Pensamento, reflexão e razão

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Se o filósofo francês, Jacques Rancière, tem razão ao afirmar que a ficção é uma categoria privilegiada, principalmente para aqueles que vivem no tempo da ação em oposição ao da mera reprodução – relativo às pessoas comuns e o pensador inglês, John Locke (1632-1704) – autor de obras como Segundo tratado sobre o governo civil – ao afirmar que “todas as ideias vêm da sensação ou da reflexão” e “as observações que fazemos acerca dos objetos sensíveis externos ou acerca das operações internas de nossa mente, que percebemos, e sobre as quais nós mesmos refletimos, é o que proporciona ao nosso entendimento todos os materiais de pensar”, então é preciso refletir sobre estes e outros excertos. Entretanto, seriam de difícil compreensão as duas observações apresentadas acima? Claro que antes de responder a tal interpelação, se faz necessário explicar que Rancière ainda vive na França e Locke escreveu na época em que a Inglaterra vivia um significativo período de sedições, inclusive de alterações de matriz religiosa, ou seja, estava deixando de ser católica para abraçar o anglicanismo.

Sendo assim, a partir dessa dupla observação é que volto minhas atenções para o título das linhas que se seguem. Primeiramente, recupero uma passagem específica da minha vida acadêmica na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), quando uma das professoras que ministravam aulas no IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) instou seus alunos a pensar o pensamento, ou melhor, pensar sobre o pensamento dado. Desta forma, era preciso haver um desdobramento sobre o que se busca compreender nesse universo do capitalismo globalizado contemporâneo. Se isso é fato, então tentarei refletir sobre tais pensamentos ou quase isso, já que para Jacques Rancière, “a escrita é um processo de invenção, não de aplicação de ideias”.

Se a escrita é uma invenção, então o que inventar daqui para frente a ponto de fazer com que meus leitores continuem a percorrer as linhas que confecciono semanalmente aqui neste espaço? Parece-me que não há a necessidade de invencionices para dizer que ao analisar as observações de John Locke – para quem, o homem é uma tábua rasa que é preenchida a partir das experiências que este vivência em seu cotidiano – adentra-se à subjetividade humana que se faz objetiva quando é exercida livremente. Neste sentido, ética e moral são valores que o indivíduo recebe de seus pares durante o processo de socialização primária, ou seja, nos primeiros passos que o ser da para se tornar um ente sociável. Portanto, respeito ao próximo, principalmente quanto este estiver em seu trabalho, exercendo sua profissão, deve ser passado de pai para filho como herança empírica. Todavia, quando se aborda a herança para lá de genética, os sujeitos sociais só pensam em recursos e bens materiais, se esquecendo dos valores que são chancelados durante os primeiros anos de existência social.

Nessa linha de raciocínio, não se pode deixar de enfatizar a personalidade, ou para pensar como Platão, no caráter inato da conduta dos seres humanos. Se for usado esse ponto de referência, é possível crer que a ausência de ética e a imoralidade são características inatas do ente, para usar uma terminologia mais voltada ao campo filosófico, seara mais próxima a John Locke, ou melhor, da metafísica lockeana? Se isso é fato, então é possível desresponsabilizar pais e responsáveis pelas condutas desastrosas das crianças e adolescentes, por exemplo, dentro duma escola? Não creio que seja possível eximir um adulto, portador de laços sanguíneos e sentimentais com alunos problemáticos nas mais diversas escolas públicas e privadas espalhadas pelo Brasil afora. Acredito que o primeiro passo é compreender que a criança, embora muitos acreditem que ela não tenha suficiente maturidade para fazer determinadas escolhas, tem, sim, condições de entender o mundo à sua volta e que esta está constantemente captando sentidos, signos, significados e os transformando em significâncias para suas existências futuras.

A partir dessa perspectiva, penso ser possível percorrer algumas obras de determinados pensadores, sejam eles, seiscentistas, setecentistas, oitocentistas, novecentistas e também muitos que se ocupam em analisar a contemporaneidade, objetivando entender como o passado foi capaz de produzir um presente tão atroz quando se envereda pelos caminhos das relações pessoais e interpessoais. Neste texto procuro referendar minha reflexão em dois filósofos europeus, separados pelo tempo linear e também de sociedades e princípios, objetivando auxiliar àqueles que se propõem a chegar até o fim desta série de argumentos e transformar o pensamento, mesmo que isolado, em reflexão. Desta maneira, conforme sempre afirmo aos meus interlocutores: o que existe nas reflexões de Karl Marx (1818-1883) que sejam úteis para se buscar uma compreensão do Brasil do Terceiro Milênio. Neste sentido, é preciso ter claro que a linha mestra do pensamento marxiano é sempre aquela em que o indivíduo é subsumido pela sociedade e seus respectivos valores. Essa também é a toada dos trabalhos do sociólogo francês, Emile Durkheim (1858-1917), ou seja, o coletivo sobrepujando o indivíduo individualizado. Se se é possível apontar que a dialética marxiana caminha de mãos dadas com o funcionalismo durkheiminiano quando a temática diz respeito ao predomínio da coletividade sobre o homem isolado, – não o robinsonado, personificado pelo romance Robson Crusoé, do escritor inglês Daniel Defoe (1660-1731) – não se pode dizer o mesmo de Max Weber (1864-1920) e sua ética racional de conduta visando um fim específico. Para este pensador alemão, autor de significativos trabalhos dentro das ciências humanas, como por exemplo, Sociologia das religiões, o indivíduo não estaria subsumido pelas vontades da maioria de seus pares. Para ele, o ser humano individualizado estaria acima das vontades sociais, principalmente no que diz respeito ao universo religioso. Weber aponta como exemplo desta observação, a ética protestante.

Já se escreveu muito sobre esses três significativos pensadores globalizados, seja para concordar ou discordar do trio ou, quem sabe, tentar colocá-los no mesmo balaio analítico, porém, a tripla interpretação, ora buscando a junção de um quantum do Marx com uma abordagem significativa de Durkheim, ou de pensamento marxiano com pitadas de Weber e um quantum significativo de Sigmund Freud (1856-1939) como tentaram fazer alguns intelectuais da envergadura de Karl Mannheim (1893-1947), que escreveu Sociologia Sistêmica e Ideologia e Utopia. Todos os ensaios ou tentativas de junções são válidos para aqueles que buscam elementos e ferramentas para se pensar a contemporaneidade, acrescentando a isso, os formuladores da Escola de Frankfurt, mas me parece que o desafio ainda persiste para nós que, temos como ofício, interligar os vários mundos que surgem do passado do homem com o presente legado pelo pretérito humanoide. Enfim, a querela pode se resumir da seguinte forma: o que o idealista alemão, Immanuel Kant (1724-1804) e seu ensaio Fundamentação para a metafísica dos costumes podem dizer, lá da Alemanha setecentista, ao homem do Terceiro Milênio que o auxilie a entender esse mundo contemporâneo que, para muitos, está de cabeça para baixo?

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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