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