ISABELA CRUZ APRIL 18, 2020
Na quinta-feira (16), dia da demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde, um dos momentos mais tensos do governo durante a pandemia do novo coronavírus, Jair Bolsonaro atacou de forma direta o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em entrevista concedida à CNN Brasil já à noite.
“Parece que a intenção é me tirar do governo. Quero crer que eu esteja equivocado […]. Qual o objetivo do senhor Rodrigo Maia? Ele quer atacar o governo federal, enfiar a faca […]. Está conduzindo o país para o caos”
Nesta sexta-feira (17), a coluna Painel, do jornal Folha de S.Paulo, afirmou que o presidente disse nos bastidores a parlamentares que Maia, em conjunto com o Supremo Tribunal Federal e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), estaria articulando plano de golpe contra ele. À noite, Bolsonaro negou que tenha feito isso.
Maia acusou Bolsonaro de tentar uma manobra diversionista. “O presidente ataca como um velho truque da política. Quando você tem uma notícia ruim como foi a demissão do Mandetta, você cria outro fato”, afirmou o deputado. Mandetta é filiado ao DEM, mesmo partido do presidente da Câmara.
O contexto do novo confronto
Maia liderou a aprovação na Câmara de um projeto de lei complementar que obriga a União a socorrer financeiramente estados e municípios por seis meses, de forma a compensar a perda de arrecadação causada pela paralisação econômica. O texto ainda será votado pelo Senado, onde deve sofrer alterações. Na terça-feira (14), o governo apresentou uma proposta alternativa.
Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, o projeto, que compromete aproximadamente R$ 90 bilhões federais em prol de gestões estaduais e municipais, deve ser vetado por Bolsonaro.
O governo federal teme também que governadores e prefeitos prolonguem as determinações de isolamento social, o que agravaria a perda tributária e, consequentemente, ampliaria as despesas de socorro realizadas pela União e ensejaria disputas judiciais entre os entes federativos.
A oposição política entre Maia e Bolsonaro acontece desde os primeiros meses do governo. Maia foi quem assumiu o protagonismo na condução da reforma da Previdência, principal projeto econômico do governo em 2019, mas em diversos momentos criticou falas e atitudes mais agressivas do presidente da República, especialmente em relação a questões de cultura, costumes e relações internacionais.
“Bolsonaro é produto dos nossos erros. Onde nós erramos? Deputado sem partido, escanteado por todos, resultado do ciclo dos últimos anos”
presidente da Câmara dos Deputados, em evento privado no dia 8 de agosto de 2019
O conflito entre os dois se tornou aberto quando, em fevereiro de 2020, o presidente apoiou explicitamente a convocação de manifestações públicas contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal federal, marcadas para 15 de março. Os protestos foram ativados pela briga entre Executivo e Legislativo pelo controle de R$ 30 bilhões do Orçamento federal. Bolsonaro foi pessoalmente ao protesto, mesmo contra a orientação do Ministério da Saúde – que pedia para a população evitar aglomerações – e estando sob suspeita de ter sido contaminado pelo novo coronavírus.
Duas análises sobre os ataques de Bolsonaro
O Nexo conversou com dois cientistas políticos sobre as motivações de Bolsonaro ao atacar Maia neste momento. São eles:
- Octavio Amorim Netoé doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia e professor da faculdade de administração pública da FGV-Rio;
- Luciana Fernandes Veigaé doutora em ciência política pelo Iuperj e coordenadora da pós-graduação em ciência política da Unirio
Por que Bolsonaro partiu para o ataque a Maia agora?
Octavio Amorim Neto
Esse tipo de ataque é padrão neste governo, que se apóia na ideia de antipolítica. A escalada observada no momento, porém, se deve à extrema gravidade da situação atual, não apenas para Bolsonaro, mas para o país e para o mundo. Nessas situações, os políticos têm que se adaptar rapidamente, têm que inovar rapidamente. No entanto, Bolsonaro não consegue mudar seu estilo de governar e continua isolado político.
