Espelhos e seus humanos reflexos

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Para iniciar a reflexão de hoje, me recordo de um clássico bordão das histórias infantis em que uma madrasta olha para o seu reflexo e pergunta ao produtor de tal imagem: “… espelho, espelho meu, existe alguém mais…”. Por que me enveredar pelas enunciações daqueles contos, meus caros leitores? Justamente por tentar compreender uma observação que o astrofísico Carl Edward Sagan (1934-1996) fez em seu livro Cosmos [SP: Cia das Letras, 2019]. “Como a ciência é inseparável do resto do empreendimento humano, ela não pode ser discutida sem que se faça contato, às vezes de relance, às vezes frente a frente, com várias questões sociais, políticas, religiosas e filosóficas” [SAGAN 2019, p. 24]. Soma-se a esse fecundo fragmento outro que está presente na obra Através do espelho [SP: Cia das Letras, 2017], do filósofo norueguês Jostein Gaarden. Num determinado trecho da narrativa, a personagem principal diz ao seu interlocutor: “Já fiquei na frente do espelho me olhando nos olhos. Daí eu imagino que sou um poço tão fundo que não consigo enxergar lá dentro, nas profundezas mais profundas” [GAARDEN, 2017, p. 41].

Inicialmente são três recortes, sendo que o primeiro diz sobre uma importante interpelação que a personagem faz ao espelho, ou melhor, ao seu reflexo esperando uma resposta que o seu ego deseja evidenciando que o ser que responde é o mesmo que pergunta. Desta forma, se o indivíduo, que está lendo as linhas que se seguem, fizer uma pergunta desse teor à própria alma – aqui meus olhares estão em conformidade com o pensador grego Platão que a definia a partir de sua condição. Desta forma, para aquela que anima o ser que a possui, qual seria a resposta alcançada? A interpelação reside no fato de que o espelho não reflete o real, mas o seu conteúdo invertido, portanto, distorcido, então o sujeito não está se vendo nesse objeto encarregado de adorno e cativar quem o usa, conforme já nos dizia Narciso e seu lema: “não se afogue na fonte que te reflete”. Pois bem meus caros leitores, perguntem aos vossos espelhos, isto é, as suas almas que, como dizia o poeta, são enxergadas através dos olhos que são suas janelas, o que eles estão refletindo sobre vocês nesse momento pandêmico? É preciso levar em conta que a todo momento, políticos e teólogos mais interessados em manter a patuleia alienada, atacam a ciência, mas é ela quem está trabalhando sem cessar desde o começo do ano passado [2020] para arrefecer essa peste pós-moderna que, a exemplo da econômica, se globalizou matando sem escolhas sociais ou financeiras.

Neste sentido é que a segunda assertiva, qual seja, a do astrofísico, segundo a qual a ciência dialogará com as outras áreas que formam o ser humano em sua integralidade. Se eu começar pela Filosofia, creio que o caminho não será tão árduo quanto parece, na medida em que entendo o humano a partir de duas perspectivas: a primeira é o uno, indivisível que torna o ser em si na sua jornada para entender quais as partículas e os átomos sociais que o ajudam a se confeccionar durante a construção de seus relacionamentos humanos. Sendo assim, o “eu” da primeira pessoa gramatical se reflete no espírito do todo e a coletividade passa a ser reflexo deste ente indivisível. Posto isto, meu caro leitor, a terceira proposição, a do poço em que o próprio homem tem que mergulhar para se achar. Quando ele se encontra, com qual ser se depara? Aquele que pretende ser semelhante ao seu igual, seguindo os preceitos crísticos ou aquele sujeito que se pauta pela desigualdade social enquanto condição para se auto definir como melhor do que o outro, esse que deveria lhe assemelhar, mas lhe é estranho no formato físico e na maneira como se pensa, assim como o outro seu reflexo.

