“Modernidade líquida”
Começo meus aforismas críticos deste domingo, abordando uma questão posta pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925- 2017) em seu livro 44 Cartas do mundo líquido moderno (Zahar, 2011). A abordagem encontra na segunda missiva intitulada “Sozinhos no meio da multidão”. No texto em tela, o autor enfoca a narrativa duma “adolescente que enviou três mil mensagens de texto num único mês. Isso significa que ela mandou uma média de cem mensagens por dia, ou cerca de uma mensagem a cada dez minutos do tempo em que esteve acordada – ‘manhã, tarde e noite, dias úteis e fins de semana, tempos de aula, horas de almoçar e fazer dever de casa, de escovar os dentes’” [p. 13].
Solidão
Isso significa, de acordo com o pensador polonês, que “a adolescente nunca ficou sozinha por mais de dez minutos, nunca ficou só consigo mesma, com seus pensamentos, seus sonhos, seus medos e esperanças. A essa altura, ela deve ter se esquecido de como uma pessoa vive, pensa, faz coisas, ri ou chora na companhia de si mesma, sem a presença de outros. Melhor dizendo, ela nunca teve a oportunidade de aprender essa arte. O fato é que somente em sua incapacidade de praticar essa arte é que ela não está sozinha” [44 Cartas do mundo moderno líquido moderno. Trad. Vera Pereira. RJ: Zahar, 2011, p. 13].
Conexão
Depois de ler os dois tópicos acima, aqueles que acompanham minhas reflexões em fragmentos postados aqui dominicalmente, devem estar se perguntando qual a ligação, por exemplo do exposto com as problemáticas vivenciadas pelo penapolense? Creio que uma resposta apressada pode indicar que não existe conexão alguma e que é mais do mesmo, entretanto, se o olhar os levar, meus caros leitores, ao mundo fenomênico e ao vir a ser do universo da política, será possível compreender a grita geral por conta dos R$ 1.200 que o atual prefeito e seu voto de Minerva concederam aos ocupantes de cargos comissionados. Quando a adolescente do texto de Balman manda mensagens, ela crê que há um receptor, mesmo que esta não receba de imediato o retorno das postagens. Esse processo é fruto do “eu” dos tempos que se dissolvem no instante seguinte, portanto, o restante das pessoas gramaticais cai no desuso, evidenciando que o emissor continua solitário, num diálogo surdo dele para com ele mesmo!
Interpelação
Mas como perguntar ainda não ofende, nem o prefeito e nem os beneficiados pela medida adotada pelo chefe do Executivo local, quero entender qual foi o propósito de tal ação? Como bem frisou a coluna Observatório da Cidade publicada aqui neste espaço na última quinta-feira, 11 de fevereiro, há uma norma do governo federal vetando esse tipo de remuneração que se torna mais complicada em tempos pandêmicos e recursos minguados para combater o vírus que traz em seu DNA a morte escancarada e muitas consequências sobre quais as autoridades científicas ainda não conseguem quantificar, bem como apresentar uma terapia eficiente. Portanto, somente a prevenção é capaz de minimizar os danos causados pelo covid-19.
Imbróglio
Sendo assim, tendo a crer que o atual mandatário que vociferou ser o diferente e fazer a diferença em sua gestão, nesses quase dois meses à frente da chefia do Executivo pode ter cravado o primeiro prego no féretro de sua carreira política. Já tem o voto Minerva de outrora que não foi revogado como um ato indicando que não seria mais do mesmo. Ah! Dirão que, de acordo com a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), um prefeito não pode abrir mão de receitas e nem a Câmara de Vereadores pode apresentar projetos que sinalizem gastos à Prefeitura. Mas o gestor pode, sem precisar de qualquer espécie de aprovação dos vereadores, agraciar os comissionados com R$ 1.200? É! Parece que a carruagem do governo está com uma das rodas bambas e pode cair se bater na próxima pedra e o féretro que carrega vir ao chão e apresentando o cadáver insepulto da política brasileira.
Vazios e seus vácuos
Voltando ao texto do Bauman, fico cá pensando como seria fazer parte do mundo global e das redes sociais e ao mesmo tempo se sentir totalmente vazio? Pelo que o autor nos apresentou no começo do seu livro, a adolescente estava em conexão com o universo virtual, mas sem se conectar com o mundo material que a cerca, este que é palpável, tangível. Desta forma, como uma interação objetivando a construção de uma sociedade melhor seja possível? Conforme venho apontando, só a uma maneira de alterar, não só a roda, mas a carruagem política e os políticos que vão conduzi-la: participação política e luta democrática. Neste sentido, as vozes que clamaram contra a imoralidade dos R$ 1.200 indicam que nem tudo vai ser levado como se fosse do hábito outrora propalado pela presidente do Legislativo. Espero que a pressão continue, já que os servidores da saúde precisam estar na linha de frente quando o assunto é receber seus salários pelos serviços prestados à comunidade e não a determinado prefeito ou grupo de vereadores.
Alienação política
Já que a temática é solidão, multidão, estar sozinho em meio ao rol de pessoas, se acotovelando com todos, mas ao mesmo tempo sentir-se só, entendo que essa situação dissolvente das relações humanas também se encontra no mundo da política, na medida em que as pessoas não querem participar, preferindo delegar a outrem a tomada de determinadas decisões e esses R$ 1.200 é fruto dessa alienação política e a defesa da tese do “meu pirão primeiro”! Como seria isso no campo eleitoral? É só perguntar para o eleitor por que votou nesta ou naquela mercadoria-política. Será que foi para realizar ações em que a coletividade fosse contemplada ou apenas mudar o local de um ponto de ônibus porque um cliente específico solicitou?
Ético
Chegando nesse ponto dos aforismas dominicais, entendo ser pertinente fazer-vos, meus caros leitores, a seguinte interpelação: o que é um ser ético? E o que é ser um sujeito social moral? Claro que responder essas duas interpelações, pode vos levar a ideia do ser antiético, do sujeito aético, do homem amoral e do ser imoral. Desta forma, me parece que essas questões estão por trás dos R$ 1.200, a exemplo dos R$ 4 mil de outrora, chamado de merreca. Imagine o que o servidor do hospital de campanha, que foi desativado e está sem receber por conta dos imbróglios burocráticos, faria com esses valores? Parece-me que não é apenas os políticos que precisam repensar seus valores, mas sobretudo, o eleitorado que é chamado a cada quatro anos para escolher prefeitos, vereadores e depois presidente da República, governadores, deputados federais e estaduais e parte do Senado Federal. Pensemos, meus caros leitores, porque analisar solitariamente pode tornar a tarefa de mudança um tanto quanto árdua. É isso! gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.