Interfaces entre o social e o literário

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Há coisa de poucos dias estava conversando com uma ex-professora dos tempos de graduação em Ciências Sociais, Elda Rizzo de Oliveira, sobre os múltiplos campos das Ciências Humanas e como eles podem dialogar entre si. A prosa começou por conta duma série de livros destinada a pessoas que objetivam se imiscuir em determinados setores do saber, como por exemplo, a Filosofia, a Sociologia, Literatura, Antropologia, Ciência Política, História, etc. Esta docente, dos tempos de Unesp, ministrou aulas de Teorias Antropológicas e na ocasião problematizávamos diversos aspectos culturais, sendo que na ocasião sua área de pesquisa situava-se no campo do intercâmbio entre Antropologia e Saúde, tendo inclusive produzido significativo livro intitulado Medicina popular. Durante o período em que dei aulas nos cursos superiores de Enfermagem e Fisioterapia na FASSP usei muito esse material associado a outro livro escrito por uma antropóloga da UFGD, cujo título é Protestantismo à moda Terena e uma quantidade significativa de trabalhos acadêmicos que davam conta dos ministrados a cada aula.

Dessa conversa inicial passamos a tratar da interface entre Literatura e Ciências Sociais com um quantum significativo de evidência para a Linguística e Filosofia. Há algum tempo venho pesquisando o intercâmbio entre essas ciências e as Sociais, tendo inclusive produzido uma dissertação de mestrado que se transformou em livro – aqueles que me leem, acho, já tiveram acesso a essa informação. Nesse trabalho, procurei destacar que a República – surgida na madrugada daquele sábado 15 de novembro de 1889 – nada mais foi do que uma mudança na área da nomeada e a deposição do monarca e toda a sua Corte, pois as alterações necessárias para que o Brasil abandonasse de vez os traços escravagistas, coloniais e provincianos, nunca foram adotados. Essas observações, o escritor carioca Machado de Assis (1839-1908) tentou apresentar ao seu público leitor através do seu penúltimo romance Esaú e Jacó que eu analisei, sem esgotar todas as possibilidades de investigações no campo das Ciências Políticas, Literárias, Sociológicas, Históricas, Antropológicas e Linguísticas, entre outras.

No âmbito da semiótica, essa penúltima enunciação machadiana possibilita ao pesquisador trabalhar a questão intertextual do ponto de vista do discurso bíblico. Lembrando que Esaú e Jacó são personagens do Antigo Testamento e as personagens principais do enredo são os gêmeos Pedro e Paulo. Os dois figuram no Novo Testamento e são personalidades importantes na difusão e sustentação do cristianismo em seus primeiros momentos após a crucificação de Jesus, o Cristo depois duma manobra política construída entre os Judeus e o Estado Romano. Seria interessante um trabalho na área do discurso entre as duas enunciações e compreender o sentido que Machado quis objetivar ao usar os referenciais bíblicos para dizer que a Monarquia não findou com a República, já que foi resignificada por aqueles que aplicaram o golpe naquele longínquo sábado primaveril nos fins do Brasil Oitocentista. Ainda em Esaú e Jacó é possível, no campo antropológico tratar de questões significativas para o país, como o sincretismo religioso, tão bem abordado pelo teatrólogo Dias Gomes na peça O pagador de promessas, que deu origem ao filme de mesmo nome e ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes (França) em 1962. Para quem não sabe, a Palma de Ouro equivale ao Oscar, ou seja, o prêmio máximo daquele festival.

É interessante fazer uma comparação com as enunciações machadianas e o que nos indica o cientista social e romancista Sérgio Abranches em seu livro Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro, mais especificamente no tópico A República oligárquica e a absorção do multipartidarismo. Segundo ele, a Primeira República (1889-1930) foi republicana para quem fazia parte do séquito oligárquico, mais especificamente das lideranças estaduais que se fecharam num conluiou para que continuassem a se beneficiar dos prestígios e prerrogativas advindas do governo central. Se o pesquisador arguto analisar os períodos monárquicos, sejam eles dos tempos de D. Pedro I ou no Segundo Reinado, observará que esse arranjo governamental já vinha sendo feito na Monarquia quando se tinha na chefia do gabinete ministerial ora um integrante do Partido Conservador ora um oriundo dos Liberais. No romance Esaú e Jacó há uma passagem célebre em que a mulher do advogado Batista tenta convencê-lo de que este nunca fora Conservador, mas sim um Liberal. O interessante nessa narrativa é que Batista era, sim, inclinado com os conservadores, todavia, os liberais que estavam no poder. Isso na Monarquia, porque nos primórdios da República encontrar-se-á sujeitos que ocuparam cargos na estrutura Imperial e depois chegaram aos principais cargos do Executivo republicano. Abranches indica ainda que desde os primeiros dias republicanos, ocorreram embates entre Executivo e Legislativo, a exemplo do que se assiste hoje no Brasil.

Não é só Esaú e Jacó que possibilita uma miríade de leituras científicas, buscando aquilo que o esmalte, parafraseando o crítico literário Antônio Cândido (1918-2017) escondia, ou seja, a verdade face da sociedade brasileira: escravagista, patriarcal e colonial – elementos que ainda podem ser encontradas no presente quando se analisa as relações sociais e interpessoais dos sujeitos sociais. Há o épico Dom Casmurro, um texto do fim para o começo e uma narrativa alusiva a memória de um idoso que relembra sua existência e sua paixão pela amada desde a infância, Capitolina Pádua, desterrada como adúltera. Até hoje muitos leem essa obra na busca de uma resposta plausível: afinal Capitu traiu ou não Bentinho? A resposta correta não saber-se-á ao certo, pois a verdade foi para o túmulo junto com o escritor Machado de Assis que falecera em Setembro de 1908, mas uma leitura atenta pode fornecer pistas do que realmente aconteceu naquela noite em que Bentinho voltava do teatro, onde fora assistir uma peça Otelo, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) – a brasilianista Helen Caldwell escreveu importante obra sobre esse romance machadiano: O Otelo brasileiro de Machado de Assis.

Creio que a leitura pode ser feita a partir da perspectiva de sua estrutura narrativa, ou seja, do fim para o começo e por ser uma autobiografia. É interessante notar que a psicóloga e professora da USP, Ecléa Bosi (1936-2017) afirma em seu livro Memória e sociedade que o ato memorial no idoso é seletivo. Se usarmos este referencial para compreender o narrador de Dom Casmurro, observar-se-á que o advogado Bento Santiago vasculha suas memórias para tentar entender o seu mundo casmurro e chama o leitor para acompanhá-lo desde o início à sua velhice. Deve-se levar em conta que o narrador é homem e está discursando a partir dum Brasil Oitocentista, patriarcal no qual à mulher é reservado o papel na esfera privada, sem existir no âmbito público e Capitu quebra toda essa estrutura mantida pelos chefes da família. Outro fator a ser considerado é o papel importante que o agregado José Dias tem no desenvolvimento das adjetivações que são atribuídas a heroína para uns, algoz do amor pueril que o marido lhe devotava. Enfim, as interfaces entre mundo social e ficcional são significativas, desta forma, quereria eu tratar da importância de dois romances distantes no tempo e estruturas narrativas, mas de conteúdo singulares: O cortiço [Aluísio Azevedo (1857-1913)] e Quatro de despejo [Carolina Maria de Jesus (1914-1977)], porém o espaço acabou.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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