Gotículas de desabafo

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Entre tantos temas e assuntos que poderia abordar aqui, numa espécie de diálogo com meus leitores, hoje escolhi formalizar uma série de inquirições, motivadas pelos descalabros que acontecem Brasil afora, sem que se consiga uma redução considerável ou, pelo menos, uma explicação plausível. Posto isto, creio que posso fazer o primeiro questionamento: por que ainda, em pleno desenrolar da terceira década do Terceiro Milênio, os sujeitos sociais, portadores de pele escura, continuam sendo vítimas de brutais assassinatos? Poderia aqui elencar apenas o caso do congolês e do morador de um condomínio no Rio de Janeiro alvejado com três disparos efetuados por um sargento da Marinha brasileira. Na primeira ocorrência, a vítima estava em nosso país fugindo das violentas disputas tribais em sua Nação e acreditava que no Brasil encontraria a tão sonhada paz para construir uma vida social, mas acabou ganhando de presente a sepultura. No segundo, o defunto foi confundido com um assaltante, como se todos os marginais e meliantes fossem sempre pretos.

Não sei quantas vezes, ao certo, tratei aqui desse assunto, isto é, o racismo brasileiro que é encoberto por diversas falsidades, cobertores e outros tantos véus, objetivando camuflar algo que é real, concreto, latente e exposto para todo mundo ver e sentir – acho que essa dor é muito peculiar e específica de quem perde um ente querido de forma tão vil quanto o que aconteceu recentemente com essas duas pessoas. Parece-me que a indignação não se restringe apenas a esses dois acontecimentos, visto por muitos apressados como algo isolado e não representa de fato a face do país. Claro que é possível fazer tal afirmação, pois há leis no país que criminalizam e punem os racistas, bem como uma Constituição que considera todos iguais, todavia, tudo fica apenas na letra fria da lei já que o hábito, perpetrado por mais de três séculos de escravidão, ainda resiste, sem que códigos e outros ditames presentes em diversas legislações os derrube. Neste sentido, um olhar machadiano presente no conto Teoria do medalhão tem eficácia analítica no momento. É preciso acrescentar que quando o escritor carioca, por intermédio de um de seus narradores, afirmou que o país deveria reformar os hábitos antes das leis, vivíamos no período em que os cientistas sociais chamam de época oitocentista.

Deve-se evidenciar aqui que, na manhã chuvosa de sábado, 13 de maio de 1888, foi publicada a Lei Áurea eliminando a escravidão dentro das cercanias nacionais, contudo não se viu nenhum outro decreto, ou algo parecido, que se ocupasse em fazer a transição do elemento africano escravizado em cidadão de fato e de direito. O que se viu foi totalmente o contrário e a luta começou a se estabelecer: o preto, de escravo, passou a ser homem livre, porém, sem condições mínimas para exercer a sua liberdade e, por conseguinte, a sua cidadania, que deveria ser alcançada com os outros dois diretos: o social e o político. Essa história todos a conhecem, entretanto, fica apenas no saber, no ouvir dizer, no senso comum, sem que na prática os sujeitos sociais modifiquem seus atrozes hábitos senzaleiros. Há muito falatório aqui e ali, contudo, a prática ainda permanece sendo a do pretérito escravagista, porém, com ações diferentes, tendo em vista que não é possível mais escravizar o semelhante e dizer que é direito de propriedade, portanto, de âmbito privado, como defendiam muitos supostos liberais e conservadores do Brasil Oitocentista. Aliás, é preciso que se faça uma discussão séria sobre esse tal liberalismo à moda brasileira, principalmente porque o seu uso é visceralmente sinérgico com a presença de um Estado gigantesco na vida dos brasileiros.

Creio que não seja possível discutir as alterações nas condutas e hábitos de uma população, sem que se faça uma transformação radical na forma como as gerações futuras serão educadas. Há muitas coisas em movimento, todavia, creio que ainda são pífias diante dos mais de trezentos anos de escravidão e ainda temos no principal assento do país uma trupe que adora bajular a velha turma do coronelismo, do filhotismo, do patrimonialismo, do patriarcalismo senzaleiro atrelado à uma burocracia aristocratizada que alimenta, com sementes arrancadas das costas do trabalhador, uma plutocracia que se enrique através dos esforços de quem realmente produz e faz essa Nação caminhar. Meus leitores – caso eu ainda os tenha até esse ponto de minhas enunciações – devem imaginar que hoje estou um tanto quanto assaz atribulado, inquieto, irritado, entretanto, não é bem essas as intenções de meus olhares e sim, tentar entender como ainda se registra truculências verbais, físicas contra outras pessoas somente porque possuem a tonalidade da pele mais ou menos escura ou porque elas escolhem seguir caminhos e ideias diferentes daquelas que determinados sujeitos desejam que sejam preponderantes, inibindo a liberdade e os preceitos grafados na Constituição Federal. Posto isto, volto ao meu percurso narrativo objetivando buscar uma resposta plausível para o fato de que ninguém nasce xenófobo, racista, preconceituoso e ignorante, mas apenas se torna diante da convivência com indivíduos que se acham superiores aos demais por conta do saldo da conta da bancária, pelo imóvel que reside, enfim, pelo que pensar ser a finalidade do existir no orbe: se enriquecer, mesmo que seja de maneira não muito escrupulosa. É interessante ressaltar que depois a escolha é feita por cada sujeito social. Não vou aprofundar meu enredo nessa querela, pois o espaço é demasiado pequeno, bem como a paciência daqueles que me leem semanalmente.

Sendo assim, creio que posso interromper, ou melhor, encerrar a reflexão de hoje em virtude de minha impaciência com a construção de uma sociedade que excluiu, em demasia, todos os desafortunados e deserdados do paraíso enunciado pelo escritor José Martiniano de Alencar (1829-1877) em vários de seus romances, como O tronco do ipê e Iracema. Embora as narrativas enfoquem locais paradisíacos, os conteúdos enfatizavam sempre a ideia de o europeu ser superior aos outros elementos que formam as três matrizes estruturantes do brasileiro, isto é, o indígena e o africano. Aqueles que acreditam que não seria esse o objetivo do autor, entendo que seja necessário percorrer, com a devida acuidade, as linhas que compõem aqueles romances, bem como compará-las com alguns escritos machadianos, entre eles Pai contra Mãe, a crônica Bondes elétricos, entre outras enunciações e em seguida leia o romance do pré-modernista e jornalista Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), Clara dos Anjos. Digo de passagem que já os visitei todos e constatei que em tais enredos, é possível encontrar subsídios para se pensar com franqueza o presente de nosso país e aí, quem sabe, construir as bases para um outro Brasil, menos xenófobo e racista.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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