Gilberto Barbosa dos Santos
Num desses dias aí quando estava em uma fila de banco e depois na lotérica, fui interpelado por um transeunte sobre um hábito que tenho há muito tempo: o de ler enquanto aguardo a minha vez para ser atendido. Isso acontece também em outros lugares, dentro de ônibus, nas mais diversas rodoviárias pelas quais passei nos últimos tempos e olha que o périplo é significativo. A pessoa que me questionou – não me recordo o nome, mas isso pouco importa, pois o que ficou foi mais interessante do que saber a identidade do meu interlocutor – desejava saber como conseguia me desligar do mundo ao meu redor enquanto esperava o caminhar da fila. Olhei para o indivíduo e fiquei pensando, coisa de segundos, como poderia responder-lhe sem ser chato, grotesco, asqueroso ou coisa que o valha, pois é fácil adjetivar o outro, principalmente quando não o conhece, portanto, tudo o que for dito sobre ele é fruto do que o observador sabe de si.
Pois bem! Fui direto ao ponto! “Converso com o texto. Ele me diz muitas coisas, me fazendo pensar vários dias, semanas, meses e, em alguns casos, por vários anos. Tenho inclusive em casa, livros que comecei a ler faz uns dez anos e ainda não terminei, mas estão lá à minha espera para continuarmos a nossa prosa. Há outros em que a conversa é tão interessante que modifica até a minha respiração, o meu humor, enquanto leio. Por exemplo, este que estou lendo agora ‘O peso do pássaro morto’. Excelente, estava trocando uma ideia com a enunciação quando você me perguntou sobre o gosto pela leitura”. Disse isso ao meu interpelante, voltando a me concentrar naquelas significativas linhas, dividindo-as com as observações feitas pelo escritor francês Marcel Proust (1871-1922) sobre esse hábito que há muito eu adquiri. Segundo o literato, a leitura é significativa na medida em que nos abre portas, sem as quais jamais conseguiríamos desvendar o seu interior, ou melhor, o mundo (PROUST, M. Sobre a leitura. Campinas, SP: Pontes, 2011, p. 39). Soma-se a esse gostar de gostar de ler ao meu trabalho enquanto cientista social.
E foi justamente a junção dessas duas áreas – ciências sociais e a literatura que me ocorreu recentemente ao ler o livro O elogio da literatura (2020), escrito pelo pensador polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) em parceria com o tradutor de sua obra para o italiano, Riccardo Mazzeo. Num determinado trecho desta narrativa, os autores fazem a seguinte observação, principalmente aos cientistas sociais: “se você for um sociólogo tentado a deslindar o mistério da condição humana e rasgar o véu de preconceitos e equívocos insinuados ou urdidos, ‘se você procura a verdade da ‘vida real’, e não a ‘verdade’ sobrecarregada com o duvidoso e presunçoso ‘saber’ de homúnculos nascidos e criados em tubos de ensaio, dificilmente poderia fazer melhor escolha que colher as sugestões de gente como Franz Kafka, Robert Musil, Georges Perec, Milan Kundera ou Michel Houellebecq. Literatura e sociologia alimentam uma à outra. Elas também cooperam ao esboçar os horizontes cognitivos uma da outra e ajudar a corrigir as confusões e os descuidos uma da outra” (2020, p. 10).
Interessante notar que essas observações feitas pelos dois autores me reportaram ao livro O olho mais azul (2019), da escritora negra norte-americana e Prêmio de Literatura, Toni Morrison (1931-2019). A enunciação é tão significativa que valeu uma singela, porém profícua recomendação do ex-presidente dos EUA, Barack Obama. “É sempre preciso ler e reler os livros de Toni Morrison. Todos eles são transcendentais. Você vai me agradecer depois da leitura”. Da minha perspectiva pessoal e profissional, posso dizer ao meu leitor que aquela narrativa é impactante justamente por conta de sua temática: a comunidade afro-americana e o desejo de uma criança negra [escura (Black)] ter olhos azuis, semelhante às cores das bonecas que, às vezes, ganhava de presente. Diga-se de passagem: brancas. Lógico que o leitor atento encontrará coisas naquelas linhas que são semelhantes à realidade brasileira que ainda hoje padece por conta de sua herança escravagista. Muitos podem dizer que apontar isso seria o mesmo que chover no molhado, entretanto, acho que aquela pessoa, branca, caucasiana que nunca recebeu uma cusparada no rosto por conta da tonalidade de sua pele, não sabe o que significa ser humilhado, ofendido e preterido pela sua condição étnica. O escritor Afonso Henrique de Lima Barreto (1881-1922) que o diga através de diversas narrativas em crônicas, contos e o clássico Clara dos Anjos.
Outro acusado de absenteísmo no campo da política e da questão racial, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), em meu entender, é um escritor que foi além das questões externas, aprofundando seus conteúdos até a alma humana. Quando em seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas, no capítulo O vergalho, narra a epopeia de um ex-escravo que, assim que se enxerga livre das malhas do cativeiro, compra um preto e o surra por qualquer falta, o narrador quer indicar que o sistema escravagista contaminou a alma, o espírito do sujeito social brasileiro. Observa-se que o cientista social, Florestan Fernandes (1920-1995) – que tem uma vasta obra interpretativa do Brasil – diz que, depois da alforria dos africanos, era preciso libertar os escravagistas do sistema que perdurou por mais de 300 anos e continua ditando as regras, pois no Brasil o trabalho e o empregado não têm valor algum, e isso em função dos mais de três séculos em que nunca se pagou pelos serviços prestados pelos africanos. Se isso é fato, por que agora iria valorizar o labor do pobre? Há várias narrativas contemporâneas que dão conta do destino que muitos dos descendentes de escravos tiveram despois do fim do cativeiro. Uma delas é o romance do jornalista Fernando Molica, Bandeira negra, amor.
Mas voltando aos tempos monárquicos (1808-1889), temos um romancista que faz com que seus leitores destas primeiras décadas do século XXI, refletiam sobre o estar aqui no mundo. José Martiniano de Alencar (1829-1877) tem uma série de narrativas que possibilita uma leitura a visão de mundo suspensa para entender não o que está no texto, mas o que não aparece nas linhas de romances como Iracema e O tronco do ipê. O primeiro é um clássico da literatura indigenista, entretanto, se a leitura for feita com uma lupa e pinça à procura de detalhes, é possível observar que ali há uma clara tentativa de apresentar o europeu como superior à indígena que sucumbe ao amor a uma mulher pertencente a uma etnia inferior. Ela abandona seu povo para vivenciar a vida platônica com o seu amado, tendo com ele um filho, todavia, as coisas não saem como no mundo das ideias, isto é, perfeito. O desfecho é trágico para a heroína que não é aceita pelos brancos e nem pela própria tribo. Desta forma, o rebento se sente desterrado. Só tem a mãe, sem descendência alguma, pois todos os rechaçam. Já na segunda narrativa, a enunciação quer passar a mensagem, segundo a qual, o escravo deveria ser grato por ser servo do branco e este estar-lhe “civilizando” através dos costumes e hábitos. Resta saber se os processos são pelas vias normais ou debaixo de vara, açoites, espancamentos e sevícias aplicados por homens livres que viviam sob a guarida do escravagista no sistema estamental escravista brasileiro. Enfim, são significativas as observações de Zygmunt Bauman no que diz respeito ao intercâmbio entre Literatura e Sociologia.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.