Gilberto Barbosa dos Santos
No começo dos anos 80 do século XX, portanto, há quatro décadas, os cinemas exibiam o filme designado De volta para o futuro. Excelente película que visito até o presente e, sempre me surpreende por algumas coisas colocadas naquela narrativa fílmica. A temática é alvissareira por conta de sua abordagem: a personagem principal volta ao passado e interfere no primeiro encontro de seus pais, o que poderia alterar completamente o futuro do casal e o próprio presente do filho. Sempre que converso com aquele enredo, fico tentado a imaginar como seria se isso acontecesse aqui no Brasil republicano e alguém retornasse ao passado nacional, aquele em que a estrutura econômica era escudada no trabalho não pago, para não dizer, escravagista, sustentando uma corte de amorfos e uma máquina burocrática inoperante, aristocratizada e plutocratizada, como nos apresenta o escritor José Martiniano de Alencar (1829-1877) numa série de cartas endereçadas ao imperador D. Pedro II (1825-1891), designadas Cartas de Erasmo ao Imperador. Interessante notar, meu caro leitor, que esse ontem visitado pelo nosso viajante do presente é semelhante a atualidade brasileira. A exceção é a não manutenção do escravismo, contudo, o trabalhador não é valorizado, ou melhor, o trabalho, por conseguinte, quem o realiza também não, ainda mais se a tonalidade da pele for preta.
Mesmo que seja do ponto de vista abstrato, isto é, um exercício sociológico proposto pelo pensador alemão Max Weber (1864-1920) e sua tipologia ideal e, usando aquele automóvel transformado em máquina do tempo, pretendo levar o meu leitor – caso este queira – a uma pequena viagem no tempo, mas não com destino ao futuro, como propunha aquele filme: devolver a personagem para os anos 80, tendo em vista que poderia ficar preso aos anos 50 do século XX. Resta saber se o passageiro realmente quer se deparar com as bases formadoras deste país. Já que me encontro no campo da subjetividade e da ação intelectiva, voltarei, de forma sintética aos tempos coloniais em que o Brasil não passava duma colônia de Portugal, portanto, não sendo habitado por um “povo”. Claro que nessa observação não está contida a questão indígena que, a exemplo da problemática africana, ainda não foi totalmente resolvida, justamente pelo fato de o Brasil não ter equacionado questões alusivas ao universo fundiário, concentração de terra como a base que sustenta até hoje a concentração de rendas e a enorme desigualdade social.
Há aqueles que gritam hoje o direito de propriedade disso e daquilo, mas se pudessem desbravar a própria narrativa daquilo que exige como sendo seu, entenderia que a origem é uma apropriação indébita, uma violência praticada contra os nativos que aqui estavam desde os primórdios, antes mesmo das primeiras naus cabralinas aqui aportarem, iniciando à vida colonial da terra que tinha em abundância uma espécie de árvore, cuja madeira era em cor de brasa, daí o nome desta Nação, outrora colônia, posteriormente metrópole, depois Monarquia e por fim República, sem abandonar um milímetro se quer as estruturas que antecedeu o republicanismo. Meu caro leitor, caso ache que não é assim que a coisa se processou e ainda continua a funcionar, creio que vale uma paradinha lá naquela madrugada do dia 14 para 15 de novembro de 1889, mais especificamente um sábado, quando o Monarca foi destituído, sendo sua vida foi mantida – até ai tudo bem, entendo que foi coerente a ação dos republicanos de alta patente do Exército Brasileiro -, contudo, os sediciosos não eliminaram os vícios e os hábitos monárquicos, buscando acomodar todos no novo sistema, num arranjo constitucional. Mas por que será isso aconteceu? Justamente porque o povo não participou atividade daqueles eventos?
