Livros! Para que te quero sempre livres

Gilberto Barbosa dos Santos

 

“Eu sou o resultado inacabado das buscas de minhas utopias. Sonhei muito, batalhei mais e realizei pouco, mas as realizações só foram possíveis graças aos sonhos e às batalhas para conquistá-las”. É assim que o professor de Língua Portuguesa e Literatura, Geraldo Soares Malta, inicia seu segundo livro “Na trilha da utopia” e é com esse olhar que começo as minhas reflexões de hoje. Malta diz ainda que esse pouco “realizado é motivo de orgulho, pois avançar alguns metros contra um ciclone é realização gigantesca. Nessa sociedade de mistura, migrantes, conspirações, amarras, desoportunidades, belas mentiras, ocultações de verdades, manipulação de pecados e virtudes, minha utopia era virar tudo ao avesso e escancarar outras histórias, comportamentos e possibilidades. Ainda não foi possível, mas a caminhada permanece” [MALTA, Geraldo. Na trilha da utopia. SP: Scortecci, 2020, p. 11]. Significativas observações iniciais, principalmente no que diz respeito à utopia, que no original, significa “em lugar algum”, entretanto, aquele ser que, mesmo diante dos sistemas peritos de que fala Anthony Giddens em seu livro As consequências da modernidade [SP: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991], não tenha a sua para viver, como dizia Mikhail Bakunin (1814-1876), tem na boca um cadáver.

Posto isto e diante da nomeada do meu texto, digo-te meu caro leitor que também as tenho e, a exemplo de Malta, a minha jornada até a essas linhas que te dedico, também foi árdua, e por ser profícua está longe de fazer com que desistamos de ver um dia a nossa utopia se transformar em realidade, mas antes, ainda há o campo da ideologia e sobre esse tema há diversas reflexões, como as de Karl Mannheim (1893-1947) que tem uma obra específica sobre o assunto: Ideologia e Utopia. Há ainda o trabalho de Paul Ricœur (1913-2005): A ideologia e a utopia. São materiais referenciais, a exemplo do texto A ideologia alemã, de Karl Marx (1818-1883) para se pensar a questão, principalmente na transição de uma condição a outra. Todavia, me parece que o caso aqui, antes de dizer que uma coisa se transpõe na outra, deve-se definir não a utopia em si, mas o seu conteúdo. Daí o motivo eu me levou a recorrer ao livro de crônicas, contos e poemas do professor Geraldo Malta, ou seja, para tentar entender um pouco qual seria a minha utopia nesses tempos pandêmicos em que muitos de nós se encontram confinados em isolamento social e há uma grita aqui e outro ali sempre pautando o conteúdo da vociferação pelo universo do econômico e outros que se deixam levar pela cultura da informação rasteira e mentirosa divulgada por meio de Fake News. Essa prática não é nova, basta olhar para as sedições tenentistas e as famosas Cartas falsas atribuídas ao presidente Arthur Bernardes (1875-1955) que governou o país entre 1922 e 1926.

Tendo essas observações como premissas, em que mundo gostaria de estar neste exato momento? Posso responder rapidamente: numa sociedade em que os homens tivessem atingido a maioridade crítica, como desejava o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Mas como esse universo abstrato e sublime pode ser concretizado? Antes de tentar responder-te meu caro leitor, busco respaldo em dois textos pequenos, contudo, de significativa importância. O primeiro é o livro Sobre a leitura, do escritor francês Marcel Proust (1871-1922) que, em determinado ponto de sua narrativa afirma que os livros são ferramentas importantes que nos abrem portas de um mundo que não nos seriam desfraldadas sem suas leituras. O segundo argumento vem do conto Teoria do medalhão, de Machado de Assis (1839-1908). Neste enredo, o narrador diz que antes do indivíduo querer mudar as coisas por meio das leis, faz-se necessário transformar os costumes. Se o meu leitor observar o seu presente a partir do legado tradicional, naquilo que Emile Durkheim (1858-1917) chama de solidariedade mecânica, compreenderá por que tantos querem o retorno dum tempo que jaz na sepultura, tendo como seu coveiro a democracia e o conhecimento. O primeiro é extremamente importante para uma sociedade que se pensa e se deseja moderna e o segundo é fruto do primeiro e também do acesso aos livros e outros meios de informações que deverão ser transformados em conhecimento através de mecanismos que permitam ao indivíduo social fazer as devidas conexões de sentido e libertar-se de prisões dogmáticas que tem evitado o homem atingir sua maioridade crítica.

