Gilberto Barbosa dos Santos
Depois de um carnaval que não houve – a pandemia não deixou que o reinado de Momo se concretizasse nesse primeiro ano da terceira década do Terceiro Milênio -, vou direto ao ponto meus caros leitores que não puderam usar as máscaras de foliões nos dias que se passaram – se forem conscientes, utilizaram aquelas que protegem todos contra o vírus -, de onde vêm as periferias, os morros e as palafitas que se espalham pelo Brasil afora? Antes de mais nada, é interessante começarem a pensar sobre a ideia contida no termo periferia, centro, às margens, ou seja, que margeiam e porque assim se colocam. O periférico é muito simples: aquilo que se afasta do centro e aqui, para fins meramente discursivos ou coisa parecida, é possível analisar uma cidade e sua forma constitutiva. Um município se constrói a partir de suas margens, da periferia ou de uma área delimitada como ponto de partida que passa a ser o centro? Imaginemos, eu e você, leitor semanal, um castelo e as construções em torno dele. Quem residiria próximo as dependências do governo monárquico e por quê? Parece-me que essa interpelação não propõe apenas um exercício de eloquência, mas sobretudo um querer refletir sobre o mundo herdado e o que será legado às gerações futuras.
A exemplo do que aconteceu com o texto da semana passada, espero que este também tenha um nível de aceitação plausível, indicando que o que escrevo possa ter, de alguma forma, contribuído para que aquele que leu, ajudando-o a compreender dentro de si o que é ação e o que é reação. Aquilo que é de fato e o que é meramente um reflexo da fonte emissora. Sendo assim, só se é possível pensar um mundo diferente do que temos espalhado por aí, longe dessas linhas, se o sujeito singular for capaz de distinguir o que ele é, ou seja, a sua essência do que a sociedade tenta fazer dele. Muitas vezes os vícios sociais são mais fortes do que as virtudes humanas. Por que será que o imoral tem mais poder do que o indivíduo que prima pelos preceitos éticos e morais de conduta em sociedade, principalmente aqueles que dizem que a vida alheia não deveria ter apreço algum pelos seus semelhantes, exceto se estes assim desejarem e expor a problemática? Interpelando-vos de outra forma: por que num mundo em que se fala em igualdade, liberdade e fraternidade, os homens desejam aprisionar outros? Por que querem dizer como pessoas pertencentes a gêneros diferentes devem se comportar? Como podem ver, meus caros leitores, ainda nem chegamos no início da querela envolvendo centro e periferia e já há elementos, creio eu, para ficarmos dialogando uns bons pares de dia, justamente porque cada um conta a sua versão dos fatos a partir do próprio berço, ou melhor, da educação que recebeu em casa e da convivência com seus parentes, principalmente durante as comensalidades. Desta forma, culpar a sociedade por gerar o que consideram deformações é um tanto quanto inconclusivo, precisamente porque os vícios são privados e quando tornados públicos se coletivizam e aí o uno, o indivíduo se esconde na massa, espaço em que o desconhecido desaparece, mas o homem se esconde para surgir o sujeito social.
Em seu livro Massa e poder, Elias Canetti (1905-1994) nos diz que “somente na massa é possível ao homem libertar-se do temor do contato. Tem-se aí a única situação na qual esse temor transforma-se no seu oposto. E é da massa densa que se precisa para tanto, aquela na qual um corpo comprime-se contra o outro, densa inclusive em sua constituição psíquica, de modo que não atentamos para quem é que nos ‘comprime’. Tão logo nos entregamos à massa não tememos o seu contato. Na massa ideal, todos são iguais. Nenhuma diversidade conta, nem mesmo a dos sexos. Quem quer que nos comprima é igual a nós. Sentimo-lo como sentimos a nós mesmos. Subitamente, tudo se passa então como que no interior de um único corpo. Talvez essa seja uma das razões pelas quais a massa busca concentrar-se de maneira tão densa: ela deseja libertar-se tão completamente quanto possível do temor individual do contato. Quanto mais energicamente os homens se apertarem uns contra os outros, tanto mais seguros eles se sentirão de não se temerem mutuamente. Essa inversão do temor do contato é característica da massa. O alívio que nela se propaga […] alcança uma proporção notavelmente alta quando a massa se apresenta em sua densidade máxima” (São Paulo: Cia das Letras, 2019, p. 12 – grifos do original].
Para começo de conversa, a obra é extremamente importante para aqueles que buscam entender o empobrecimento da democracia, principalmente nos países periféricos – daí a discussão sobre centro e periferia ser importante. Além desse aspecto em seu universo político, me parece que a querela pode ser estendida até outra temática que é tão problemática quanto a anterior e diz respeito às populações que frequentam essas localidades chamadas periféricas. Antes de nos situarmos, meus caros leitores, no contexto global, entendo ser necessário buscarmos compreensão no campo das megalópoles – cidades-mundo, como dizia o meu professor de Sociologia nos tempos de Unicamp: Octávio Ianni (1926-2004). Se nesses grandes conglomerados urbanos é possível encontrar o mundo todo fatiado em pontos adjetivados por seus moradores a partir de suas origens, penso também ser provável de se localizar, por exemplo, de onde surgiram os moradores das favelas, dos morros, cortiços e demais palafitas espalhadas pelos rincões brasileiros.
Da perspectiva literária, indico aqui três romances que somando-se ao poema parnaso de Manoel Bandeira (1886-1968) no qual o narrador flagra o ser humano devorando lixo, podem nos auxiliar no restante desta reflexão objetivando compreender um pouco essa querela do racismo estrutural pautada numa condição pretérita, cujo presente não consegue diluir, passando a ser, portanto, a tarefa para o futuro, constituindo-se para muitos, inclusive esse que vos escreve, meus caros leitores, numa questão utópica, pois não depende apenas de um sujeito, mas da massa em si que na atualidade, permanece amorfa e alienada. O primeiro romance é O cortiço, da linha naturalista e escrito por Aluísio Azevedo (1857-1913). O segundo é Quarto de Despejos, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e o terceiro é Bandeia negra, amor, do jornalista Fernando Molica. Do ponto de vista sociológico, político e das ciências sociais, há uma miríade de trabalhos, mas ficarei apenas com dois que, em meu entender, podem auxiliar-nos nesta reflexão. O primeiro é Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites no século XIX, da historiadora e professora do IFCH (UNICAMP) Celia Azevedo. O segundo é do professor do Instituto de Economia da Unicamp e de Harvard, Sideny Chalhoub: Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Somente essas cinco obras, se forem lidas atentamente fazendo os devidos apontamentos, possibilitarão ao leitor sério uma visão clara do Brasil de hoje a partir do seu passado escravagista. Por exemplo, Celia Azevedo trabalha questões significativas ocorridas no país quando o Brasil estava em vias de colocar fim ao escravismo. Se discutiu todas as possibilidades objetivando a substituição do cativeiro, contudo, em nenhuma delas foi aventada a hipótese de o elemento africano ser transformado em trabalhador assalariado. Financiou-se, via aporte governamental, a chegada dos imigrantes, mas em nenhum momento houve a preocupação de transformar o ex-escravo em cidadão livre, portador de cidadania plena. O resultado é que todos já sabem, basta ler os outros romances citados, inclusive o naturalismo de Azevedo. Então, as periferias, cortiços, palafitas e morros são habitadas por descendentes daquela população que foi jogada às ruas em andrajos.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.