Fotografias em branco e preto

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Neste primeiro texto de julho, período em que nós, professores e educadores, estamos em recesso escolar aqui no Estado de São Paulo, abordando uma temática que todos dizem enfastiados de ouvir, contudo, os problemas continuam a se avolumar, sem que solução coerente seja dada às questões que são oriundas dos mais de trezentos anos de escravidão. Desta forma, a interpelação que fica é sempre aquela: quem pode falar sobre e pelos afro-brasileiros? A segunda pergunta é: qual é o lugar dos descendentes de escravos na sociedade brasileira? E por que, mesmo sendo a maioria da população no Brasil, 54,9% de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ainda o maior grau de miserabilidade é encontrado entre as famílias cuja tonalidade da pele é escura, ou melhor, preta? De acordo com material divulgado por um jornal de circulação nacional no começo desta semana, esse segmento social, passa por situações econômicas complexas, para não dizer de extrema pauperização. Segundo a reportagem, “três em cada quatro pessoas entre os 10% mais pobres do país são negras”. Isso é fato e não apenas aleivosias deste que vos escreve, meus caros leitores.

Mas, se a maior parte dos brasileiros está entediada com as questões perfiladas a partir das pequenas perguntas que formulei acima, por que é tão difícil deixar o comodismo e trabalhar para que as situações mudem? Parece-me que as dificuldades existem, primeiro por não haver um critério específico para definir quem é ou não afro-brasileiro, acrescente-se a isso aquela observação feita pelo pensador dinamarquês, Sören Aaybye Kierkegaard (1813-1855) – autor de vários livros entre eles O conceito de angústia -, segundo a qual, o ser humano tem medo de ter medo. Ou seja, qual é o temor que o brasileiro, definido como branco, tem daqueles, cujas tonalidades de suas peles são mais escuras? No livro Onda negra, medo branco, significativo resultado dum trabalho acadêmico realizado pela professora e historiadora do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) UNICAMP, Celia Maria Marinho de Azevedo, o leitor interessado em saber mais sobre os dados apresentados pelo IBGE e os motivos da endêmica desigualdade social se abater, sobretudo, sobre os coletivos afro-brasileiros, encontrará subsídios para se pensar as razões que levaram o Estado brasileiro – e ai a filósofa Djamila Ribeiro no seu livro Quem tem medo do feminismo negro tem razão ao afirmar que as mazelas, que se abatem até o presente sob os descendentes de escravos, são de responsabilidade estatal – ao não auxiliar os ex-escravos que deixaram de ser cativos da noite para o dia, mais especificamente naquela manhã de 13 de maio de 1888, através um ato político advindo do alto do trono – Machado de Assis (1839-1980) em seu romance Memórias póstuma de Brás Cubas, mais especificamente no capítulo Ideia fixa, discorre sobre os atos que emanam do alto do poder e dos gabinetes palacianos como ações benevolentes dos governantes para com a patuleia amorfa.

Naquele texto, que infelizmente está fora de circulação, mas que pode ser encontrado na internet (http://bibliopreta.com.br/wp-content/uploads/2018/01/livro-Onda-negra-medo-branco-1.pdf), a pesquisadora Célia Azevedo esmiúça as conversas e ações encabeçadas pela Monarquia e a elite cafeeira, que gravitava em torno do trono, objetivando a substituição da mão de obra escrava pela assalariada. Atentem-se para o fato de que em nenhum momento daquelas discussões aventou-se a possibilidade em transformar o elemento africano em trabalhador remunerado ou se quer indenizá-los por anos de trabalho violento nas lavouras de cana, café e açoites sofridos nas masmorras senzaleiras. A ideia, ao que tudo indica, era que os ex-escravos vivessem esmolando pelas ruas da cidade, como os fatos indicam essas ocorrências, ou empurrados para as zonas periféricas dos centros urbanos e encostas dos morros, conforme retratou o escritor Aluísio Azevedo (1857-1913) em seu romance O cortiço. Como é possível observar nos milhares de relatos espalhados pelas diversas bibliotecas espalhadas pelo Brasil, nunca foi política de Estado auxiliar aqueles, cujos ancestrais foram desterrados como mercadoria e destituídos de sua humanidade nos territórios além-mar. Agora, quando se observa as medidas que foram adotadas para atrair o imigrante, o europeu, principalmente italianos e espanhóis, a situação muda completamente.

Analisando a situação da mulher “negra”, a filosofa Djamila Ribeiro afirma, em certo trecho de seu livro Quem tem medo do feminino negro?: “O Brasil é o país da cordialidade violenta, em que homens brancos se sentem autorizados a aviltar uma mulher negra e depois dizer que foi só brincadeira […]. O país que foi o último do mundo a abolir a escravidão e no qual a população negra é acusada de violenta se denuncia o racismo. O país onde todos adoram samba e Carnaval, mas onde se mata mais negros no mundo. O brasileiro não é cordial. O brasileiro é racista” (Companhia das Letras, 2018, p. 120). É instigante pensar que o trabalho de Ribeiro tenta compreender o lugar da mulher negra na sociedade brasileira, profundamente marcada pelo escravismo, o que me leva a afirmar que o Brasil nunca foi capitalista e nem liberal, mas sim uma Nação em que foi o escravismo que se amoldou as novas regras do mercado e das pressões do capitalismo internacional, cujo berço foi a Inglaterra a partir da Revolução Industrial. Um elemento fundamental para se entender o fim do cativeiro no país, se encontra na pressão que os ingleses fizeram desde 1808 para que o Brasil se transformasse numa sociedade capitalista e abandonasse de vez o escravismo, adotando o assalariamento da mão de obra dentro da Colônia, depois tornada Metrópole.

Analisando o livro História da gente brasileira – Império – volume 2, da historiadora Mary Del Priore, observei um relato sobre o motim de um grupo de escravos, no interior de Minas Gerais, que terminou em violência, assassinatos e condenação por enforcamento. É interessante notar que a imprensa retratava sempre as agressões perpetradas pelos cativos, mas nunca analisava, e quando fazia era de forma pífia, os aviltamentos que sofriam os cativos, violências sexuais, amputações, açoites letais. Na época era possível encontrar autoridades que defendiam o fim do escravismo como um quadro evolutivo das relações cordiais entre escravizado e escravizador, como se fosse possível ao agredido perdoar o agressor. Na clássica obra de Filosofia Política, o pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679) afirma que o homem vive em guerra contra o seu semelhante justamente por conta das agressões sofridas em vias de serem perpetradas, portanto, não seria de estranhar que cativos, ao conseguirem se rebelar, se voltarem violentamente contra seus algozes. Aos que pretendem entender essas relações aviltantes dos tempos senzaleiros, recomendo a leitura desse importante livro Leviatã. Mas por que o ontem ainda se faz presente, de forma sublime, subjetiva e abstrata, nas relações entre brancos e pretos [negros] na sociedade brasileira? Por que ainda relações inter-raciais, se se pode assim se designar o encontro de duas pessoas que se amam, porém têm tonalidades diferentes de pele, ainda chama atenção? Por que o afro-brasileiro ainda busca um lugar na sociedade brasileira, sendo sua categoria a maior parte da população neste país? Responder essas perguntas e tentar desmontar a ideia de que racismo é somente a ideia desenvolvida por um quantum de pessoas que se acham mais humanas que outras, tem sido meu objeto de estudos.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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