Gilberto Barbosa dos Santos
Entre idas e vindas das salas de aula, na condição de docente e aluno, sempre fui questionado sobre o meu objeto de pesquisa: a literatura como interface das ciências sociais. Ou seja, como e por que a ficção pode ser utilizada para se pensar um processo histórico e socioeconômico, como é o caso do Brasil nas primeiras décadas do século XXI? Entendo ser necessário tecer alguns comentários iniciais para, em seguida, tentar apontar como os romances, contos e crônicas que recheiam o nosso cotidiano de leitor podem ser úteis para se pensar o país em que vivemos.
Em primeiro lugar, recorro ao escritor francês Marcel Proust que, em um pequeno livro intitulado Sobre a leitura afirma “na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar”. Ou seja, o ato de ler por si só já é significativo, mas quando é feito com objetivos específicos, as obras literárias podem dizer muito mais do que a sua simples enunciação repleta de personagens que, podem ter existido ou não no mundo concreto, contudo, sua função dentro do enredo é fornecer subsídios para que leitor compreenda o texto, não somente pelo que se diz, mas também pelo que seu autor pretendia com a sua narrativa.
Desta forma, entendo ser válida a assertiva do filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, segundo a qual “[…] o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra”. Sendo assim, ao me debruçar sobre os folhetins ou romances machadianos, tenho a possibilidade de compreender o século XIX, mais especificamente a partir da segunda meta do Oitocentos no Brasil. É preciso ter claro que é nesse momento que a Monarquia começa o seu declínio, culminando com a sua queda em 1889. Desta forma, analisar os périplos do advogado conservador Batista, personagem do romance Esaú e Jacó, é para nós, leitores, a possibilidade de entender como a política de hoje tem muito da que era propalada no passado escudada na prática imperial do “beija-mão” e da dança das cadeiras – Conservadores e Liberais. Como o próprio Machado alerta seus leitores em Memórias póstumas de Brás Cubas, a Monarquia se foi com D. Pedro II, mas ficou as ações reordenadas pelos republicanos que não eliminaram os resquícios da Corte, o que pode ser observado na nomeadas dos prédios em que os governos funcionam: Palácio disso e daquilo.
Outro que coloca seus leitores no século XIX, porém, com conexão de sentido no presente é Aluísio Azevedo, que legou ás gerações futuras os romances O cortiço e Casa de pensão. Embora a sua abordagem seja a do Brasil Imperial, as condutas, manias e vícios de uma patuleia sem cidadania, podem ser detectadas no presente, como por exemplo, a visão que a sociedade tem das populações que se encontram nas escalas inferiores da sociedade, inclusive, conforme o historiador Sidney Chalhoub apresenta em seu trabalho Cidade febril, designando os integrantes dessas categorias como formadores das classes perigosas. Conforme relatei no meu artigo sobre violência policial e racismo no romance Bandeira negra, amor, essas observações oitocentistas estão incorporados no etos formador de nossa subjetividade a ponto de um descendente de escravo ser confundido ou definido como marginal. Essa constatação também foi feita por um sociólogo brasileiro em seu livro A cabeça do brasileiro, o que evidencia o que afirma a historiadora Kátia Mattoso em seu trabalho Ser escravo no Brasil. Segundo ela, o sistema escravista manteve algumas de suas restrições mesmo após a extinção do escravismo, portanto, o negro alforriado não é um ser totalmente livre.
Voltando ao mundo ficcional como ferramenta que me possibilita penetrar em espaços que podem ser impossíveis de entrar, como por exemplo, o século XIX formador duma espécie de Nação brasileira escudada numa burocracia aristocratiza e refém duma plutocracia que sangra os cofres públicos eliminando as pequenas chances que os pobres, de hoje e de ontem, têm para galgar, num amanhã não muito distante, uma melhoria em suas qualidades de vida, chamo a atenção dos meus narratários para o capítulo Um gatuno, que compõe o penúltimo romance Esaú e Jacó. Nele, o leitor atento encontrará passagem em que um negro é perseguido pela Força Público sob a acusação de ter furtado uma carteira, mas quando é capturado, afirma que não havia roubado nada e que era um homem livre. A enunciação não oferece mais detalhes sobre o ocorrido, contudo, me permite compreender que somente o fato de a personagem ser forra já lhe daria o direito de não ser visto como escravo, portanto, ser violentado em sua intimidade.
A partir dessa abordagem, é possível especular que Machado de Assis e outros escritores do século XIX estavam fazendo história ao ficcionalizar suas visões de mundo, conforme José de Alencar fez em seu romance O tronco do ipê? Parece-me que Aristóteles em sua obra Poética, pode dar uma significativa contribuição para que o meu objetivo seja alcançado. De acordo com o filósofo grego, “o poeta conta, em sua obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam ver a acontecer, e que seja possível tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade”. Segundo Aristóteles, o historiador se diferencia do poeta porque relata “os acontecimentos que de fato sucederam, enquanto o outro fala das coisas que poderiam suceder. E é por esse motivo que a poesia contém mais filosofia e circunspecção do que história; a primeira trata das coisas universais, enquanto a segunda cuida do particular”. Seguindo esse raciocínio, não se pode atribuir aos escritores o adjetivo de historiadores, contudo, suas produções artísticas possibilitam aos pesquisadores e investigadores sociais apreenderem um quantum de uma determinada realidade que já foi consumida pelo tempo, entretanto, deixou para as gerações futuras um legado, seja positivo ou negativo, pois tudo depende da perspectiva de quem observa o dado, cuja análise deve conter uma significativa dose de racionalidade e desapegada dos interesses do observador.
Por fim, colimando o meu interesse de cientista social que se debruça sobre obras ficcionais para entender um Brasil em que os indivíduos não são possuidores de cidadania, mesmo gozando pifiamente dos três direitos: civil, político e social. A construção, desse homem público e político, passa pelos bancos escolares, porém, conforme a vasta bibliografia sobre o assunto deixa claro, os bancos escolares nos primórdios do Estado Brasileiro, isto é, quando da chegada da Família Real em 1808, não foram ofertados aos pobres e degredados trasladados para cá apenas como mecanismo de povoamento das novas terras. A Corte veio, mas com ela aporta a prática de privilégios nobiliárquicos, cujos integrantes vão formar a casta de burocratas que daria condições do reino português ficar aqui até que cessasse a sanha napoleônica pelo poder na Europa. Não é só a literatura brasileira que dá conta dos atos passados, vislumbrados no hoje do agir humano, mas também as letras francesa, inglesa, alemã e americana fornecem ao leitor excelentes exemplos, como os que ilustram as páginas de Os Miseráveis, de Victor Hugo.
Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e gilberto_jinterior@hotmail.com .