Cidadãos e suas toscas cidadanias

Gilberto Barbosa dos Santos

        

Começo as linhas de hoje, um tanto quanto trôpegas, a partir de um trecho do artigo Thoreau aos 200 [Henry David Thoreau – 1817-1862 – autor do profundo livreto Desobediência civil] escrito pelo pensador lusitano João Pereira Coutinho – autor do livro As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários – e publicado num jornal de circulação nacional em sua edição de antes de ontem. “Bem sei que, nas sociedades infantilizadas em que vivemos, exigimos da autoridade central uma companhia intrusiva. Não queremos o Estado nas suas funções básicas; exigimos um Estado máximo até para as cosias mínimas”. Diante do exposto, o que pensar e analisar? Será que a frase, lógico, descontextualizada, pois o objetivo do autor é abordar um escritor norte-americano, pode dar um alento sobre a sociedade brasileira?

Parece-me que sim, e espero que o meu leitor semanal possa me acompanhar nas linhas que se seguem, pois aqui o escopo é tão somente o de tentar compreender que Estado é esse que emerge da vontade popular, isto é, do povo brasileiro que a cada dois anos é convocado, por força da lei, a comparecer às urnas e “exercer” o seu poder “democrático”. Primeiramente, chamo a atenção para o termo “infantilizada”, que é utilizado para adjetivar o Brasil. Será que a nossa Pátria ainda é infantil? Uma breve análise sobre a jovem República – sim, jovem porque a Nação é republicana tendo pouco mais de 127 anos – me permite apontar que sim, ainda mais levando em conta que o brasileiro não participou ativamente da queda da Monarquia, evidenciando que tudo não passou de uma quartelada orquestrada por jovens oficiais do Exército brasileiro – existem trabalhos que apontam algumas sedições no Rio de Janeiro, porém, se for levado em conta à magnitude geográfica brasileira, os tais focos de rebelião não passaram de quimeras sediciosas, mas voltarei a esse tópico em outro momento.

Permanecendo na adjetivação, somente a pecha de infantil valeria uma miríade de reflexões, portanto, as linhas que são tecidas não objetivam apontar verdades absolutas, mas apenas um singelo quantum que externa como observo esse país que ainda arrasta os grilhões da escravidão querendo se tornar um país liberal ou, como querem alguns idólatras, socialista ou um país socialdemocrata, ou sei lá mais o que de ismo, já que destetam a sociedade escudada no mercado, sem entender ao certo como ela funciona. Desta forma, para se deixar esse campo lácteo, faz-se necessário ter maturidade política e, claro que, com o atual quadro político-administrativo, esse objetivo está longe de ser alcançado. Um exemplo disso pode ser conferido na entrevista que o senador Renan Calheiros, das fileiras do PMDB alagoano concedeu a um periódico de circulação nacional. O referido político está no Senado Federal há mais de duas décadas, tendo ocupado a presidência daquela Casa em, pelo menos duas vezes, sendo que na primeira foi obrigado a renunciar ao cargo porque havia contra si a denúncia de que suas despesas pessoais eram pagas por um lobista duma construtora. Até ai todo mundo já sabe, entretanto, o que espanta os indivíduos que analisam com um pouco mais de acuidade, é esse senador dizer que se faz necessário haver uma reforma política – coisa que o Brasil precisa urgentemente -, contudo, será candidato a reeleição em 2018.

Como ele pode falar em mudanças no mundo da política brasileira, pleiteando mais um mandato no Congresso Nacional, tendo contra si um amontoado de denúncias que levariam um simples trabalhador ou reciclador de materiais descartados a cumprir longa pena, sem direito a tornozeleira e visita íntima e o seu bolo de aniversário sendo espatifado por questões de segurança? Esse leve trecho tem como escopo apenas externar a minha indignação ao ver que aqui, a lei que é aplicada em Francisco não vale para Chico, ainda mais se o primeiro for morador de palafitas e outras senzalas pós-modernas e o segundo em palácios e imponentes residências e for amigo do rei. Ao primeiro estarão sempre reservadas as masmorras fétidas do mundo contemporâneo que se assemelham aos currais em que eram depositados os escravos depois de um dia escaldante e seguido de açoites. Já para Chico, um séquito de bajuladores, ávidos por conseguirem um quinhão e um carguinho ao lado do governante que não reúne condições de ficar no posto, porém, incautos eleitores carentes de cidadania o aplaudiram durante as campanhas eleitorais acreditando que o sertão viraria mar, como diz no refrão da música da dupla Sá & Guarabira. Mas, enquanto o sertão não virar mar, o dorso é salgado pelo suor do trabalho e do sol escaldante e o chicote é usado com violência. O escritor brasileiro José Martiniano de Alencar (1829-1877) acreditava, a exemplo do que escreveu Platão em seu livro Política que essa relação violenta entre escravagista e escravo poderia emancipar o segundo, ou seja, que a lei valeria para este, enquanto ao primeiro se reservava as benesses da mesma legislação. Quem quiser saber mais sobre essa relação simbiótica, pelo menos do ponto de vista ficcional, basta ler o romance O tronco do ipê, ou o meu artigo O sentido da escravidão em O tronco do ipê, de José de Alencar, disponível no site http://seer.fclar.unesp.br/semaspas/article/view/8346.

Mas para não perder o foco e ser digressivo, volto à citação no começo dessa reflexão: por que o brasileiro quer a presença do Estado nas coisas mais comezinhas do existir social dos indivíduos? Para responder a essa interpelação, mesmo que de forma sintética, faz-se necessário um retorno no tempo, especificamente na época monárquica. Claro que todos são cônscios de que o fim da escravidão não foi uma conquista dos africanos desterrados e seus descendentes e, sim, uma concessão do Estado Imperial – daí a pecha que a Princesa Isabel tem até hoje de ser A redentora do Brasil. Bom! Se o fim do cativeiro não ocorreu por pressão e sedições dos escravizados, claro que a relação entre os libertos e o alto do trono só poderia ser a que se vislumbrou, a partir da Guarda Negra, na passagem da Monarquia para a República. Outro fator a ser ressaltado daquele período, era a divisão social: existiam apenas duas categorias – escravos e escravagistas, contudo, entre essas duas entidades sociais flutuavam os chamados Homens livres, conforme apontou a filósofa Maria Sylvia de Carvalho Franco em sua obra Homens livres na ordem escravocrata. Esse brasileiro flutuador foi fartamente representando pela literatura brasileira oitocentista como fez, por exemplo, o escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) com a sua personagem José Dias em Dom Casmurra e Helena, que ilustra a enunciação homônima. Pois bem, se o Brasil monárquico do século XIX é marcado pelo favor, o país republicano do Terceiro Milênio não abandonou essa prática, haja vista as campanhas e verborragias propaladas pelos nossos políticos em época eleitoral. Como diz uma velha frase: nunca se mente tanto quanto nesse período. E para confirmar isso, é só percorrer as páginas recentes dos grandes jornais e de periódicos interioranos: promete-se o mundo e os fundos e faz-se o diabo para enganar o povo, esquecendo-se que este, a exemplo da personagem de O retratado de Dorian Gray, vem cobrar a fatura: é só aguardar e Dilma Rousseff que o diga. Enfim: “será que o Estado substituiu a consciência individual?”, pergunta João Pereira Coutinho em seu texto sobre Henry Thoreau. Em breve tentarei responder a essa interpelação.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e gilberto_jinterior@hotmail.com .

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