Gilberto Barbosa dos Santos
Houve momentos nessas paragens – onde o atual brasileiro sapateia – que era apenas um recanto, um paraíso, conforme o historiador brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), retratou em seu clássico Visão do paraíso e tão bem analisado pelo cientista político José Murilo de Carvalho num artigo sobre o edenismo nacional, entretanto, como tudo nesse tempo – datado pelo homem para que tenha noção clara de onde está e para onde tenciona caminhar – esse universo material edênico caiu em mãos erradas e está-se onde se está no presente! E o mais interessante nessa epopeia de conquistas violentas, ultrajes e abusos sexuais contra os nativos, é que hoje esses primeiros habitantes – os verdadeiros donos de tudo – são observados como sendo indivíduos de categorias inferiores, entretanto, viveram por aqui por séculos sem destruir a natureza. Desta forma, fica uma perguntinha básica: quem é realmente o “selvagem”?
Para pensar numa resposta coerente, é interessante dar uma passadinha nas matrizes étnicas que forjaram esse Brasil. Há uma miríade de trabalhos sobre esse tema, entretanto, poucos indivíduos se propõem a enfrentar algumas dessas brochuras que apontam os vilipêndios sofridos pelos africanos e seus descendentes, trasladados para cá contra suas vontades, contudo, na condição de mercadorias que deveriam gerar valores aos seus proprietários. Meus leitores poderão dizer que as linhas que confeccionam são mais do mesmo, no entanto, se isso é fato, por que então ainda um descendente de africano não é avaliado pelo valor de seu caráter e pela sua competência profissional, mas tão somente pela sua herança genética, ou melhor, pelos seus antepassados africanos e indígenas?
Mas para que pensar sobre isso, se a situação continuará a mesma, isto é, com a herança senzaleira dando as cartas, como se diz no jargão popular, aqui e ali e será sempre desmistificada enquanto etnocêntrico responsabilizando o estigmatizado pela sua condição de descendente de escravos e integrantes dos estratos inferiores da sociedade brasileira classificada como sendo neoliberal, sem, no entanto, definir ao certo, que tipo de liberalismo deu as caras por aqui e ainda permanece sendo sempre reordenado a cada ciclo econômico que se passa. Se isso é fato, então não devo continuar com os meus argumentos, pois a partida pode ser vista como jogo de cartas marcadas e um ciclo vicioso, semelhante ao destino de Prometeu que, ao dar esperanças a humanidade, foi condenado a viver um eterno retorno ao inferno social.
Desta forma, é possível concluir que os descendentes de africanos também vivenciam diariamente o seu eterno retorno ao sofrimento senzaleiro, já que observa cotidianamente estampado nos olhos – que segundo os poetas, seria o espelho da alma – de seus interlocutores a visão pré-concebida sobre o outro – que se quer superior – lhe devota. Dizendo-lhe silenciosamente que o lugar deles é na senzala pós-moderna, isto é, nas masmorras fétidas construídas sobre os morros, que muitos conhecem como “favela” – mas para ser politicamente correto é chamada de comunidade. Essa narrativa começou bem antes do fim do trabalho escravo, quando os brancos e a elite monárquica debatiam sobre a extinção do servilismo brasileiro e as medidas que deveriam ser tomadas – mecanismos que valeram a ruptura entre o deputado conservador, José Martiniano de Alencar (1829-1877) e o Imperador D. Pedro II (1825-1891). As conversas giraram em torno da substituição da mão-de-obra africana, evidenciando que, para aqueles políticos, o negro não era capaz de se tornar um trabalhador assalariado, bem como não ser portador das prerrogativas definidas pela legislação, bastava apenas dar-lhe o status de liberdade e deixar que a sorte os encaminhasse para a vida, conforme Machado de Assis (1838-1908) retrata em sua crônica Bondes elétricos.
Se no plano ficcional, os nossos escritores criaram enredos e enunciações que denunciavam o descaso com os descendentes de escravos que se viram da noite para o dia no “olho da rua” – como se diz no jargão popular – no universo da investigação científica há enxurradas de teses, dissertações, livros e artigos científicos que dão conta dessas mazelas. Dentre elas, eu destacaria o livro de Clóvis Moura: Sociologia do negro brasileiro (1988). Em determinado momento de sua narrativa, o autor diz aos seus leitores que:
“O negro urbano brasileiro, especialmente do Sudeste e Sul do Brasil, tem uma trajetória que bem demonstra os mecanismos de barragem étnica que foram estabelecidos historicamente contra ele na sociedade branca. Nele estão reproduzidas as estratégias de seleção estabelecidas para opor-se a que ele tivesse acesso a patamares privilegiados ou compensadores socialmente, para que as camadas brancas (étnicas e/ou socialmente brancas) mantivessem no passado e mantenham no presente o direito de ocupá-los. Bloqueios estratégicos que começam no próprio grupo família, passam pela educação primária, a escola de grau médio até a universidade; passam pela restrição no mercado de trabalho, na seleção de empregos, no nível de salários em cada profissão, na discriminação velada (ou manifesta) em certos espaços profissionais; passam também nos contatos entre sexos opostos, nas barreiras aos casamentos interétnicos e também pelas restrições múltiplas durante todos os dias, meses e anos que representam a vida de um negro” (MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988, p. 8).
Sei que muitos que estão lendo as linhas que confeccionei para hoje, poderão dizer que há certo exagero de minha parte, ou que o trecho colhido da obra de Clóvis Moura não condiz com a realidade, todavia, eu proponho àquele que crê nessa assertiva que professa que busque os dados que o IBGE (Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística) colocou à disposição de qualquer brasileiro. As informações lá contidas dão conta de que o que Moura apontou no final da década de 80 do século XX, tristemente se mantêm vivo no presente, o que faz com que o amanhã seja incerto para muitos descendentes de africanos, pois por mais qualificado que seja, sempre terá que ser referendado por um branco, conforme nos apontou o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes (1920-1995) em várias de suas obras, inclusive o livro O negro no mundo dos brancos (1972) e O Significado do protesto negro (1989).
Esses são fatos, contra os quais não se tem argumentos, como diz o velho adagio. Se isso é fato, então o que fazer? Aceitar tudo pacificamente? Revoltar-se? Continuar lutando? Silenciar-se em forma de protesto quando querem que um afro-brasileiro diga que não é bem assim e que o racismo na sociedade brasileira está reduzindo e corrobora para isso, por exemplo, a presidência do STF ter sido ocupada por um negro? Deixo essas interpelações a cargo dos meus leitores semanais, entretanto com uma ressalva: enquanto situações como essas precisarem ser evidenciadas, ainda o preconceito e o racismo estarão dando o ar da graça entre os brasileiros.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.