por Gabriel Cohn
Sérgio Buarque de Holanda busca raízes e encontra desterro. “Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”, proclama ele em passagem decisiva, em que se reitera com poderoso efeito retórico a referência à terra, para assinalar não o solo firme, mas a sua falta. Desse desencontro fundamental derivam todos os demais, nessa crônica dos descompassos que vão constituindo a formação histórica brasileira que é “Raízes do Brasil”. A dificuldade toda na constituição do Brasil remonta a uma “implantação” forçada em outro solo de traços historicamente constituídos na “cultura européia”. O livro se abre com essa imagem do implante, da tentativa de arraigar. Nela se anuncia toda uma temática que, condensada em alguns motivos básicos, percorre de ponta a ponta essa obra genuinamente seminal.
Para usar desde já um dos seus temas, se a península ibérica nela aparece “indecisa” entre Europa e África, a própria obra traz na sua exposição a marca de um momento de indecisão, entre a busca das raízes e a atenção naquilo em que vieram a dar. As imagens bucólicas “lavrar”, “semear”, “cultivar” logo se revelam indícios de algo que não se completa, de que se está longe do crescimento linear das ervas e das árvores. Entre o cultivo e o seu resultado há uma ruptura, e é nela que se concentra a atenção. E isso se faz com aguda percepção dos descompassos entre a ação intencionada e suas consequências. Se há algo de “weberiano” no texto de Sérgio Buarque é isso, e não a utilização desse recurso de método que é o “tipo ideal”.
Com essa afirmação caímos inteiros num debate que vem de longe, centrado na questão de como Sérgio Buarque assimilou a historiografia e a sociologia alemãs no período em que lá ficou, em 1929-30, naquilo que ele mesmo entendia como uma experiência decisiva de distanciamento crítico em relação às suas próprias raízes. Teremos nele, e especialmente na obra que agora nos ocupa, uma aplicação pioneira entre nós da metodologia desenvolvida por Max Weber [1864-1920], em especial no que concerne ao uso dos “tipos ideais”, como já se aventou? Ou mais terão pesado outras leituras, das muitas que ele realizou naquela ocasião?
Proponho desde já minha sugestão a respeito. Os autores alemães foram da maior importância, sem dúvida, e Weber foi lido com grande proveito. Mas a arquitetura da obra lembra mais Simmel do que Weber. No seu estudo sobre o significado da obra, Antonio Candido já evoca Georg Simmel [1858-1918″, no “ritmo despreocupado e às vezes sutilmente digressivo” da exposição. Mas é possível encontrar essa presença mais fundo, até mesmo no ponto em que a presença de Weber parece mais forte. Isso ocorre no segundo capítulo de “Raízes”, quando comparecem os tipos do “trabalhador” e do “aventureiro”.
Neles se encontram duas orientações básicas da conduta que, mais do que opostas ou contraditórias, são mutuamente “incompreensíveis”. Por um lado, o esforço continuado e a valorização da recompensa futura, mas segura; por outro, a busca continuada da nova experiência, que se exaure no momento presente.
Sérgio Buarque adverte de imediato: nenhuma dessas duas figuras pode ser encontrada em estado puro na realidade. São ambas construções, com base real, sem dúvida, mas talhadas apenas para a tarefa analítica.
Nesse sentido são “tipos ideais” na acepção weberiana. Mas não o são na sua construção e, sobretudo, no modo como operam na análise. É que Sérgio Buarque está mais interessado nas figuras humanas de uma trama histórica do que nos “dois princípios que se combatem e regulam diversamente a vida dos homens”, precisamente os do trabalho e da aventura. Importam-lhe os “tipos em que eles se encarnam”; vale dizer, os personagens do trabalhador e do aventureiro, que dão vida a esses princípios abstratos.
Que há nisso de tão pouco weberiano? Isso começa a se fazer manifesto quando Sérgio Buarque, tendo afirmado que esses princípios “se combatem”, logo adiante dirá que são mutuamente “incompreensíveis”. Em outros termos, sustenta que, pertencendo a universos significativos diferentes, as condutas que eles regulam são incomensuráveis, assim como são de mundos diferentes os tipos humanos em que se encarnam. Só poderiam opor-se e combater entre si se pertencessem à mesma “família moral”, diz ele em nota.
É nesse ponto que reside o problema. Não há, nessas condições, como fazer aquilo que é decisivamente importante no procedimento weberiano, que consiste em examinar a relação entre condutas, mutuamente compreensíveis nos seus significados, mas que sobretudo -e esse é o ponto decisivo- se encontram simultaneamente presentes no mesmo agente. Na perspectiva weberiana, a construção de tipos de agentes que pertençam a universos significativos incomensuráveis não serve para o que importa, que é estabelecer relações de afinidade ou tensão entre orientações de conduta que não têm como se encontrar a não ser na ação de um mesmo agente que seja portador de ambas. Essa distinção entre tipo de agente e tipo de ação é fundamental, e assinalá-la não é mera sutileza metodológica, de interesse estritamente acadêmico. Além de assinalar, de passagem, tudo o que separa Weber de outros que também façam uso de construções tipológicas, desimpede o caminho para leituras alternativas da obra de Sérgio Buarque, que aqui só cabe apontar.