Assim, ele sabe que, com muitos mortos e uma recessão econômica profunda, seu mandato vai balançar. Há um real risco de ele ser prematuramente retirado do Palácio do Planalto, ou ser forçado pelas circunstâncias a sair. Ele está, portanto, se antecipando a uma eventual queda de popularidade, por conta desses indicadores. Para tanto, mais uma vez cria a figura de um inimigo em comum para mobilizar a opinião pública de extrema direita que o apoia e que continua a ter um tamanho expressivo. Apesar de tudo, Bolsonaro continua aproximadamente com 1/3 de apoio do eleitorado, segundo as pesquisas.
O direcionamento dos ataque a Rodrigo Maia se deve ao fato de ele ser o grande líder desse esforço de se fazer uma transferência enorme de recursos da União para os estados por conta da paralisia da atividade econômica e da queda de arrecadação do ICMS. Além disso, caberia a Rodrigo Maia aceitar, monocraticamente, a abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro. O presidente da Câmara tem esse poder unilateral enorme. E Bolsonaro quer constranger o máximo possível Rodrigo Maia a não usar esse poder. Ele sempre jogou por meio dessa estratégia de constrangimento, ainda que com alguma modulação.
Luciana Fernandes Veiga
Com a pandemia, o governo já está há mais de um mês sem conseguir apresentar uma agenda positiva que defenda o seu governo. O eleitorado bolsonarista está sem material novo para defender o presidente, que, então, precisa criar novas pautas.
Nessa linha, Maia é um alvo porque tem expressividade e visibilidade, até pela força de seu partido, o DEM. Ele já está há tempos na política e teve muita projeção entre o eleitorado de centro-direita, com a aprovação da reforma da Previdência e a compra da agenda neoliberal. E isso preocupa Bolsonaro, que também disputa esse eleitorado de centro-direita e não pode ver partidos como DEM e PSDB fortalecidos.
Além disso, a avaliação de Bolsonaro é a pior dos últimos tempos, em termos comparativos não só com o passado dele próprio, mas com outros atores da cena política, incluindo o ministro Mandetta, governadores e prefeitos. Ele está abaixo da média. Pela pesquisa encomendada pela XP [Investimentos], por exemplo, ele tem 28% de avaliações positivas, enquanto esse índice é de 44% para os governadores. Por outro lado, o Congresso Nacional conseguiu diminuir suas avaliações negativas de 44% para 32%, em apenas um mês.
Isso representa uma situação de ameaça porque destrói inclusive a narrativa que sustenta seu governo, segundo a qual ele é o protagonista, e os antagonistas são as instituições e os partidos tradicionais. As narrativas de Bolsonaro, desde as eleições, sempre passaram por essa ideia de antagonistas que o impedem, como protagonista, de realizar o que se propôs a fazer. Faz parte da composição da personalidade dele. É nessa lógica que ele sempre ataca pessoas e instituições do establishment que passam a assumir qualquer protagonismo. Bolsonaro faz isso para ao menos segurar seu eleitorado mais fiel, para o qual é familiar a ideia de associar Maia à política velha.
Quais podem ser as consequências desse novo choque?
Octavio Amorim Neto
Esse choque enfraquece a capacidade do Estado brasileiro de combater a pandemia. É uma regra de ouro da política: em situação de guerra, é necessária a união nacional. No Brasil, isso não está acontecendo. O consenso político ajudaria enormemente na disciplina social necessária para se implementar a política de confinamento. No Brasil, como se observa, a disciplina social tem decaído nas últimas semanas.
Além da pandemia e da recessão econômica, no Brasil e no mundo, poderemos ter uma clássica crise política que frequentemente atinge a Presidência da República no Brasil. Todos os países do mundo estão sendo afetados pela pandemia e pela recessão. Mas ter uma crise política gravíssima, pelo menos no contexto dos maiores países do mundo, só o Brasil. Em outros países, ou o presidente já tem a maioria parlamentar, como no México, ou há um clima de união nacional, de colaboração, como na Argentina e em Portugal.
