Gilberto Barbosa dos Santos
Entre tantos temas que poderia tratar nas linhas que se seguem, optei por enfocar questões alusivas ao Brasil. Explico-vos, meus caros leitores: a cidade está em comoção por conta da morte de uma criança que não conseguiu chegar aos seus dois anos de vida. Embora muitos digam, propalam aqui e ali suas admoestações sobre o fato, prefiro aguardar mais um pouco os desdobramentos das investigações policiais – neste momento em que confecciono essa enunciação, ainda não tinha as informações sobre o desenrolar dos trabalhos das autoridades policiais. Em virtude disso, entendo que posso seguir em direção à outra temática, sem, no entanto, perder a problemática envolvendo a mãe, o padrasto e o pai da vítima. Neste sentido compartilho com vocês, meus caros, um pequeno fragmento do romance Uma vontade louca de dançar, escrito por Élie Wiesel. Logo no início de seu enredo, o narrador nos diz que “mais cedo ou mais tarde, chegaremos lá. Mais tarde para quem? Para o homem envelhecendo que sou, e que, semelhante àquele mendigo convidado ao festim dos deuses, implora ao futuro a esmola de alguns anos” [Bertrand Brasil, 2008, p. 12-13].
Somente esse excerto nos suscita diversas reflexões, entretanto, creio que seja interessante acrescentar outros olhares, por exemplo, aqueles fornecidos pelo pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940) em seu ensaio “Sobre o conceito da história” [São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 223]. Segundo ele, “o cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final”. Sempre fico aqui tentado a avançar nessa reflexão, objetivando compreender, a partir de um pequeno texto como este que vos escrevo, meus caros leitores, perguntando o valor da vida humana, mais ainda: de um ser que não chegou a completar 24 meses de existência, sendo ceifada de forma bestial? Não cabe ao cronista ou coisa assim, sentenciar quem quer que seja, mas apenas procurar nos fatos históricos que contribuirão para suas enunciações, explicações ou algo semelhante para entender quais os motivos que levam um ser que se pretende humano investir de maneira bestial contra uma criança? Quase sempre formulo essa inquirição aqui e também cá comigo mesmo, e, por mais que eu tente encontrar uma resposta plausível, não a encontro e olha que anos vão se passando, a tecnologia recheando nossas vidas e o homem permanece em seu estágio primitivo, para não dizer instintivo.
O escritor carioca Machado de Assis (1839-1908) tem uma crônica significativa intitulada O punhal de Martinha, no qual ele narra a reação de uma moça, no interior baiano lá em meados do século 19, que, diante da ameaça de um sujeito que lhe importunava, saca o canivete que trazia consigo e desfere golpe fatal em seu algoz. Nesse caso do enredo machadiano, fica evidente que configura legítima defesa. A enunciação é significativa porque o autor faz comparações com outros fatos históricos em que os pesquisadores se desdobram até hoje. Posto isso, creio que seja interessante deixar o campo ficcional e me atentar ao universo concreto e real da esfera humana. Desta forma, como diz a autora do livro Desapegar-se com Schopenhauer, Céline Belloq, “a filosofia sempre teve a ambição de melhorar nossa vida fazendo-nos compreender quem somos” [Petrópolis, RJ: Vozes, 2021, p. 7]. Se isso é fato, faço-te meu caro leitor, uma pequena interpelação: qual é a natureza de um ser que violenta uma criança, levando-a a óbito? A interpelação aqui se escuda na observação, segundo a qual, perguntar ainda não ofende e nem sentencia quem quer que seja. Posto isso, me parece salutar acrescentar que, segundo a autora do livro em tela, “uma nova maneira de agir e de viver implica sempre também uma nova maneira de pensar e de se conceber” [p. 7]. Olhem bem, meus caros, quando ela diz “se conceber”, me parece que significa se pensar enquanto sujeito social.
Diante do exposto, creio que seja importante me concentrar no título da reflexão de hoje, isto é, o localismo e o globalismo em nosso país. O que se entende por local e o que se compreende por global. Claro que o mundo, contrário ao que acontecia há um ou dois séculos, chega nos lares brasileiros através de uma miríade de televisões, recheando e povoando o imaginário coletivo, contudo, isso não significa que comportamentos bestiais sejam frutos de imagens que podem suscitar agressões de diversos naipes, inclusive violências psicológicas praticadas contra as mulheres e outros sujeitos que os agressores acreditam ser-lhes inferiores. Desta forma, é preciso tentar compreender onde foram parar os mecanismos de controle usados contra ações semelhantes às que a história retrata, como por exemplo, a daquela madrasta que matou o enteado após sucessivos espancamentos? Aquela pessoa foi sentenciada, contudo, se assiste aqui e alhures sucessivas formas de agressões contra as crianças indefesas. E as mães, onde estão que não defendem com unhas e dentes seus filhos?
Conforme Celine Belloq, “somente depois que já tivermos mudado nossa maneira de pensar, de sentir e de agir é que poderemos nos interrogar a respeito do quadro mais amplo de nossa vida e seu sentido” [p. 7]. Interessante indagar, aos seres que se desejam ser humanos algum dia, uma quantidade significativa de reflexões, começando, por exemplo, se perguntando como é possível uma mulher aceitar silenciosamente que sua filha seja violentamente assassinada dentro do próprio lar? Essa inquirição tem respaldo no fato de que crimes dessa envergadura acontecem em vários locais espalhados pelo Brasil afora e também em outros recônditos do globo, o que me objetiva compreender o texto machadiano. Deixando a crônica oitocentista para outro momento e fixando meus olhares no presente, digo-vos meus caros leitores que ainda me pergunto, com o passar do tempo, como delitos dessa envergadura e crueldade ainda mancham a humanidade? Será que algum dia chegaremos a encontrar uma resposta satisfatória capaz de criar no interior dos seres humanos a verdadeira empatia, o desejo de ser solidário com o semelhante, ao invés de desejar dominá-lo através de horripilantes sevicias que causavam inveja nos torturadores medievais? Enfim, é isso: ou nos repensemos urgentemente enquanto sujeitos sociais, ou nosso individualismo colocará fim à sociedade e não haverá mais como frear os instintos de pessoas que se querem racionais, mas destroem tudo o que se pensa ser civilizado na conduta humana.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.