INFLUÊNCIA DE GEORG SIMMEL FOI MAIS DETERMINANTE QUE A DE MAX WEBER E MARCOU DE MODO DECISIVO A ARQUITETURA E O ESTILO DE “RAÍZES DO BRASIL” |
Haverá então mais de Simmel (para não falar da historiografia alemã e de Dilthey) do que de Weber no Sérgio Buarque de “Raízes do Brasil”? (Pois é só desta obra que se trata aqui, talvez a mais “sociológica” do autor.) Um indício de que esse pode ser o caso está no próprio modo sinuoso e indireto como as questões vão aparecendo e sendo perseguidas na exposição. Nada dos duros recortes weberianos, mas sim do faro desse incansável perseguidor de significados fugidios que foi Simmel (outro desterrado na sua própria terra). Ambos, o brasileiro e o alemão, são a seu modo pensadores do desterro, da inadequação, da distância entre o fluxo espontâneo dos impulsos vitais e a forma que ele assume na sua conformação pela força ordenadora da cultura. Só que, se em Simmel há cultura demais (com a profusão de formas culturais ameaçando tolher o fluxo da vida, formulação cujo matiz irracionalista Sérgio Buarque repelia), a há de menos em Sérgio Buarque.
No primeiro, temos o solo profundo e muitas vezes amanhado (estranhas ressonâncias, as dessa palavra, que evoca o amanhã tão remoto para o aventureiro de que fala Sérgio Buarque). No segundo, o solo ralo, o “desleixo”, a inconveniência do uso do arado, o cultivo que mistura labor e abandono (em passagem inconfundível, ele fala dos “frutos do nosso trabalho e da nossa preguiça”), a cultura, enfim, que não encontra onde nem como lançar raízes e tampouco pode ser resultado de mero transplante.
Dificuldade para organizar-se por conta própria e inconveniência da imposição de formas prontas: eis o dilema de Sérgio Buarque, que só se poderia resolver por algum tipo de convergência da razão ordenadora e do impulso espontâneo, de uma articulação, portanto, do mundo privado com o mundo público, que só as modernas instituições democráticas poderiam fazer. Uma análise radical, no exato sentido do termo, pois, afinal, em vez de lamentar a fragilidade ou a carência de raízes, ele propõe a erradicação dos implantes malogrados e o preparo do solo para as novas instituições reclamadas por novas personagens históricas.
Isso suscita de novo o papel dos personagens na análise. Na perspectiva de Sérgio Buarque não há como reservar-lhes lugar de segundo plano na exposição. Pois, antes do formato institucional e, antes dele, cultural (para não falar da embaraçosa e muito alemã referência à “psicologia desses povos”, hispânicos no caso) dessa sociedade brasileira cuja constituição histórica está em questão, cabe saber que tipos humanos se apresentam para assumir o encargo de dar-lhe forma, cultivá-la, em suma, civilizá-la. Assim a referência às raízes vai adquirindo, em Sérgio Buarque, um forte tom crítico, à medida que se vai tornando manifesto que elas se referem a mundos que representam mais propriamente lugares do que relações capazes de conformar uma sociedade.
Um mundo rural que não é agrícola, que é lugar de permanência ou passagem, mas não de cultivo; um mundo urbano que é lugar subalterno ao rural, mas não se presta ao exercício da vida civil; uma cultura que não é cultivo, mas implante; tudo isso remete aos desencontros e mal-entendidos (“a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido”, escreve Sérgio Buarque em hipérbole famosa) que marcam o trajeto histórico da sociedade brasileira.
Tomados isoladamente, os personagens exibidos na obra não têm como resolver os dilemas dessa sociedade. Nem o trabalhador ou o aventureiro; nem o ladrilhador hispânico ou o semeador luso; muito menos o tristemente célebre homem cordial brasileiro, espécie de má síntese daquilo que nossas raízes, apesar de tudo, acabaram engendrando, esse idiota civil, confinado no seu horizonte privado e privatista; nenhum deles pode fazê-lo. Talvez pudessem, se combinados de alguma forma? Pois, ao concentrar o olhar nos personagens típicos, Sérgio Buarque é levado a dirigir sua atenção para as formas possíveis de relações entre eles, sejam elas de oposição, de afinidade, de combinação.
Nisso ele está mais próximo de Simmel do que de Weber. Para além dos traços fisionômicos dos personagens e dos impulsos peculiares que os levam a agir estão as formas em que se vão cristalizando as suas ações também peculiares. Essa perspectiva, nas mãos de um analista fino como ele, permite um rendimento elevado nas análises de configurações pontuais de personagens e de relações. Perde-se, por outro lado, aquilo que o enfoque weberiano propicia, que é trazer à tona as tensões intrínsecas à conjugação de orientações diferentes da ação. É um pouco por isso que a escrita de Sérgio Buarque não é crispada, nada tem de angulosa, mas ao contrário parece amoldar-se aos temas na medida em que os expõe. É por isso que a leitores menos atentos pode passar despercebido o impulso crítico da obra.
Posto à distância do seu solo de origem, Sérgio Buarque percebe quanto ele é mal cultivado. Mas, ao converter essa percepção em refinada experiência intelectual, converte o arraigado e o desterrado, o cultivo original e o implante, o mundo pretérito e o mundo a ser construído em matéria de uma obra que retira sua dinâmica da capacidade de colocar o tema das raízes num campo de referências cruzadas que permitem tratá-lo num registro crítico e não apologético; radical, enfim. Pois as raízes de que ele fala aludem àquilo que afinal importa: aos princípios formadores da sociedade brasileira, cuja reconstrução histórica abre caminho para desentranhar-se do emaranhado das raízes e repensar a tarefa da formação.
Gabriel Cohn é professor titular do departamento de ciência política da USP e autor de “Crítica e Resignação” (ed. T.A. Queiroz) e “Weber” (ed. Ática), entre outros.
Disponível no site http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2306200207.htm (acessado no dia 19/09/2016 às 3h30).