Gilberto Barbosa dos Santos
Parece-me que tratar desse assunto é “lugar comum”, portanto, nada novo na seara do preconceito étnico-social e econômico nas terras brasileiras. Então, passarei ao próximo assunto da pauta, pois esse, de ficar escrevendo sobre consciência negra e outras adjetivações etnocêntricas, já deu o que tinha que dar, ou seja, em nada! Exceto se as enunciações apresentarem narrativas que agradem aos leitores das linhas que confecciono semanalmente aqui. Sendo assim, então tentarei compor um texto aprazível ou quase isso, já que é complexo abordar algo diferente do cotidiano num país que classifica e “sentencia” o sujeito social a partir do seu pertencimento étnico e no circuito economia e no universo global de mercadorias.
Quando se observa o comportamento do indivíduo, surgem logo as perguntas: ele reproduz o meio ou o seu “eu” é assim mesmo? Ou o comportamento é uma simbiose das duas coisas? De qualquer forma, as respostas passarão pelos primeiros passos no que diz respeito aos processos de socialização primária completados pelo universo da socialização secundária. Cabe aqui uma parada na estação kantiana, principalmente nos departamentos alusivos aos imperativos, sejam eles categóricos ou hipotéticos. Lembrando que imperativo diz respeito à ideia de determinar, impor e no campo verbal é relativo àqueles que indicam comando. Sendo assim, levando em conta que o ser humano não nasce preconceituoso, mas absorve esses valores durante os primeiros passos dados em direção ao ente social, é possível acrescentar que a determinação de um sujeito que pré-julga o seu semelhante a partir das condições sociais e étnicas parte do interior das alcovas.
Até neste ponto nada demais, dirão aqueles que me acompanham semanalmente aqui nas páginas deste jornal ou no www.criticapontual.com.br, contudo, se o pré-conceito esconde um forte viés moral – relativo aos costumes – atingindo o lado ético da existência corpórea dos sujeitos que praticam um atroz etnocentrismo e também daqueles que são vítimas de condutas nefastas, pois ensinar o filho, desde a mais tenra idade, a separar os sujeitos pelas suas condições socioeconômicas e étnicas e religiosas, é uma das formas mais cruéis e aviltantes de se conduzir uma criança à sua fase adulta. Portanto, mesmo que sejam publicados decretos aqui e ali, a situação me parece estar longe de ser solucionada, ainda quando se tem informações de que brancos desejam e acabam se passando por descendentes de africanos para conseguirem ingressar no sistema de cotas de cursos universitários, como aconteceu recentemente no curso de Medicina da UFMG. Comportamentos que mesclam o universo da imoralidade com o campo antiético. E a culpa é de quem? Da sociedade? Dos amigos? Ou dos pais que forneceram os princípios básicos para que esses seres vivam em sociedade?
Talvez os filósofos Immanuel Kant (1724-1804) e Arthur Schopenhauer (1788-1860) possam me ajudar a compreender um pouco esse mundão designado por muitos como sendo pós-moderno. O primeiro afirma que o homem só atingirá a liberdade a partir da emancipação que será alcançada através da razão e, para se chegar a ela, é preciso observar os juízos sintéticos a priori e os a posteriori, mais especificamente os valores éticos e morais que determinam e norteiam a conduta do sujeito. Neste sentido, cabe uma interpelação: o preconceito é uma hipótese social ou uma categoria usada por sujeitos a partir do seu local, isto é, do seu existir? Responder a essa questão requer a utilização de diversos mecanismos analíticos, entre eles, revistar o passado, principalmente quando se discutia a possibilidade de se eliminar o trabalho servil, mesmo diante do fracasso de políticas concessionárias, como a Lei do Ventre Livre e do Sexagenário que, como se diz no jargão popular, foram criadas para inglês ver, já que a partir da analise de sua execução será possível compreender suas inviabilidades na prática.
É significativo recordar, de acordo com o importante trabalho Onda negra Medo branco (http://rapefilosofia.blogspot.com.br/2015/07/livro-em-pdf-onda-negra-medo-branco-o.html) confeccionado pela historiadora e professora da UNICAMP, Celia Maria Marinho de Azevedo, sobre a época em que havia a possibilidade de se extinguir o cativeiro, que o braço africano foi preterido num futuro em que o trabalho seria assalariado. Sendo assim, não precisa ir muito longe para entender que, livre dos grilhões da escravidão, o africano e seus descendentes se viram presos a outras teias e algemas confeccionadas pela miséria, insensatez e preconceito do branco e do europeu que aqui chegou para ser assalariado nas áreas urbanas e nas zonas cafeeiras que se espalhavam pelo interior do Brasil. Muitos podem dizer que vários dos ex-escravos optaram por ficar nas propriedades rurais onde trabalharam ou nas residências urbanas nas quais serviam enquanto escravos urbanos, todavia, é preciso ter claro que quando isso aconteceu, é visto como caso isolado, pois ninguém quer ficar num local cujas lembranças são amargas, principalmente quando retratam torturas, sevícias, estupros e violências de todo o tipo. Desta forma, lhes restaram as zonas periféricas das grandes cidades que, tempos depois, se transformaram nos grandes cortiços como o Cabeça de Porco no centro da cidade do Rio de Janeiro.
Se isso é fato, então, como poderiam ingressar nas fileiras do proletariado urbano que surgia na esteira do processo de industrialização crescente no final do Brasil Oitocentista? É deste Brasil que emerge o afro-brasileiro que hoje luta pela cidadania completa e sua real emancipação. Ao lhe ser concedido o direito civil, isto é, o de ir e vir, não lhes foram ofertados também o direito social, aquele que garantia a participação na riqueza produzida pela sociedade por intermédio da produção de mercadorias. Também lhes foram vetado o direito político que permite ao sujeito social atuar na vida política da Nação. Portanto, sem os dois últimos direitos, a cidadania fica incompleta e o desejo de emancipação foi adiado, sabe-se lá para quando. De qualquer forma, se compreende neste presente o grau de dificuldade de se inserir no novo contexto global de produção e consumo de mercadorias, quiçá o nível de escolaridade, já que a cada passo dado, o afro-brasileiro terá lhe assombrando, a referência do branco. Dito de outra forma: para se equiparar a um descendente de europeu, o africano-brasileiro terá que ser dez vezes melhor e ainda assim, poderá ser rebaixado no momento seguinte. Esse é o quadro, pintado sem cores, isto é, em preto e branco, retratando as relações sociais e inter-raciais neste Brasil que alforriou seus escravos a pouco mais de 120 anos, contudo, em virtude da forma como isso se realizou, “pelo alto” por assim dizer, isto é, por meio de benevolência do governo imperial, tudo permanece como dantes.·.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo/Cientista Político, editor do site www.criticapontual.com.br, professor no ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP; escreve às quintas-feiras nesse espaço: E-mail: gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.