Reflexões sociais

Leitura. Quando abrimos um livro, qual é a expectativa que colocamos naquele objeto ainda retangular, adquirido, emprestado ou alugado? Conforme o escritor francês Marcel Proust (1871-1922), a leitura abre-nos portas, cujas ações são proporcionadas por essa significativa atitude (Sobre a leitura). Portanto, neste momento em que os educadores têm uma árdua batalha para fazer com que o Brasil seja um país de leitores, me parece que os aforismas que seguem são importantes, pois objetiva auxiliar os interessados em ter momentos aprazíveis em companhia de obras literárias, sociológicas, diários, enfim, enunciações que permitam aos cidadãos buscar novos focos para suas visões de mundo.

 

Mundo. Outro dia me perguntaram por que, entre tantos cursos superiores, optei por fazer Ciências Sociais? Respondi que eu as escolhi porque acreditava – ainda creio – que elas poderiam me ajudar a moldar o jeito como compreendia o mundo. Minhas opções não foram escudadas na ideia de querer mudar o planeta. Isso é impossível, pois essas alterações só são possíveis de acontecer através dos fluxos históricos e acontecimentos que, ao longo da escala temporal, modificam as formas de ser e agir do ser humano. Portanto, o meu escopo foi sempre tentar compreender como me comportaria diante dessas constantes alterações.

 

Escravidão. Em quais livros e romances é possível encontrar referenciais significativos sobre a escravidão, período trágico da construção do Brasil? Ficaria vários dias da semana listando aqui a quantidade de obras que relatam os trezentos anos de aviltamento de um ser humano pelo outro que era tratado como mercadoria a ser utilizada até sua exaustão e depois sacrificada, deixada às margens do processo produtivo, como aconteceu após a Abolição, cuja lei foi publicada na manhã de sábado, 13 de maio de 1888, nos principais jornais da Corte luso-brasileira e das demais províncias.

 

Cachaça. Achei interessante um artigo que o professor de Filosofia da UFRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Denis Lerrer Rosenfield publicou no jornal Folha de S. Paulo, em sua edição do dia 21 de fevereiro de 2005 com o título Cachaça e escravidão. Segundo ele, “foi necessário um longo e laborioso trabalho de formação da opinião pública para que as cadeias da escravidão fossem abolidas, embora os seus efeitos se façam sentir até hoje, numa espécie de dívida não paga. Contudo alguns perseveram numa estranha desatenção para com a escravidão dos negros, como se ela não chocasse e fizesse parte, por assim dizer, do nosso próprio senso comum”.

 

Narrativas. Todos os brasileiros têm lá suas narrativas relacionadas à momentos em que vivenciaram, assistiram situações em que um afro-brasileiro foi vilipendiado, sofreu cusparada por ter a tonalidade da pele mais escura, cuja cor é confundida com condição de seus ancestrais, ou seja, negra. Ninguém é “negro” ou “negra”, mas pode estar numa condição assim quando não tem trabalho e as contas vencendo com os códigos de barras perseguindo-os diariamente. Sendo assim, creio que é preciso uma discussão semântica sobre o racismo brasileiro, começando por eliminar a expressão “negra”, conforme já aventei em outro lugar, num artigo nomeado como “Negra era a noite”.

 

Imitação. Se a arte imita a vida, ou o seu contrário, será que as enunciações contidas no romance Clara dos Anjos, de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), tem consentâneo no existir material da vida ativa na sociedade brasileira? Na enunciação, o autor lega aos seus leitores a história do relacionamento entre a protagonista, uma negra com Cassi Jones, branco, mimado pela mãe, que continua estimulando seu bovarismo, achando-se pertencente a elite carioca, contudo, não passa de uma integrante da classe média baixa, caso a transpuséssemos para o século XXI e Clara, uma suburbana que descende de escravos. Claro que o idílio entre os dois não poderia fluir e ainda tem uma gravidez no meio do conflito sentimental.

 

Escritores. Como todos sabem, Lima Barreto, tem uma longa história na literatura brasileira, justamente pela sua condição étnica num momento em que o país já não estava mais sob o julgo da escravidão, mas ainda, conforme nos recorda o trecho que destaquei da crônica publicada pelo professor de filosofia da UFRS em 2005, estava sob o domínio daquelas tratativas escravistas, evidenciando que o decreto imperial de 1888, apenas concedeu os direitos civis aos pretos, sem dar-lhes condições de se tornarem cidadãos de fato, seguindo os preceitos contidos nos direitos sociais e políticos. Desta forma, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma pode transpor para as suas linhas, o que “sentia na pele”, como se diz no jargão popular, todo preconceito que Clara dos Anjos e seus familiares enfrentavam nas primeiras décadas do século XX, num país republicano que não se livrou dos visgos monárquicos e dos privilégios concedidos à uma corte aristocratizada até a medula.

