Maioridade sentimental

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

         Dizem que, ao atingir dezoito anos, o ser que se pretende humano atinge a maioridade. Resta saber o que significa isso, meu caro leitor, pois na chave filosófica de Kant, aquele pensador alemão que, por medo do futuro fazia tudo igual todos os dias, o homem só chega nesse ponto quando se torna responsável pelo que pensa, logo deseja. Sendo assim, creio que a criança só aprende a falar quando entende o significado do que diz, daí muitos quarentões, cinquentões ou os trintões apenas chorarem quando lhe tiram o brinquedo, seja ele sexual, político ou de poder, podendo ser também outros penduricalhos que, a exemplo de Midas, lá da Grécia Antiga, tornam seus portadores, tão solitários quanto uma formiga no meio do Oceano.

Mas por que estou tratando deste assunto, isto é, a distinção entre maioridade crítica e civil? Creio que é para abordar outra temática que tem a ver com o mesmo número que, associado ao calendário gregoriano, significa um ano e meio e, foi justamente essa a quantidade de estrelas que consegui contar entre uma piscada e outra duns olhos que me pareceram enigmáticos, contudo, que me fizeram atingir a maioridade sentimental. Sim, meus caros leitores – uso o plural por achar que neste ponto de minha enunciação eu tenha mais de um interlocutor – é emancipação do sentir. Posto isto, creio que estejam se perguntando o que seria essa maioridade no campo do amor? Começarei abordando Platão e Aristóteles, mas acho que não daria para me enveredar por caminhos, pois tornariam essa crônica enfadonha. Sendo assim, melhor ir aos fatos propriamente dito.

Como não sei dizer nada sem uma devida observação, é sempre bom olhar com muita acuidade sobre tudo, sobretudo se for sobre o ser humano. Coisas de quem sonha com o mundo prefeito, chegando ao ponto de se colocar no lugar de Kant e entender a sua vida hermética. Por analisar em demasia, digo pouco e quando verbalizo alguma coisa sempre há os senões na turma, como seu fosse integrante de alguns grupos de amigos, mas vá lá, quem sabe eu seja, todavia, prefiro um amigo do que dezenas de conhecidos e foi numa dessas preferências que os dezoito olhares ou piscadelas me abriram como um relâmpago numa noite de tempestade em que há apenas uma árvore para servir de abrigo e o raio mira o arbusto, mas como é míope, acertou este que vos escreve, meus caros leitores.

Deixemos os raios e demais relâmpagos para outra crônica e nos concentremos na luz que emanava daquelas pupilas que combinavam com os lábios magníficos da musa que me inspirou a confeccionar as linhas anteriores e as que se seguem numa clara tentativa de refletir sobre o brilho, sobre a boca, a beleza da xícara e também daquela mão que a levava aos lábios. Qualquer poeta que estivesse presenciando a cena, com certeza, confeccionaria singularíssimos verbos tornado versos com belíssimas rimas, mas como não sei poetizar, apenas tentar conversar contigo, meu caro leitor, prefiro apenas pensar no gosto da bebida misturada ao sabor dos lábios de quem a sorvia. Preciso reiterar-vos que são necessárias razão e muita racionalidade kantiana diante das fortes emoções provocadas por aquele ser divino que conversou comigo pela primeira vez depois da primeira golada na xícara de café em que teve os lábios mergulhados em significativa bebida. De imediato fui alçado há um pretérito não muito distante, mais especificamente na cantina do Diretório Central dos Estudantes duma importante universidade brasileira. Os fatos se passaram como estão aqui narrados, e aconteceram justamente no final de tarde depois d’eu passar o dia lendo microfilmes contendo reportagens jornalísticas dum tempo que não volta mais, portanto, inenarráveis. Em virtude de seu caráter singular, fornece subsídios para se entender o hoje.

Já no balcão da cantina, pedi uma cerveja. De posse da garrafa e dum copo me sentei na primeira mesa que vi disponível. Após a primeira golada, eis que escuto alguém perguntando se poderia ocupar um lugar vago ali. Sem pestanejar e prestar muita atenção, assenti e continuei conversando com as espumas do meu copo.

“-Tenho observado que você é meio taciturno”, disse a pessoa que havia acabado de chegar.

“- Taci…  o quê”, interpelei a minha mais nova interlocutora.

“- Algo como misantropo”, explicou a pessoa.