O processo legislativo também vai ser afetado. Tudo indica que Maia tem uma maioria para eventualmente sobrestar vetos feitos pelo Bolsonaro e não aprovar medidas provisórias editadas pelo Palácio do Planalto. Por outro lado, há setores do governo que dialogam muito bem com o resto das instituições políticas. Essa boa relação pode segurar um pouco as consequências negativas desses discursos muito duros que Bolsonaro faz a instituições e pessoas. É isso, aliás, que tem permitido ao Brasil funcionar.
Luciana Fernandes Veiga
Claro que esses ataques todos, recorrentes, podem representar um desgaste das relações, mas me parece que o Rodrigo Maia tem uma capacidade muito grande de absorver, racionalizar e atenuar os ataques que recebe. Com isso, não vejo Maia revidando e deixando de aprovar medidas provisórias em resposta a Bolsonaro. Se medidas não forem aprovadas, será mais por convicção do Congresso Nacional do que por revanche.
No campo da saúde, o Congresso tem fortes incentivos para manter os posicionamentos que já estava adotando. São eles que estavam sendo aprovados pela população no geral, não a atitude do presidente Bolsonaro. É inclusive uma oportunidade de o Congresso dar a volta por cima, tal como os resultados de popularidade já estão mostrando.
Depois desses ataques a Maia, Bolsonaro ainda tem margem para superar seu próprio isolamento político?
Octavio Amorim Neto
Se ele mudasse e entendesse que não dá mais para governar da forma que governou em 2019, ele estaria com a popularidade muito alta agora. A popularidade de quase todos os governantes do mundo cresceu quando tomaram medidas duras de combate à pandemia. Esse aumento de popularidade que Doria e Witzel experimentaram também teria sido experimentado por Bolsonaro.
O problema é que a lógica subjacente a um esforço de pacificação nacional, de conciliação em nome do combate à pandemia, é anátema à natureza do bolsonarismo. O bolsonarismo veio em nome da antipolítica, da antiesquerda e da anti-instituições. Fazer um governo de união nacional é o oposto de tudo isso. É reconhecer a legitimidade do Congresso, da esquerda, dos partidos e das grandes burocracias públicas, como o SUS, os órgãos científicos, as grandes universidades.
Então Bolsonaro aposta, mais uma vez, em uma estratégia extremamente arriscada, de criticar o isolamento e tentar transferir toda a responsabilidade pelos custos do esforço de combate à pandemia aos governadores e ao Congresso. Seu êxito dependerá, porém, de algo trágico, que é a contagem de corpos. Se o número de mortos no Brasil não for tão grande quanto o de países que têm sido duramente afetados, Bolsonaro pode sair dessa crise como vitorioso. Se o número for alto, ele pode ficar sujeito a pressões para renunciar ou mesmo à abertura de um processo de impeachment. É uma aposta muito arriscada.
Luciana Fernandes Veiga
Eu não vejo como um ponto de ruptura. É muito mais um conflito pontual ativado do que uma realidade que afetará definitivamente o relacionamento entre os Poderes.
O foco de Bolsonaro é manter seu eleitorado de 28, 30%. E o eleitor julga o governo baseado em dois aspectos: avaliação e responsabilização. Isto é, um eleitor pode avaliar os resultados da gestão como negativos, mas não responsabilizar o governo por eles.
E Bolsonaro tem agido nesses dois vetores. Quanto à avaliação, ele defende o enfrentamento da pandemia com base na lógica liberal que o elegeu. Ele não foi eleito com base em uma agenda de bem estar social. Quanto à responsabilização, Bolsonaro ajusta sua comunicação ao déficit de insatisfação e responsabiliza outras pessoas. Ele vai dizer que a crise econômica é culpa dos governadores e do Supremo Tribunal Federal, que o impediram de reabrir o comércio, mas também de Rodrigo Maia, que obrigou a União a aumentar seus gastos. E essa narrativa agrada ao seu eleitorado, são noções familiares ao bolsonarismo.
Disponível no site https://outline.com/qyyuhb (Acessado no dia 18/04/2020 às 23h50)