Gilberto Barbosa dos Santos
Como o mundo está virado do avesso, creio que para esta reflexão de hoje estou sem assunto específico. Também pudera: mortes e mais óbitos, fábricas de féretros não dando conta de atender a demanda pandêmica, além da construção de diversas criptas pelo orbe afora. E qual é o motivo disso tudo? Não se pode culpar a natureza, pois, conforme disse certa vez o antropólogo estruturalista francês, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), quando o homem aqui aportou, ela já existia e é bem capaz de o tal do humano demasiado humano ser expulso por uso inapropriado dos recursos que a Terra fornece ao ser e ela continuará sua jornada no Universo. Diante do contexto em que a sociedade global vivencia, se faz necessário que o sujeito social repense condutas que podem, com certeza, repercutir de forma positiva entre todos. Dentro desta linha é que entendo que há miríades de exemplos que o indivíduo individualizado poderá seguir, contudo, dependerá de suas querenças e estas terão que passar pelo crivo da razão e não somente no âmbito emocional e da passionalidade, de onde deriva a paixão.
Quem atua no segmento filosófico e das ciências humanas, de um modo geral, sabe que o mais importante não é a resposta, mas sim a interpelação, pois estará ali não o conteúdo do que deve ser propalado, mas o sentido do questionamento, isto é, por que a pergunta foi formulada. Desta forma, quando uma criança propõe o exercício matemático para os pais, estes devem prestar atenção nos subsídios fornecidos pelo filho para que a questiúncula seja proposta. Sendo assim, sabe-se que nessa fase da vida, há diversas perguntas que coadunam com a observação feita pelo escritor e filósofo norueguês, Jostein Gaarder, segundo a qual quem precisa de Filosofia não é a criança, mas sim o adulto. Mas o que ocorre é completamente o contrário, pois a humanidade, que se crê adulta, pensa ser a dona das verdades absolutas e não aceitam questionamentos e quando são feitos apela-se para o princípio da autoridade. Neste ponto, entendo que a interpelação muda de foco e não mais para o interpelante e sim para quem detém a voz que responderá: de onde advém o princípio da sua autoridade? É preciso não confundir esta definição com autoritarismo. Interessante notar que quando uma criança faz a pergunta, normalmente os pais não tem a resposta pronta, então a alternativa é fazer o caminho do que será informado juntamente com quem fez o questionamento.
Na obra Através do Espelho, do professor norueguês, há um fragmento que acho interessante e pode ser útil para se pensar a problemática no contexto em que o mundo vive: a pandemia que parece que demorará um tempo para nos deixar. O ano passado, o vírus colocou a Itália de joelho e o brasileiro, pelos dados apresentados até o momento em que eu escrevia essas linhas, indicam que não aprendeu nada, caso contrário, não estaria em viés de entrar na fase roxa. Mas para eu não escapar do meu objetivo nas linhas que se seguem, retorno ao romance, mais especificamente no fragmento em que a protagonista afirma ao seu visitante numa noite dessas em que tentava se recuperar de uma moléstia: “‘Já fiquei na frente do espelho, me olhando nos olhos. Daí eu imagino que sou um poço tão fundo que não consigo enxergar lá dentro, nas profundezas mais profundas’” (GAARDEN, Jostein. Através do espelho. SP: Cia das Letras, 2017, p. 41). Diante do exposto, um filho pode se dirigir ao pai e fazer a seguinte interpelação: “- o que significa mergulhar dentro de um poço humano?” Creio que o sentido de tal questão é compreender o lado alegórico, principalmente no que diz respeito ao universo grego e o lado narcísico do homem. O grande desafio é explicar de forma que o interpelante compreenda a resposta.
Por exemplo, quando o sujeito se olha no espelho, o que ele enxerga? Ele ou o seu reflexo invertido? Interessante notar que não é o real visto, mas o projetado e por si só já não é o real. Sendo assim, é possível dizer que, ao mergulhar dentro de si, o homem se depara com as diversas camadas que o formam, principalmente no que diz respeito aos valores éticos e morais. Posto isso, penso que se um adulto, que tem sob a sua responsabilidade a educação de um rebento, tenta lhe inculcar determinados valores, mas tais preceitos não são constantes na vida do que se pretende educador, então, de nada vai adiantar ajudar o educando a entender o que encontrará quando conversar consigo mesmo. É preciso recordar aqui que a criança está em processo de formação e neste sentido, muitas vezes, o feito marca muito mais do que o dito. O verbalizado o vento leva e o realizado fica gravado na memória e pode definir as futuras condutas, naquilo que Immanuel Kant (1724-1804) afirma que o homem não é aquilo que está dado, mas o que é projetado para uma situação vindoura. Desta forma, creio que o racista não nasce um propalador dessas ideias, mas aprende no cotidiano com seus pais durante as comensalidades e observando as atitudes dos adultos. Imagine então uma criança perguntando para o pai por que ela não pode gostar de preto, sendo que na escola ela tem vários amigos com a tonalidade da pele escura.
Neste sentido, tendo a crer que uma sociedade pós-pandêmica deverá ser pensada a partir desses preceitos: por que ser assim? Agir de tal forma que prejudique o seu semelhante? Por que o vírus grassa no mundo e, a exemplo do que aconteceu o ano passado quando a Itália ficou de joelhos, o Brasil caminha a passos largos para construir criptas, já que o número de mortos continua avassaladoramente crescente entre os brasileiros. E, em meu singelo olhar, porque o humano não fez o simples desde o princípio e agora precisa equacionar o complexo tendo uma grande quantidade de cadáveres e com consequências alarmantes para todos, indistintamente, pois a pandemia continuará afetando as pessoas em suas intimidades, sejam elas emocionais ou econômicas. Posto isto, creio que seja importante, neste momento em que o sujeito está dentro de suas trincheiras, pensar em qual mundo deseja viver, enquanto junta os cacos deixados pelas inconsequências daquelas pessoas que deram aval a politiqueiros e líderes religiosos que, desde o início, negaram haver o problema. Há uma miríade de exemplos aqui e alhures em que muitos desdenharam da pandemia e agora estamos todos observando o caos instalado e o mundo em frangalhos.
Claro que ao chegarmos nesse ponto de minha narrativa, eu e você, meu caro leitor, compreendemos que existe um lugar onde as coisas podem funcionar a contento, mas este só surgirá se cada um conseguir voltar da viagem feita ao próprio poço cheio de ego e regado por presunção criadoras das mais diversas idiossincrasias nefastas para todo o um coletivo que amarga os falecimentos provocados pelo covid-19. Então quando uma pessoa se recusa a seguir os preceitos definidos pela ciência, fico cá pensando como será o retorno desta do poço narcísico. Sim! Porque na sociedade que será gestada depois que o vendaval passar, e os jequitibás que tentaram ser todo-poderosos estiveram tombados e as mirradas taboas voltarem à suas condições normais, todos quererão dos que se mantiveram de pé, a consciência de si mesmo e como esses seres em si se relacionarão com os seus semelhantes. Desta forma, é que o título de minha missiva de hoje segue com três pontinhos, pois não objetiva definir caminhos para quem quer que seja, contudo creio que seja possível pensar um pouquinho no vir a ser da sociedade a partir de algumas questões propostas, por exemplo pelo teólogo medievalista Thomas Morus (1478-1535) e sua Utopia. Fiquemos todos atentos com as nossas condutas que devem sempre ser pautadas pelo respeito à vida e aos semelhantes.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.