 

Protagonista. O que dizer então da primeira escritora afro-brasileira? Alguém já percorreu o romance Úrsula, confeccionado por Maria Firmina dos Reis (1822-1917), cuja primeira edição foi publicada em 1859? Interessante notar que se trabalha muito com Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), um pouco de João da Cruz e Souza (1861-1898), contudo não se tem muitas avaliações sobre essa enunciação maranhense. Por um lado, significa que a mulher não tinha voz no século XIX e as que tinham, poderiam ter o mesmo destino de Capitu, personagem principal da narrativa machadiana Dom Casmurro? Creio que o trabalho e a própria Maria Firmina dos Reis merecem mais destaque, assim como o advogado Luís Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882).

 

Contemporâneo. Se, em Clara dos Anjos temos o relacionamento conflituoso entre uma afro-brasileira que engravida dum playboy carioca mimado pela mãe que desenvolve ao extremo o seu bovarismo, em Bandeira negra, amor, romance publicado em 2005 pelo jornalista carioca Fernando Molica, a situação é outra, contudo, o enfoque é o amor entre um advogado preto e uma oficial branca da PM. As idas e vindas do casal são marcadas pelo desaparecimento de cinco adolescentes pretos que foram vistos pela última vez entrando numa viatura da Polícia Militar. Os jovens são encontrados mortos com sinais de tortura praticada pelos seus assassinos.

Artigo. Publiquei, na revista do LEVS (Laboratório de Estudos sobre Violência e Segurança) da Unesp-campus de Marília, artigo em que enfoquei a questão da violência policial praticada contra as populações carentes da sociedade brasileira, sobretudo daquelas que descendem de escravos. Recentemente, a querela toda veio à tona no Estado de São Paulo quando duas situações esdruxulas foram expostas pela mídia: a primeira diz respeito às ofensas recebidas por dois PM durante o trabalho quando atendiam uma ocorrência de violência doméstica. Todos viram como o casal de PMs foi recebido pelo marido agressor. No segundo momento, um grupo de PMs espanca um homem numa viela de um dos bairros pobres da Zona Norte da capital paulista. As duas cenas são dantescas, mas evidenciam aquilo que Molica quis apresentar em sua obra ficcional.

 

Feminismo. Ainda dentro da temática envolvendo as relações raciais no Brasil pós-escravidão, há o trabalho da filosofa preta Djamila Ribeira: Quem tem medo do feminismo negro? O livro é formado por uma série de artigos que a paulista publicou em vários jornais, revistas e órgãos midiáticos, nos quais expõe o conteúdo de sua dinâmica profissional: a luta pelo fim das correntes que atrelam as mulheres pretas ao universo escravagista brasileiro. A escritora tem ainda um outro livro de significativo conteúdo: Pequeno manual antirracista. Entendo, meus caros leitores, que vale a pena percorrer as páginas desses dois livros e os romances citados acima, bem como os livros de José Martiniano de Alencar (1829-1877) O tronco do ipê e Til.

 

 

“Na minha pele”. Ainda na linha das narrativas sobre o universo racial brasileiro, tem o magistral livro Na minha pele, do ator global Lázaro Ramos. Uma excelente enunciação na primeira pessoa, confeccionada por uma personalidade de grande envergadura que trabalha, até onde se sabe, na maior empresa midiática do Brasil que, durante muito tempo ditou modas e comportamentos sociais com suas telenovelas, séries e jornalismos. Nessa obra, o autor nos lega importantes depoimentos de como é ser preto numa sociedade excludente como a nossa, com fortes heranças escravagistas em que muitos brancos, para se esquivarem de situações complicadas, costumam dizer: “eu até tenho um amigo negro!” Será que não seria mais simples dizer que tem amigos? Por que tem que adjetivá-los com esse marcador social que não indica o ser em si, mas a sua condição?

 

Olhos. Por fim, para fugir um pouco desses localismos sobre a questão étnico e racial no Brasil, sugiro aos meus leitores, dar uma passadinha pelas páginas que formam o livro O olho mais azul, da escritora norte-americana Tony Morrison (1931-2019). No romance, cuja leitura é recomendada pelo ex-presidente dos EUA, Barack Obama, não tem como ficar ausente das histórias que ela conta sob o olhar de uma adolescente afro-americana. Há também outra enunciação, da também norte-americana Maya Angelou (1928-2014): Eu sei por que o pássaro canta na gaiola. São enredos que fazem com que o leitor, independentemente de suas raízes étnico-culturais repensem suas ações em relação ao “outro”. E-mail gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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