Democracia e o Brasil possível

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Numa de suas várias observações sobre o Brasil Oitocentista, o escritor carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), usando o universo literário disse: “palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo ou uma revolução”. No diálogo de hoje com os meus leitores, espero que ainda os tenho, pretendo não me enveredar pelo campo da revolução, até porque como afirmou certa vez o pensador russo Mikhail Bakunin (1814-1876), aquele que vocifera muito sobre essa temática, mas não a faz valer em sua vida pessoal, tem na boca um cadáver. Se não vou me deter no campo revolucionário, então o que pretendo escrevinhar nas linhas que se seguirão? Sobre governos, não governos e desgovernos, sobre democracia e de quebra, qual Brasil será possível construirmos daqui para a frente, conforme indicou recentemente o cientista político Sergio Abranches, autor do O tempo dos governantes incidentais. Segundo ele, se faz necessário cessar as brigas de ontem, “ficar brigando brigas velhas e olhar pra frente”. Esta observação foi colhida por este que vos escreve de uma entrevista que o pensador concedeu a um jornal de circulação nacional em sua edição do doa 1.º deste mês.

Posto isto, o que deve ser feito então para encerrar conflitos que considero caquéticos e que só têm levado a Nação para o brejo, lamaçal em que o eleitorado escolheu trocar uma autocracia partidária por um desejo autocrata individualista, escudado num ultraliberalismo ultrapassado, para não dizer, nunca existente no Brasil. É preciso lembrar aqui – país foi erigido e escudado no trabalho escravo por mais de trezentos – há um atroz passivo de não valorização da atividade alheia, tendo em vista o nível de exploração do outro até a exaustão física. E quando se fala em trabalho então, é como se estivesse no ethos desta sociedade uma ojeriza às atividades, sejam elas em que esfera for da vida ativa na sociedade: o trabalho intelectual é desprezado; o escritor não tem seu ofício um reconhecimento que possa fazê-lo viver de sua arte. E quanto ao trabalho manual e mecânico, ou seja, aquele que o sujeito não precisa ser tão qualificado para exercê-lo? Embora essa categoria de atividade laboral esteja em vias de desaparecimento, por conta das constantes revoluções no campo da tecnologia, designada como a 3.ª Revolução Tecnológica, ainda há uma péssima remuneração, com o operário sendo aterrorizado diariamente pelo fantasma do desemprego.

Uma sociedade com tal envergadura, usando as observações feitas pela psicanalista e doutora em Literatura Comparada pela USP (Universidade de São Paulo), Maria Lucia Homem, está gravemente doente. Se ela está correta e creio que sim, como cada um de nós podemos, em nosso cotidiano, auxiliar para que o quadro clínico do Brasil, que é de paciente terminal na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), seja alterado usando para isso os recursos que a democracia nos proporciona? De imediato, eu vos afianço, meus caros leitores, não há caminho que não seja o da democracia, o da diversidade, da pluralidade seja em que campo social for. Como dizia o poeta, cada um é uma estrela e dentro da constelação social tem o seu brilho construído de maneira singularíssima a partir das próprias escolhas, feitas dentro de uma existência corpórea digna, sem precisar, conforme aponta o romancista francês Victor-Marie Hugo (1802-1885) no começo de seu romance Os miseráveis, se prostituir corroendo seus valores éticos e morais. Contudo, como é possível se constituir enquanto sujeito social livre, se há aglomerados de pessoas que se creem donos da verdade absoluta? Querem te dizer o que fazer, como fazer, como pensar e, ai daquele que ousar, a exemplo dos retratos psicossociais presentes no romance 1984, de George Orwell (1903-1950). Immanuel Kant (1724-1804), um pensador alemão, lá do século 18 nos diz que, somente alcançaremos esse estágio a partir do momento em que a humanidade atingir a maioridade crítica.

Soma-se a essa observação kantiana, a ideia defendida pelo genebrino jusnaturalista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), segundo a qual, o homem, em seu estado de natureza, é bom, contudo, quando se torna um ente social acaba se transformando num constructo maléfico e atroz defensor da propriedade privada. Enquanto essa ação recair sobre objetos inanimados ainda é possível buscar uma compreensão com a devida acuidade, entretanto, quando essa questão extrapola o campo da materialidade dos objetos em si, passando ao universo da pessoalidade, ou seja, quando o sujeito se pensa dono, proprietário da outra pessoa não a deixando atingir a sua maioridade crítica, há aí um dos problemas mais graves a ser equacionado. Aqui entra a questão alusiva à estrutura da sociedade humana: patriarcal. Debater esse assunto é assaz importante para se caminhar em direção à liberdade conquistada a partir de princípios racionais e nada emotivos, sempre levando em conta que cada sujeito tem suas subjetividades e estas precisam ser respeitadas, dentro das sociedades modernas.

Na entrevista publicada no último dia 31 de agosto, por um jornal de circulação nacional, Maria Lúcia Homem afirma que “a modernidade toda está embasada na invenção da subjetividade individual. Antes, tínhamos a ideia de sermos parte de um clã, da família, da tradição, de que há um Deus transcendental que sabe o que estou pensando. Grosso modo, você não tinha um espaço de privacidade subjetiva individual, que é uma invenção moderna. É o que vai fundar o Estado democrático de direito, igualmente moderno. Qual o princípio básico? Um sujeito de liberdade e autonomia, cartesiano, kantiano, que diz ‘penso, logo existo’ e ‘eu sou livre’”. Interessante notar que o indivíduo é livre, mas o que é essa liberdade que se desfruta no presente? A lei é clara: somos todos iguais! Bom! Se todos somos iguais, o que nos torna desiguais a ponto de os sujeitos sociais optarem por governos autocratas, sejam eles de legendas ou de indivíduos personificados em líderes populistas? Será que o homem brasileiro compreende bem o que significa democracia? Será que sabe o que significa liberdade e, ainda, terá capacidade de desenvolver projetos racionais para se atingir determinados fins, como dizia Max Weber (1864-1920) em seu livro Ética protestante e o espírito do Capitalismo? Mais: é possível indicar que o brasileiro tem desenvolvido ações sociais objetivando um fim específico que seja o benefício do coletivo formado por indivíduos individualizados?

Meus caros leitores que chegaram até aqui comigo, convido-os para seguirmos mais umas linhas, não objetivando responder as interpelações formuladas no parágrafo anterior e no corpus desta narrativa, mas para fazer, ao modo dos filósofos e suas diversas filosofias, perguntarmos mais um pouco sobre as nossas condutas, quiçá sejam elas no campo da mera individualidade ou na esfera de sua expressividade coletiva. Como é possível buscarmos uma sociedade democrática se os sujeitos políticos optam sempre pelo líder que lhe garanta pão e segurança? O questionamento me faz retroceder um pouco no tempo e recuperar algumas observações que já fiz, indicando que o país vivia sob o auspício do populismo econômico. Ao percorrer as páginas do livro O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016), de autoria do cientista político e professor da USP, André Singer, me convenço cada vez mais de que enquanto o Brasil não deixar as suas estruturas, vou chamá-la de senzaleiras, na qual vigora uma sociedade estamental à moda brasileira, em que o “homem livre” de ontem se tornou o fiel da balança nas decisões políticas dos últimos 20 anos, não haverá um agradável sol iluminador dos mais de oito milhões de quilômetros quadrados que delimitam fisicamente o país. Como é possível construir uma nação democrática onde vereador é para resolver problemas individuais de seus eleitores e não atender demandas coletivas?

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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