“- Ah sim! Não! É que não tenho o que dizer as pessoas, então, prefiro que elas digam primeiro e provavelmente isso nunca ocorreu ou acontecerá, seja no passado ou no futuro, no presente é a primeira vez que alguém começa o diálogo”, tentei explicar àquela ouvinte.

“- Pois bem! É o que tento lhe dizer”, afirmou a minha interlocutora.

Meus caros leitores, interrompo a conversa para dizer a vocês que a pessoa que tentava arrancar do meu ser palavras com conexão de sentido, era uma mulher.

“- Eu entendi, mas não sou nada disso”, respondi.

A universitária ficou ali desejando seguir em frente com a conversa, mas não sabia como dar sequências aos diálogos vindouros, então resolvi ajudá-la.

“- Posso te dizer uma coisa”, inqueri a estudante.

Com o assentimento, passei ao próximo passo, como se toda conversa fosse o caminhar do Kant lá na sua Prússia do século XVIII, mas eu não estava lá e sim aqui, ou melhor, nos meus tempos universitários.

– Houve um dia aqui mesmo nessa cantina que fiquei com inveja de uma xícara de café. Ela foi levada aos lábios conduzida por uma mão divina com dedos maravilhosos. Fiquei pensando como seria ser tocado por aqueles cinco dedos esmaltados com cores cintilantes, que inspiravam paixão, tesão, amor e tudo aquilo que o coração deseja quando está apaixonado.

“- Do que você está falando”, me perguntou Adelaide – eis aí o nome de minha interlocutora, meus caros leitores.

“- Da pessoa que me perguntou”, expliquei à universitária.

Ao ouvir a minha resposta, a estudante de História quis saber mais sobre o olhar que que o narrador havia lançado sobre a moça que degustava o café. Fiquei todo encabulado, mas já tinha iniciado a temática, optei por falar da xícara que saboreava tais lábios que me lembravam o refletir sobre tudo e mais algumas coisas. Fiquei cá imaginando qual sabor teria aqueles tentadores lábios que pareciam labirintos – a exemplo do que diz uma velha canção -, cuja saída era o portal que me conduziria ao paraíso, daí o desejo de compreender a energia que duas pessoas desprendem quando se beijam para celebrar o mais sublime dos sentimentos emanados de corações que se encontram durante uma explosão atômica.

Feliz foi a xícara que, depois de terminado o café, ficou marcada pelo batom cuja tonalidade era dum rosa chegado ao vermelho como querendo combinar com as cores cintilantes do esmalte que a minha musa inspiradora usava naquela manhã dominical numa padaria localizada numa travessa duma importante cidade brasileira. Poderia, meu caro leitor, lembrando daqueles dias de gloria, tecer mais comentários sobre aquelas cenas, mas creio que a minha interlocutora, daqueles momentos, entendeu bem que o mais importante não é ser xícara, mas entender o que esconde um singelo gesto de ingerir uma bebida para lá de brasileira numa determinada manhã.

“- Minha boca é tudo isso”, me perguntou Adelaide.

“- É uma verdadeira constelação que pode nos calar a voz, como diz uma canção antiga, com um singelo toque ou um pequeno pronunciamento ao conjugar o verbo ‘amor’ em conjunção com a paixão”, respondi à minha interpelante.

“- Parabéns! És um poeta”, explicou a futura historiadora.

“- Não, minha cara. Sou apenas um sonhador que acredita um dia ser possível sentir o sabor e a potência de seus lábios, cujo contemplador atingirá a maioridade crítica ou sentimental. Mas como todos precisamos de utopia, a minha talvez seja essa, a de chegar a esse estágio”, respondi à Adelaide, me levantando para pegar outra bebida, pois havia esvaziado a garrafa. Quando retornei havia apenas o desenho de uma rosa sobre a mesa com os seguintes dizeres: “- Foi um prazer lhe conhecer. Quem sabe os nossos caminhos não se cruzam por essas paragens, já que o mundo por mais cinza que seja, esconde em seu etéreo, maravilhosas surpresas para os corações que sabem amar”. No lugar onde deveria haver o nome da signatária, estava grafado em letras maiúsculas um A gráfico. Fiquei pensando nos lábios do passado se materializando na atualidade num simples ato de levar à boca uma simples xícara contendo café.

 

Gilberto de Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis. E-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.

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