Lógico que aqui no campo dos refletidos, das análises, seus espelhos e aquilo que anima o ser humano, ou seja, a própria consciência, pode-se enveredar pelo universo das emoções enquanto fenômenos que repercutem o agir humano em sociedade. “Quais são as causas desses fenômenos emocionais? Por que a sensibilidade coletiva mostra-se pronta para se inflamar? A explicação reside, primeiro, na necessidade de firmar o laço social. É que os indivíduos não se contentam em viver a inserção no grupo de maneira simplesmente formal, legal. Não se satisfazem com um vínculo social concebido exclusivamente em termos de reciprocidade e contrato. Tem necessidade de sentir a coesão social nas fibras de seu ser. É preciso que sua alma possa dilatar-se, elevar-se, unir-se por uma espécie de identificação com a comunidade de seus semelhantes. Quem não saboreou o delicioso prazer de girar em meio às massas, de ser possuído pela febre da multidão, captado por sua energia poderosa?” – [Michel Lacroix. O culto da emoção: ensaios. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006, p. 96-97].

Ainda no campo da ciência, o astrofísico Carl Sagan diz que ela “é um processo contínuo. Nunca termina. Não existe uma única e definitiva verdade a ser alcançada, após a qual todos os cientistas poderão se aposentar. E, por ser assim, o mundo é muito mais interessante, tanto para os cientistas quanto para os milhões de pessoas em cada nação que, conquanto não sejam cientistas profissionais, estão profundamente interessados nos métodos e nos achados da ciência” [SAGAN. Cosmos, 2019, p. 25]. Posto isto, meus caros leitores, fico aqui com o seguinte questionamento: a pandemia, que grassa o mundo e até o momento em que produzia essas linhas havia feito mais de 300 mil mortos no país – em Penápolis, ontem tinha 121 mortos e na última terça-feira, no Brasil, os números indicaram 3.688 óbitos provocados pelo coronavírus -, será arrefecida através da ciência ou de políticos e teólogos demagogos encastelados em suas masmorras e castelos erguidos a base do egoísmo desenfreado? Parece-me que, em uníssono, aqueles que compreendem a importância de todas as áreas para a compreensão e o progresso da humanidade, dirão que o momento é o da ciência e todas os demais setores precisam se esforçar para que os cientistas consigam resolver a problemática, entretanto, não adianta os pesquisadores ficarem 24 horas dentro de seus laboratórios de pesquisas; os médicos, enfermeiros, faxineiros e demais servidores dos hospitais, abdicarem de suas famílias para salvar vidas, se o sujeito social não é capaz de fazer a pergunta correta para o seu espelho instalado dentro da própria consciência: “espelho, espelho meu o que eu posso fazer para ajudar a diminuir o tempo de duração dessa pandemia?”.

Entendo ser complexa tal interpelação porque levará o sujeito questionador, a viajar em torno daquilo que o compõe enquanto sujeito social que é fruto do seu meio, contudo, a partir do momento em que se interage com seus pares, se modifica ajudando a alterar o outro. Desta forma, no meu entender, o indivíduo que questiona a ciência sem base, mas apenas por ouvir dizer e a partir da divulgação de informações mentirosas, ventiladas por líderes demagogos interessados apenas na manutenção de seus poderes bélicos, financeiros dentro dum teologismo da prosperidade, conforme nos indica o cientista social Ronaldo de Almeida em seu ensaio “Deus acima de todos” [Democracia em risco?. SP: Cia das Letras, 2019, p. 35-51], não está preocupado com o seu igual. “Enquanto o sino estiver dobrando para os outros, que venha o meu pirão primeiro”, refletem os espelhos desses sujeitos que não entendem que o problema afeta a todos, indistintamente. Mas talvez eles não compreendam isso, pois, como dizia o pensador russo Mikhail Bakunin [1814-1876], estão preocupados em pregar mudanças, mas desde que sejam a partir dos outros e os que se mantêm em seus egoísmos desenfreados, querem apenas compreensão, mas permanecem com seus espelhos refletindo apenas aquilo que eles têm dentro de si: um enorme vazio.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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