Listagem de não desejos

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Hoje desejo fazer uma pequena lista daquilo que não pode realizar, ou melhor, fazer numa sociedade que se pretende justa. A primeira coisa que me vem à mente neste exato momento em que preparo o receituário para os meus leitores, sempre na expectativa de os tê-lo em grande número ou, se crível, em quantidade suficiente para que a reflexão que se segue faça eco ou coisa parecida. Se for possível acreditar que somente com educação é que uma Nação conseguirá se construir enquanto um país descente, no qual, nenhum morador – a exemplo da personagem central do romance Madame Bovary – desejará estar em outro lugar que não em sua própria Pátria, então o meu primeiro pedido é para que não vilipendie professores, educadores e todos aqueles que fazem uma instituição escolar funcionar. Mas por que tal solicitação, como o primeiro de minha relação, deve se estar perguntando aquele indivíduo que chegou até o final deste primeiro parágrafo.

De acordo com o pensador grego Platão, em seu clássico livro A República, uma sociedade justa só é possível através de uma Paideia, isto é, uma espécie de pedagogia que, ao ser aplicada visava a constituição de um cidadão perfeito. Lógico que se o meu leitor tiver curiosidade e desejar se aprofundar nas linhas confeccionadas pelo platonismo, pode começar entendendo que, para o discípulo de Sócrates, o mundo das ideias é o local em que a perfeição reina, todavia, quando o ser que se deseja um humano tenta colocá-las em prática, isto é, no âmbito do concreto, a coisa destoa e o desejado acaba por não ser realizado. Mas por que será que é tão complicado colocar em prática aquilo que se almeja no campo da subjetividade? Acho que não é preciso voltarmos – e aí eu mudo a pessoa gramatical para me incluir nesse olhar singular – no panteão grego para entender que o processo todo é complexo em virtude das especificidades dos sujeitos que, mesmo sendo diferentes, são idênticos nos seus quereres, me fazendo entendê-los como promotores de movimentos uniformemente variados, ou seja, diferentes nas ações, mas iguais em seus desejares, portanto, mantenedores de uma desigualdade ferina, para não dizer sanguinária.

Se numa sociedade justa não seja aceitável o descaso com a educação em qualquer nível que seja, também não se pode coadunar com cenas em que pessoas correm atrás do caminhão que recolhe lixo ou se digladiem para conseguir levar para casa um quantum significativo de osso. Quando o país chega a esse ponto, fico com a mesma sensação daquele narrador do parnaso Manuel Bandeira [1886-1968] que viu um bicho revirando o lixo e para o total assombro dele, quem mexia nos detritos e dejetos era o homem. Em um pequeno trecho do seu livro Da liberdade individual e econômica (São Paulo: Faro Editorial, 2019, p. 24), o pensador britânico John Stuart Mill (1806-1873) afirma que “uma pessoa pode causar mal a outras não só por suas ações, mas também por sua inação, e, em ambos os casos, é justo que preste contas pelo dano”. Tendo esse olhar como premissa, é possível especular que a fome que assola esse país tem culpados para não me manter no singular e cada um deve absorver o seu cadinho de culpa e atuar para que a coisa mude, entretanto, como isso é possível, se no mundo republicano, para não dizer dos governantes, o que reina é completamente o contrário, já que o público se confunde com o privado?

Tendo essas observações como premissas é possível vos dizer, meus caros leitores, que numa sociedade justa, seria injusto haver uma educação a partir duma política governamental em que o docente é massacrado em todas as instâncias que se pode imaginar e não adianta tentar tapar o sol com a peneira, como se diz no jargão popular e depositar toda a culpa nas costas dos educadores, pois conforme afirmei aqui certa vez, a sociedade virou às costas para o que acontece no interior das unidades escolares, principalmente no que diz respeito às diversas formas de violências praticadas contra o profissional da educação, desde a forma mais vil que é a agressão física, passando pela verbal e o total desrespeito para com aqueles que trabalham ali diariamente objetivando ajudar os discentes a transformar informação em conhecimento. Há miríades de registros de todas as formas de vilipêndios praticados contra o profissional que forma todos os outros, entretanto, parece que essa especificidade da docência foi apagada da memória de todos, passando a ideia de que há uma amnesia quase que geral, principalmente dentro das cercanias brasileiras. Desta forma, não seria exagero algum deste que vos escreve, afirmar que a sociedade brasileira padece de um apagão geral sem que exista alguém que deseje restituir a iluminação no campo do saber, ou pelo menos nos espaços em que os múltiplos saberes são produzidos beneficiando a sociedade como um todo.

Junte-se a essa listinha de não querenças em uma sociedade em que as desigualdades sociais seriam mínimas e as diferenças jamais condenadas por dogmas medievalistas, a constituição de um corpo de leis que abrangesse o maior número possível de cidadãos, se possível, todos. Nesse contexto de justiça, não haveria um monarca ou coisa que o valha, mas tão somente um corpo jurídico que aplicasse o conjunto de leis que rege a vida em sociedade. A pergunta que fica é: quem seriam os sujeitos que comporiam esse colegiado? Pessoas portadoras do notório saber, como se pensa no presente numa prática pedagógica esdruxula em que o maior prejudicado é o estudante que se prepara para, quem sabe, um dia fazer parte desse agrupamento de magistrados com condições de fazer com que a legislação seja observada a contento de todos e não apenas ser usada contra determinados segmentos, principalmente aqueles pertencentes a outras etnias. Seria possível haver mesmo tal sociedade em que o sobrenome, ou uma velha prática nobiliárquica que a República, edificada na madrugada do dia 14 para o 15 de novembro de 1889, desejou sepultar, mas o máximo que conseguiu foi acomodar os velhos conselheiros, desembargadores e outros portadores de baronatos e diferentes quinquilharias da velha nobreza lusitana no novo sistema que, desta forma, já nasceu morto na medida em que não conseguiu eliminar práticas do “favor”, do “beija-mão” e do famigerado “você sabe com quem está falando”.

Parece-me, meus caros leitores, que na sociedade justa imaginada por Platão não haveria a troca de votos por comida, promessas disso e daquilo, inclusive aquelas que dizem respeito ao universo da saúde e que “daqui para adiante haverá eliminação de filas para exames” disso e daquilo. Há ainda promessas farisaicas, segundo as quais, no futuro viver-se-á a era do pleno emprego, contudo, não se segue à essa promessa explicações de como será a multiplicação de postos de trabalhos num momento no qual a tecnologia substitui a mão de obra manual por máquinas. Um exemplo desta abordagem é a mecanização do corte de cana que, até bem pouco tempo atrás, era feito manualmente após a queima da palha que reveste as moitas do canavial. Então, fico cá com uma interpelação significativa: como será possível ampliar a qualificação da mão de obra se o ambiente formador, ou seja, as escolas e os processos educacionais estão constantemente sendo vilipendiados, massacrados e agredidos por parte considerável da sociedade? Enfim, como podem analisar aqueles que chegaram comigo até essas últimas linhas, não é possível haver alteração no atual quadro se o cidadão não mudar o hábito de se achar superior ao seu semelhante por conta de um sobrenome medieval.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

 

 

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