Gilberto Barbosa dos Santos
Começo minha pequena reflexão de hoje usando uma canção do grupo de rock brasileiro Jota Quest. É uma banda um pouco antiga, meio atual, e talvez seja legal trazê-la para as linhas que se seguem. A canção tem como título “Fácil” e, reza a lenda artística que a letra foi feita em homenagem a mãe do vocalista, que teria lhe dito para fazer músicas e letras que todo mundo pudesse entender e canta junto. O refrão da canção diz que tudo é simples, portanto extremamente fácil para todo mundo cantar num só coro! Tendo esse pequeno excerto sonoro como premissa, é que pensei num texto mais palatável aos meus leitores semanais. Quando o ponto final chegar, espero ter alcançado o meu objetivo. Sendo assim, penso num tema em que o debate não seja complicado: será que pode ser a construção do ser social a partir de suas emoções? Se fosse esse o assunto, eu começarei pelo que ouvi da boca de um senhor, num momento em que a sociedade é assolada pelo vírus covid-19. Esse indivíduo não estaria mais acreditando na letalidade da pandemia e caso fosse verídico, tudo bem, ele morreria, sem problema algum. Achei essa observação de um atroz egoísmo, pois a pessoa, por ter vivido um determinado tempo no orbe não estaria valorizando corretamente o sentido do existir, bem como o caráter coletivo das relações humanas. Fiquei pensando sobre o que acabara de ouvir e como a sociologia, de forma sintética, poderia explicar o propalado pelo sujeito social.
Em primeiro lugar, faz-se necessário ter claro que o profissional das ciências sociais “vive no mundo comum dos homens, perto daquilo que a maioria das pessoas chamaria de real”, conforme observa o sociólogo Peter L. Berger (1929-2017) em seu livro Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Tendo essas observações como premissas, é interessante tentar compreender a fala daquele sujeito e, se a mesma tem ressonância na sociedade, ou fora apenas uma verborragia tosca e aleatória. Por que será que um sujeito social é capaz de desdenhar da vida humana em meio a uma pandemia global, a ponto de achar que tanto faz viver como morrer. Indicando que tudo seria a mesma coisa. Todos sabem que os tempos modernos são marcados profundamente por um individualismo atroz, respaldado pelo pronome possessivo, personificado no “meu isso, meu aquilo”, no qual, “o nosso e o nós” só é utilizado por políticos que querem uma muleta linguística para dizer que a conquista é coletiva, contudo, o autor da propalação quer apenas desvirtuar o seu “eu” através dum jogo textual, pois é cônscio que o propalador tem outro escopo em mente. Esse tipo de verbalização objetiva fazer com que a primeira pessoa egocratizada se dissolva num “nós” inexistente para difundir suas práticas arbitrárias. Talvez a fala daquele cidadão do início de minha narrativa pretendesse personificar isso, ou seja, desmantelar todo e qualquer mecanismo de prevenção, já que a maioria dos brasileiros tem dificuldades em lidar com o sistema protetor e daí o desrespeito às leis, pois existe a crença que tudo que consta nos códigos pode ser modificado pelo exercício da hermenêutica e bons advogados.
Essa pequena assertiva me leva à leitura dum quadrinho da antiga revista Chiclete com Banana. Nessa ilustração havia um punk chamado Bob Cuspe que entra num elevador lotado, quando todos dizem ao ascensorista para subir, ele pede para descer. Não há como não rir desse episódio, pois demonstra bem a questão de querer ser sempre do contra, independentemente da situação. Outra vivência da qual me recordo dos tempos de universitário no curso de Ciências Sociais, é que nas rodas de conversas entre os estudantes, todos preocupados em se definir ou se alinhando com tal linha de pensamento, justificando tal posição. Quando a conversa estava bem acalorada, alguém soltava uma pérola: “não sou garrafa para usar rótulo”! O riso era geral e outro aluno explicava que haveria, na próxima semana, uma reunião para fundar o Partido Anarquista, contudo, quem fosse ao tal encontro, estaria fora da lista de filiados à nova legenda. Nova saraivada de risos aos borbotões. Mas o que esse parágrafo tem a ver com a questão em si proposta no início dessa tentativa de reflexão? Muitos dos meus leitores dirão que não tem nada a ver, e os assuntos caíram de paraquedas enquanto eu tentava explicar como estaria compreendendo a opinião daquele sujeito anônimo num dia qualquer no meio desta pandemia global, em que muitos querem a reabertura do comércio sobre o pretexto de que a economia vai degringolar. Acho que é justamente aqui que o Bob Cuspe e os rótulos garrafais se encaixam. Senão vejamos.
Quando todas as autoridades mundiais, inclusive a OMS (Organização Mundial da Saúde) aponta os caminhos que os governantes precisam tomar para evitar que novas vidas sejam ceifadas e o mundo se torne num crematório gigantesco, enquanto os ricaços, dentro dos seus iates, esperam que tudo termine para dividirem o que sobrou da humanidade, quero dizer, dos bens materiais e animais, alguém, a exemplo do punk rebelde da revista em quadrinhos, pede para descer, ou melhor, esquecer as recomendações científicas. Por outro lado, a partir do momento que o tema se torna público e debatido entre os viventes, tudo parece ter virado um Fla/Flu ou uma disputa entre corintianos e palmeirenses, ou ainda uma desavença de moleques de rua, como se o tema não fosse tão importante e o que é mais significativo seja vencer a peleja, que acaba virando um bate-boca desenfreado, enquanto o vírus vai bafejando uns e lambendo mortalmente outros, independentemente da condição social, étnica, religiosa ou futebolística. Talvez por isso a opinião daquele transeunte tenha chamado tanto a minha atenção. Sem nenhuma pretensão, aquela pequena assertiva me possibilitou refletir sobre o valor da vida humana, principalmente àqueles que defendem o econômico acima de tudo.
Entendo, meu caro leitor, que não é possível perder esse aspecto de vista, mas creio que seja necessária uma reflexão com uma certa acuidade, levando-se em conta o que está acontecendo no resto do mundo, principalmente nos bafejos de morte que vem da Itália, ou como diziam os antigos, “no país da bota”. Li outro dia em algum lugar um artigo escrito por uma ex-candidata a presidente da República que, aliás, andava sumida, mas que “deu o ar das graças”, como se diz no jargão popular, usando a Meditação 17, escrita pelo deão e poeta inglês seiscentista John Donne (1572-1631) abordando o sentido dos sinos que este tocava em plena epidemia europeia. Achei interessante a abordagem e a utilização do referido texto para lembrar os leitores que o indivíduo, por mais individual que seja, ainda não é uma ilha isolada, necessitando, portanto, do outro seu igual. É neste sentido que entendo que o momento é para se pensar na solidariedade e cobrar do Estado o seu correto funcionamento e não forçar, vociferar que quer a liberação da circulação de pessoas para salvar o viés econômico da vida ativa no orbe terrestre. Parece-me que o “agora” é para se propor diálogos entre patrões e funcionários, sem haver prejuízos para ambas as partes, sem suspensão de contratos, pois o Governo Federal já liberou linhas de créditos para que empresas, que se enquadram dentro de determinadas situações, quitem suas folhas de pagamento. Mas o que se observa são empresários demitindo a torta e a direita e usando para isso a justificativa de que o isolamento social os estão forçando a essas medidas. Então, o que dizer quando os sinos não estão tocando para e pelos seus? Pensemos!
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.