Globalização e suspensão do tempo

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Em seu livro Sociedade dos Indivíduos (1994), o sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) afirma que a sociedade é um conglomerado de indivíduos. Disso todos nós sabemos, todavia, é preciso acrescentar que esse congraçamento de sujeitos sociais existe através do que Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) chama de Zeitgeist [espírito do tempo]. Portanto, quando o cientista social tentar buscar no passado a gênese do presente, faz-se necessário ter claro a impossibilidade de apreender totalmente aquele período, necessitando da utilização de recursos metodológicos apresentados por alguns pensadores como Karl Marx (1818-1883) para quem o homem faz a sua história, mas não como deseja e sim pelas condições determinadas pelo meio, aproximando-se das observações hegelianas do constante fluir da vida humana na Terra. Nesta acepção, o homem será sempre influenciado pelo meio, isto é, a sociedade que ajuda a reinventá-la diariamente. Há outros cientistas que, a exemplo de Marx, entendem que o sujeito não goza de autonomia, tendo em vista a coerção exercida pelas instituições sobre o homem. Este é o caso do funcionalismo de Emile Durkheim (1858-1917). Dentro das chamadas ciências sociais, o interessado encontrará outro alemão que pensa de modo diferente do credo marxiano e durkheimiano. Trata-se de Max Weber (1864-1920) e suas construções tipológicas. Todos eles fornecem ferramentas e mecanismos para que o presente possa ser entendido da melhor forma possível, mesmo que suas pesquisas, na maioria das vezes, situem seus objetos os indivíduos seiscentistas, setecentistas e oitocentistas. Realidades que tornam impossível afirmar com convicção que quaisquer pessoas daqueles séculos tenham, conscientemente, planejado o desenvolvimento da sociedade industrial do presente, conforme observações de Norbert Elias.

Posto isto e, ficando de certa forma, ao meu leitor semanalmente alguns questionamentos como a utilidade desse passado para se pensar o momento em que o mundo global está passando. Neste ponto evidencio a necessidade de se observar o que escreveu o economista Joel Pinheiro da Fonseca em seu artigo O vírus e o tirano, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo na edição da última terça-feira, 24 de março. Como disse o cronista, “a economia globalizada elevou o padrão de riqueza mundial a níveis inéditos. Ao mesmo tempo, globalizou também os riscos: desigualdade, aquecimento global, pandemias. Há duas respostas possíveis: abandonar a globalização, o conhecimento e o progresso e se fechar no nacionalismo nostálgico e autoritário. Ou então aceitar que a globalização econômica precisa corresponder a cooperação política internacional”. Entendo ser essas abordagens significativas para se pensar o homem unidimensional, isto é, aquele indivíduo que, por um lado, existe dentro dum modo de vida, levando em conta o sistema capitalista do presente, fazendo avançar os pressupostos mercadológicos através dos níveis econômicos, social, político, cultural, científico, entre outros e, por outra vertente, dá vasão à sua subjetividade, seja ela em que campo da existência afetiva for. Mesmo tendo essa dupla vertente, o ser social só se torna enquanto tal, realizando-se em seu semelhante, seja no universo material, isto é, a partir do que se tem no campo concreto do existir ou através subjetivação do seu vir a ser.

Diante do exposto acima, o que entra em colapso no presente, enquanto o planeta segue sendo visitado por uma pandemia mortífera? Antes de adentrar na problemática da saúde que aprisionará todos os esforços das autoridades e sugará muitos recursos financeiros, é preciso refletir um pouco sobre a vida que passa do lado de fora das residências enquanto seus moradores aguardam o fim, ou pelo menos, amenização dos danos provocados pela pandemia. A primeira coisa que está suspenso para muitos de nós, é o tempo. Ontem, hoje e amanhã parecerão semelhantes e todos quererão suas existências pretéritas de volta, ou pelo menos controlar os aspectos concretos de suas outrora vivencias. Mas será possível tê-lo após a passagem dessa moléstia? Há quem acredite que a esfera material e seus respectivos signos e significantes adquirirão outros significados. Resta saber se o ser, enquanto ente social existindo sempre no semelhante a partir dos valores que este lhe atribui, sobreviverá a esse universo ressignificado pela passagem do vírus. De qualquer forma a sociedade continuará existindo, pois de acordo com Norbert Elias, ela só existe porque as pessoas continuam lhe dando sentido, entretanto, suas estruturas são modificadas, independentemente do desejo de muitos homens.

Neste sentido, me parece salutar, antes de lançar o pensamento, mesmo que utópico e um tanto quanto visionário, para o amanhã que se constrói enquanto o tempo está suspenso em muitos setores da vida ativa na Terra e, de quebra, no Brasil, tentar apreender o mundo que começou a desacelerar já há algumas semanas, principalmente na Europa e posteriormente aqui e no restante da América. Busco num livro do sociólogo e professor da UNICAMP – de quem fui aluno – Octavio Ianni (1926-2004) uma sintética definição de globalização, objetivando tentar compreender esse universo suspenso pelo espirro maléfico trazido por um vírus letal. “A globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. Assinala a emergência da sociedade global, como uma totalidade abrangente, complexa e contraditória. Uma realidade ainda pouco conhecida, desafiando práticas e ideais, situações consolidadas e interpretações sedimentadas, formas de pensamento e voos da imaginação” (A era do globalismo. RJ: Civilização Brasileira, 2001, p. 11). Embora essa obra tenha sido publicada há quase duas décadas, seu conteúdo é extremamente pertinente para que o cidadão entenda que a existência foi suspensa ou está em vias de acontecer isso e, a partir daí, iniciar a jornada em direção a um projeto de vida diferente, a exemplo do que a enunciação presente no filme O livro de Eli sugere àqueles que o assistem.

É interessante acrescentar aqui que é justamente essa vida, acostumada a ser dissolvida no final do dia que parou de ser reconstruída na aurora seguinte, ficando um imenso vazio e um desejo inexistente de consumir certos penduricalhos no afã de que estes dessem sentido, mesmo que efêmero aos seus possuidores, conforme nos apresentou o sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017) em seu livro Vida líquida (2009). Desta forma, é possível, ao vivente atento, observar que não existe mais o amanhã, pois ele será o mesmo que o presente, por isso a suspensão do tempo no qual todos aguardam apenas um desfecho, de acordo com o filósofo Paulo Arantes em seu livro O novo tempo no mundo (2014). No caso aqui, aguardando a cura dessa moléstia ou o algo que possa remediá-la fustigando, retardando o encontro com a epidemia, daí o uso da quarentena para que os cientistas – tão vilipendiados ontem por um grupo ávido pelo poder que, para se alcança-lo valia tudo, desde a divulgação de Fake News até a difamação da categoria cientifica nacional – possam trabalhar – quiçá o corte de verbas anunciados recentemente por uma gestão federal pouco afeita ao universo da pesquisa e do progresso que advêm de sua prática. Sendo assim, enquanto a cura ou a medicação não chega, cabe a cada um dos seres sociais repensar seus existires, já que lá fora sopra apenas a brisa mortífera que carrega consigo o vírus letal advindo de outras paragens, semelhante ao enunciado por Albert Camus (1913-1960) em seu romance A peste.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *