Gilberto Barbosa dos Santos
Como é de praxe quando me dirijo aos meus leitores neste espaço, sempre há uma interpelação buscando compreender uma querela qualquer, e desta vez não será diferente, pois há uma distinção entre o ser e o homem, de modo que todo aquele que pretende ser considerado um humano, precisa entender-se a si mesmo como um exercício para o devir. Um certo pensador, ao usar a ironia como recurso filosófico e também os diálogos, sempre desejou saber não sobre o sujeito, mas sim aquilo que o adjetivava enquanto homo sapiens sapiens, de forma a fazer com que o seu interlocutor refletisse não a partir do verbo, mas sobre aquela coisa que ele considerava significativo em sua existência. Desta maneira, as conversas sempre caminhavam para determinadas contendas interpelativas objetivando sempre levar o interlocutor a descobrir-se a si mesmo a partir do seu interior e não do exterior. Esses olhares socráticos persistem até o presente.
Creio que o primeiro passo na atualidade é desejar saber qual mundo é possível construir levando em conta no qual se vive. Posto isto, quem poderá dar início à obra de uma nova realidade edificada a partir dos escombros dessa civilização que tem avanços tecnológicos consideráveis, mas é incapaz de produzir um gesto de solidariedade em prol do semelhante que vive em desatino e é desafortunado por vários fatores, entre eles, a grande concentração de renda existente no Planeta, de tal forma que, enquanto poucos desperdiçam quantidades consideráveis de alimentos, muitos passam fome e ainda são responsabilizados pela própria desgraça, como se eles fossem os provocadores diretos pelas mazelas humanas que grassam a sociedade, seja aqui ou alhures. Se o homem conseguir se pensar enquanto indivíduo, ou seja, uno, exclusivo e singular, entenderá que o outro que passa fome poderia ser ele mesmo, entretanto, o medo o torna incapaz de tal reflexão, o levando a muitas concentrações, principalmente no que diz respeito a bens e outros penduricalhos materiais.
É preciso compreender, com a devida acuidade, que uma viagem ao interior do homem é significativa para que ao chegar de lá o viajante seja capaz de elaborar projetos, programas e outras propostas objetivando um devir diferente do universo que se tinha quando ele partiu em direção ao périplo interno. Mas será que temos condições de empreender tal jornada em busca de nós mesmos, isto é, de nossa própria individualidade e a partir daí entender que o nosso individualismo é o principal responsável pelas mazelas que nos cercam? Assim como há diferença entre o verbo empregar e o substantivo emprego, também existe a distinção entre individualidade e individualismo. Todos temos e devemos preservar nossa individualidade, tão atacada no presente por líderes farisaicos com mentalidades medievalistas e práticas metalistas, contudo, isso não pode ser observado quando a questão diz respeito ao individualismo. No primeiro caso, a querela existe em torno do que se é e não do que se deseja ter para si a qualquer preço. Já o segundo diz respeito justamente à ausência de ética, moral e outros preceitos básicos para se viver em sociedade. Aqui, na minha singela compreensão, encontramos em demasia o pronome possessivo dando as cartas buscando um devir que pode significar “escravizar” o outro a partir de mercadorias e outros penduricalhos pós-modernos.
Vejam bem, caros leitores, meu escopo aqui não é o de inculcar em quem quer que seja um quantum, por mais insignificante que seja, de culpa, mas apenas tentar compreender por que, quiçá a quantidade de alimentos que o mundo produz, ainda milhares de pessoas permanecem abaixo da linha da pobreza, perpetuando a sua condição de miserabilidade. E aqui é preciso ter claro sobre qual miséria se enfoca: aquela que leva a pessoa a se prostituir por um prato de comida ou por um cargo que a colocará nos holofotes, por isso, se lança na disputa por pequenos poderes, nichos de adjetivos que não levarão o homem a lugar nenhum, mas apenas satisfazer o próprio ego. Mas aí penso que a questão pode ser mais avaliada a partir das abordagens feitas por Sigmund Freud (1856-1939). Diante do exposto, será que consigo navegar por campo tão intricado que é este da mente humana? Creio que seja interessante evidenciar aqui que há uma diferença entre cérebro e mente. O primeiro é visível e condutor da vida humana a partir dos impulsos eletromagnéticos e produção de substâncias bioquímicas. Acho que é isso, mas caso esteja equivocado, solicito de meus leitores, as devidas correções. Apresentado, de forma bem lacônica essa querela entre cérebro e mente, entendo que seja significativo permanecer na jornada que poderá nos levar a entender o humano a partir do seu ser, isto é, como o último se projeta no primeiro que é corpóreo, concreto, visível, palpável, enquanto o outro é subjetivo, sutil, para não dizer de certa sublimidade.
Diante do exposto até esse ponto de minha pretensa enunciação, será que se faz necessário um retorno à Grécia platônica ou até mesmo aristotélica, sem deixar de lado as abordagens socráticas, para que o sujeito, ou melhor, o indivíduo individualizado consiga entender que, por mais que a sua ação seja una, ela contribui para as mazelas e desníveis sociais que existem no orbe? Compreendo que a resposta seja complexa, mas quando se percorre as páginas de um livro, como o Ética a Nicômacos [São Paulo: Martin Claret, 2014], de Aristóteles, é possível tentar vislumbrar uma luz no final do túnel, como se diz no jargão popular e isso pode acontecer quando o leitor entender que Nicômacos era o pai do autor. Sendo assim, surge uma pergunta básica, levando sempre em conta que o primeiro princípio filosófico é o questionamento: como um filho escreve uma obra sobre ética destinada ao pai? Para alimentar a reflexão dos meus leitores, trago aqui o texto de Immanuel Kant (1724-1804) Fundamentação para a metafísica dos costumes [São Paulo: Martin Claret, 2014]. Nesta clássica obra do pensamento alemão, o filósofo faz uso dos imperativos categóricos para dizer que a ação do indivíduo deve ser tal qual possa ser universalizada. Desta forma, fico cá com a seguinte questão: a quem devemos responsabilizar pelo devir da sociedade senão o próprio ser que pretende ser humano?
Pode-se analisar o coletivo a partir das próprias massas como faz Freud, sem seu livro Psicologia das massas e análise do eu e outros textos [São Paulo: Companhia das Letras, 2019] ou até mesmo através da obra de Elias Canetti (1905-1994) Massa e poder [São Paulo: Companhia das Letras, 2019], mas também é possível navegar pelo mundo material levando em conta as teorias individualistas no afã de entender como e por que os homens são incapazes de construir pacificamente uma sociedade mais harmônica. Creio que Thomas Hobbes (1588-1679), a partir do seu Leviatã [São Paulo: Martin Claret, 2014] pode ser útil em nossa busca pelo entendimento do ser que deseja avidamente se tornar humano, mesmo sabendo que se é, mas não utilizada adequadamente suas faculdades, para usar um termo para lá de enciclopédico, mais especificamente da razão. Enfim, creio que as linhas acima podem nos induzir a refletir sobre quais motivos levam o ser humano a ser mais reativo do que propriamente uma pessoa que age a partir de seus dotes racionais. De qualquer forma, permanecemos na busca constante do desejo do ser que se quer humano.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.