Entre o real e o ficcional

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O pensador alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) afirmou em determinado momento de seu livro O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 59) que “o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra”. Já o filósofo grego Aristóteles disse em seu texto Poética que “o poeta conta, em sua obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam vir a acontecer, e que sejam possíveis tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade” (São Paulo: Abril Cultural, 1999, p. 47). Como podem observar meus caros leitores, a dupla de excertos retirada de dois significativos personagens do ato de filosofar, ou seja, de questionar, de perguntar, mas que se enveredaram no universo da ficção, na tentativa de nos ajudar a compreender e, se possível, distinguir entre o real e o ficcional numa sociedade desigual como a brasileira. Desta forma, vos pergunto, argutos leitores: o Brasil é um país democrático? A Nação construída, a partir da simbiose entre o elemento africano, indígena e europeu, é ou não um agrupamento racista? Esse país tem ou não uma das maiores desigualdades sociais do mundo?

Parece-me que responder essas perguntas seria relativamente fácil, se o indivíduo que se sujeitasse a dar sons, tonalidades e sentidos às suas respostas, não se escondesse atrás do dedo apontado para o outro, seu semelhante, que lhe é igual. Neste sentido, conforme já apontaram diversas pesquisas, há muitos brasileiros que não assumem o racismo, mas dizem ter um amigo que é assim, ou seja, racista. Existe aí uma incongruência, pois se pensarmos no livro Ética a Nicômacos, de Aristóteles, podemos compreender quando ele diz que a amizade nasce do desejo de cada um dos pares, buscar no outro, aquilo que não tem em si. Sendo assim, o sujeito que possui um amigo racista busca o que nesse relacionamento? É sempre bom recordar que Nicômacos era pai do filósofo grego que tinha suas observações pautadas no eu empírico, então, se um filho escreve um texto sobre ética para o pai, significa que o seu responsável precisa entender um pouco mais sobre o que pauta as relações entre as pessoas. Portanto, Immanuel Kant (1724-1804) dirá mais tarde que a ação do sujeito em si deve ser tal qual possa ser universalizada.

Mas o que tudo isso tem a ver com a problemática racial brasileira? Nada, mas ao mesmo tempo está recheado de toda a complexidade que é existir na vida ativa na polis, espaço em que o homem manifesta tudo aquilo que absorveu em solo privado, isto é, na casa com pais e demais familiares. Sendo assim, o racista não nasceu desta forma, mas escolheu ser por diversas razões e uma delas pode ser o amigo com quem conserva tal relacionamento, na esperança de que o companheiro enxergará finalmente que não existe nada mais ignorante do que se achar melhor do que o outro por conta da tonalidade da pele. Mas ainda assim se perceber que há uma impossibilidade de ajudar o colega a enxergar o universo sob outra perspectiva, o sujeito perfila com o conhecido em diversos momentos das comensalidades e reuniões sociais, creio que deve compartilhar desse sentimento em que o indivíduo se acha melhor ao seu semelhante, mesmo se dizendo cristão. Mas como isso é possível, diante de um rol significativo de pensamento crístico acumulado por mais de dois mil anos?

Deixo-vos meus caros leitores com essa interpelação, e já adentrando no campo da ficção: como um enunciador confeccionaria um enredo em que o racismo fosse vencido através do conhecimento e das relações harmônicas entre todos? O escritor José Martiniano de Alencar (1829-1877) acreditava que tal situação fosse possível, com o elemento africano grato ao branco, mesmo este lhe tendo açoitado diariamente, conforme Machado de Assis (1839-1908) nos apresenta numa crônica da série Bons Dias! O escravagista alforria sua mercadoria humana, lhe pagando um mísero salário, mantendo o hábito de lhe espancar, ainda dizendo à vítima que tudo é fruto das manias adquiridas desde os ancestrais nos mais de trezentos anos de escravidão. Será que as leis mudam hábitos? Se a ficção imita o real, então não é possível um texto em que o escravo se harmonize com o seu algoz. Diante das sevicias recebidas, será que se pode cobrar de um ex-cativo uma situação, segundo a qual, não haveria reação? Como podem observar meus caros leitores, hoje estou mais para questionador do que propriamente para propor alguma saída para um país que se acostumou a não valorizar o trabalho alheio e viver movido, conforme nos diz Nietzsche, a partir dos fenômenos estéticos, ou seja, daqueles apenas que apresentam o externo, pois o interno é fruto da sublimidade e compreendê-lo requer do interlocutor um entendimento maior do que é de fato, ser o belo de dentro para fora.

Num mundo em que tudo se desfaz no momento seguinte de sua criação, quem é que liga para o belo e o sublime que levarão tempo para resplandecer e tudo dependerá do interlocutor? Claro que só se pode esperar do semelhante aquilo que lhe foi ofertado, mas o que o sujeito que se interage com o seu igual pode granjeá-lo se ele tem dificuldade em percorrer os caminhos que o levarão ao seu conhecimento pleno? Diante desse ponto de interrogação, é melhor não questionar mais e seguir com os demais, mas isso já não é possível, pois quem conhece a maestria das estrelas, jamais se contentará com a pequena iluminação do vaga-lume, não que este não tenha importância, pois tanto um quanto o outro tem suas razões para estarem entre nós: as estrelas se encontram no longínquo universo e o inseto, que brilha a noite, pode estar muito mais próximo de nós do que possamos imaginar. Sendo assim, entre um e outro, prefiro ficar com os dois em seus campos existenciais e suas funções que são a de encantar o ser que tem sensibilidade para passar horas admirando a beleza do universo e o pulsar das galáxias através dos piscares das estrelas e dos vaga-lumes.

Contudo, deixando os corpos celestes para outras poéticas e retornando aqui com o escopo de minhas reflexões nesta quinta-feira, por que será que o brasileiro não é acostumado com a democracia e estará sempre tentando trocar a liberdade pelo autocrata que lhe garanta pão e segurança? Interessante notar aqui que a resposta pode caminhar pelo mesmo campo: o sujeito se diz democrata, mas tem um amigo que sempre afirma que nos tempos dos militares a vida era melhor. Mas por que o desejo de retroceder no tempo em que a violência campeava as relações políticas, inclusive no presente, um governante que empunha a bandeira crística e se compraz com torturadores, tem voz entre muitos dos pares sociais? Novamente responder essa interpelação requer de cada um, exercício histórico e da própria consciência. Entendo ser extremamente importante essa análise para depois não colocar a culpa no outro que fez a escolha, enquanto o que pensa e avalia a própria visão de mundo, se esconde na sua nadificação. Pensemos meus caros leitores hoje e nos dias vindouros.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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