Sendo assim, de passagem recordo aqui uma fala de Rui Barbosa (1849-1923). Para ele, um país se faz com homens e livros. Todavia, como é possível acontecer isso pelos limites geográficos do país se não há tantos leitores, pois muitos estão, conforme aponta a jornalista Patrícia Campos Mello em seu livro A máquina do ódio [SP: Cia das Letras, 2020] acostumados a apenas lerem enunciados rápidos disseminados pelas redes sociais e demais aplicativos robóticos. Entendo que se o brasileiro médio tivesse o hábito de ler mais, talvez possuísse melhores condições de discernir sobre o que é verídico numa informação veiculada por meio de robôs e outros dispositivos eletrônicos objetivadores da alienação do eleitorado e do cidadão em geral. Dentro desta clave de Sol, compreendo a dificuldade que as pessoas apresentam quando vão discutir determinados temas. Creem-se portadores da verdade absoluta pautadas por leis imutáveis, entretanto, não conseguem ver a temática para além do que ela se apresenta para nós seres humanos. Digo-te, meu caro leitor, essa transposição de um dado, aparentemente verídico para o real, ou seja, para a realidade mesma, só pode ser feita a partir duma profunda reflexão. Recordo-me aqui do dia em que, tendo debatido com um conhecido sobre um assunto específico, eu lhe solicitei a leitura da obra Os onze, narrativa sobre os bastidores do STF [Supremo Tribunal Federal]. Obtive como resposta que não tinha tempo para essas besteiras de ficar percorrendo páginas de livros. Sou e serei sempre pela liberdade, jamais defenderei autocracias e seus autocratas, portanto, respeitei a opinião do meu interlocutor, no entanto, o conteúdo que usava para defender suas ideais era pueril e tolo, pois carecia de mais leituras e conexões de sentido. Portanto, havia ali nele um gosto amargo pela metonímia. Deixei-o com suas certezas apressadas e coloquei-me a caminho, já que haviam várias enunciações romanescos, filosóficas e utópicas me esperando em casa.

Voltando ao início dessa prosa, se é que tu, meu caro leitor possa considerar essas linhas confeccionadas num final de tarde depois de teletrabalhos e atividades online, atentar-me-ei para o que considero ser a minha utopia, que não me parece ser muito diferente da apresentada por Geraldo Malta. Talvez nossas divergências residem no campo da ação e da realização das ideias que há muito tempo acalentemos, todavia, penso que devemos nos concentrar mais em nossas convergências do que naquilo que divergimos. Não sei quanto a ele, mas eu almejo uma sociedade em que os sujeitos sociais tenham plena consciência de que suas ações deveriam ser realizadas levando em conta suas universalizações, de acordo com o que diz o Kant em seu Fundamentação para a metafísica dos costumes, pequeno livro de introdução aos trabalhos Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica do juízo. Portanto, minha sociedade, a exemplo da desejada pelo humanista inglês Thomas Morus (1478-1535), é aquela que em que o ser humano não necessite, de acordo com o escritor francês Vitor Hugo (1802-1885) vender-se, prostitui-se ao outro que o expolia em nome dum contrato desigual regido pelo falso pretexto de que todos são livres. Que todos os sujeitos sociais sejam de fato livres e não prisioneiros de ideologias caquéticos, de presunções, orgulhos, vaidades. Que o conhecimento e a ciência não sejam escorraçados como vem acontecendo nos últimos tempos no Brasil. Em virtude dessa condição repressiva é que faço coro à observação da socióloga Ana Cardoso no Prefácio do livro Novas contistas da literatura brasileira: “onde há repressão, há resistência”, e o desejo de livros serem livres, bem como o conhecimento.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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