Há milhares de livros, teses, dissertações, artigos científicos, ensaios, romances, contos, poemas, enfim, uma série de enunciações que dão conta daquele momento que deveria ser extremamente importante para a vida nacional, mas como indicou Machado de Assis (1839-1908) na célebre alegoria da tabuleta da Confeitaria do Custódio [Esaú e Jacó] será que tinta nova em madeira velha dá o tom e a cor que a sociedade espera? Parece-me que esse fragmento seja significativo ao ponto de nos fazer entender, meu caro leitor, que os jovens se afastam da vida política porque se recusam a ser as tintas novas que dourarão o madeiramento velho duma Monarquia que ainda existe no interior da República. Já escrevi aqui várias vezes indicando como isso se dá, por exemplo, na nomeação das sedes governamentais. Nos ocupantes do Legislativo seja estadual, federal ou municipal. Passa de pai para filho e os hábitos que são herdados do primeiro são mantidos pelos segundos e ainda com justificativas de que isso era assim, ou seja, uma prática, dando ênfase ao que dizia o escritor carioca: antes de mudar as leis, é preciso alterar os hábitos. Outro exemplo vem do Senado Federal; sabe-se que lá há um membro que é bisneto de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), tido por muitos como o Patriarca da Independência. Esse senador ocupa o cargo há 40 anos. Se for levado em conta que um mandato para o Senado Federal tem duração de 8 anos, esse cidadão foi eleito e reeleito quatro vezes. Pode? Pelas leis sim!
Portanto, meus caros leitores, se vocês estiverem comigo nesse périplo no tempo, mais especificamente no retorno ao período colonial e passando pelas cidades monárquicas e os primeiros lugares republicanos, verificaremos que mudaram-se as estações, mas os hábitos, arranjos, trejeitos e o “favor” continuam o mesmo numa sociedade que se quer capitalista, mas não consegue entender e usar a meritocracia como ferramenta importante para se tornar, de fato, uma ordem liberal, como pensava o filósofo inglês John Locke (1632-1704). Sendo assim, pergunto-vos: como é possível pensar num universo de igualdade de oportunidades, bem como num Estado esteja minimamente presente, se o xenofobismo, sexismo, o machismo, o racismo e outras formas de preconceito social e econômico estejam presentes e mediadores das relações humanas? Como isso é possível se ainda, a exemplo do que acontecia na Corte lisboeta, o sobrenome sobrepõe-se à qualificação técnica, o mérito? Como é possível, como bem afirmou Roberto DaMatta em um de seus livros, manter o famigerado “você sabe com quem está falando?” Parece-me que a essa interpelação, soma-se a obra do sociólogo fluminense Carlos Alberto Almeida: A cabeça do brasileiro. Neste livro, o autor trabalha, de forma quantidade, questões alusivas ao preconceito racial no Brasil.
Como podem olhar a partir do título desta reflexão, meus caros leitores, propus um retorno ao passado e, de lá, uma volta para o Futuro, tentando entender o que aconteceu e se seria possível alterar o presente do Brasil. Claro que na ficção, conforme a aventada no começo dessa reflexão, tudo é possível, até mesmo seguindo as observações do semiólogo italiano Umberto Eco (1932-2016). Segundo ele, um texto literário é como uma máquina de escrever preguiçosa que não pode dizer tudo, precisando, portanto, que o leitor faça a parte mais importante: preencha com suas vivências e experiências, as lacunas deixadas pelo texto-matriz. Desta forma, ao voltarmos para o presente, será possível entender que ninguém nasce preconceituoso, nem é racista enquanto estiver no útero da mãe, mas torna-se a partir das mensagens recebidas pelos sujeitos durante seus processos de formação social, mesmo que a sociedade tente ser capitalista, mas conserve em seu bojo, o estamento, a burocracia aristocratizada, o governo que funciona dentro do palácio com servidores patenteados pelos sobrenomes nobiliárquicos. É isso! Deixemos a Colônia, a Monarquia lá no seu passado e vamos de fato construir uma República brasileira!
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.