Brasil: país das ausências e presenças

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Achei interessante começar as linhas que se seguem a partir de uma observação feita pela ativista do movimento negro feminista brasileiro e fundadora do grupo Geledés, Sueli Carneio. Segundo ela, “falta no Brasil uma sociedade civil ampla, poderosa, que pressione, de fato, os poderes instituídos. As democracias fortes são compostas por organizações autônomas e independentes que fazem mediação crítica entre os diferentes poderes e o conjunto da sociedade”. Essa fala pode ser encontrada no livro da jornalista Bianca Santana: Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro [São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 157]. O trecho me faz andar em direção a um país que tenta caminhar buscando um futuro diferente do que presente vivenciado pela população, entretanto, de cada dois passos dados objetivando esse escopo, um é dado para trás, fazendo com que tudo fique no mesmo lugar ou progrida lentamente. E a culpa é de quem? A interpelação faz sentido, porque não cabe mais a desculpa de que quando tudo trava, o culpado é o outro, o vizinho, o alheio, inclusive, como disse certa vez o folclórico ex-presidente Jânio Quadros (1917-1992) “as forças ocultas” que paralisam os já paralisantes brasileiros.

Como tenho reiterado aqui e em outros lugares nos quais externo minha visão de mundo, não somente a respeito do país, mas também me arrisco a tecer comentários sobre o humano que deseja ser demasiado humano, é preciso entender que se não houver mudanças na maneira como o homem se pensa e o próprio local em que habita, não haverá milagre que dê jeito. O devir de um povo estará sempre a mercê de como ele projeta o seu futuro. Creio que se não se almejar uma sociedade justa e aí entra a questão da Justiça e o cumprimento correto das leis, levando em conta que todos são iguais perante ela. Muitos dizem que a legislação é sempre a para inglês ver, pois há o registro da norma, contudo, a sua prática dependerá sempre do saldo da conta bancária de indivíduos singulares e coletivos, de acordo com as denúncias feitas pelo escritor José Martiniano de Alencar (1829-1877) em vários de seus textos, entre eles, Cartas de Erasmo ao Imperador, que pode ser acessado gratuitamente no site da Academia Brasileira de Letras.

Até aqui tudo coerentemente com o desejo de uma população que conhece bem as estruturas de governo, inclusive tem consciência de que o presidente da República empunha dois postos na sua gestão de quatro anos. Ele é o chefe de Estado e também de governo. São duas instâncias diferentes que acabam se entrelaçando na figura do chefe do Executivo Federal. Desta forma, o gestor máximo do Brasil precisa saber dialogar com o Congresso Nacional e nunca tentar macular a imagem da Corte Suprema, no caso aqui o STF (Supremo Tribunal Federal). Na ausência de habilidade em fazer a ponte entre as três instâncias, sobra o que se assiste no momento: um presidente que ataca, de maneira pensada, os outros dois pilares que fundamentam a República brasileira, numa clara tentativa de solapar a democracia, objetivando construir uma autocracia sustentada por uma teocracia disfarçada de vontade popular. A constituição é clara e o Estado brasileiro é laico, então quando se tem um Ministro na Educação que pensa, fala como se tivesse no púlpito de sua congregação religiosa, é porque a situação está beirando o descalabro e há uma clara tentativa de se subverter a ordem e as leis do país em benefício de determinados grupos que almejam se encastelar no poder central, como dizia Karl Marx (1818-1883) em sua obra A ideologia alemã. Quem não a leu, recomendo, até mesmo para criticar o observado pelo pensador alemão.

Segundo ele, o Estado aparece para seus integrantes como um grande ser que equilibra todas as pelejas dos homens, contudo, seguirá sempre os ditames do grupo que está no poder. Se o sujeito que se pretende cônscio, for portador de cidadania, de fato e de direito, entenderá muito bem o que o autor pretendia explanar. Um breve olhar sobre os últimos 30 anos do Brasil, será suficiente para que o analista indique os motivos da beligerância do presente, inclusive o recrudescimento das forças políticas divididas entre “nós” e “eles”, sem que seja possível edificar um consenso visando a retomada da Nação que sofre com a pandemia. Agora, se o meu leitor desejar ir mais longe para entender as raízes dessa Nação que tem tudo para deixar a chancela de pais em desenvolvimento para país desenvolvido, deve criar coragem e se reencontrar com os processos econômicos que edificaram o Brasil. Já enfatizei aqui outras tantas vezes que o nosso passado não foi sepultado e as relações sociais do presente ainda se dão sob a perspectiva colonial e escravista, recheada do que Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) classificou em seu livro Raízes do Brasil, bovarismo, isto é, um desejo de ser o que não se é, enquanto se vive aqui. Dito de outra forma: o brasileiro sonha com outro país, entretanto, fica apenas no universo onírico, pois, nas suas relações socioeconômicas, permanece como outrora o fora, ou seja, entre a casa-grande e a senzala com um imenso espaço entre os dois ambientes. Na Idade Média, esse vácuo no interior dos castelos era chamado de burgo e foi utilizado para comercializar produtos, daí a origem do termo burguesia. No Brasil senzaleiro, o espaço era usado para práticas de violências e outras sevicias contra a escravaria, em alguns casos, para agradar o senhor da casa-grande.

Desta maneira, como pensar a sociedade civil almejada por Sueli Carneiro? Em primeiro lugar é preciso ter claro que aqui não há um povo que exige a devolução dos recursos que são retirados de sua algibeira por meio de impostos, taxas e tributos. Há sempre um esmolar aqui e outro ali, em busca de um assistencialismo desenfreado, viciando o necessitado e aquele que detém, não mais a carta de alforria, mas o contato com o chefe do Executivo, isto é, o chefe de Estado que deve dançar a música entoada pelo Congresso para conseguir pontuar o seu poder político. O escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) chama a atenção para essa conduta que está protegida, mais pelo hábito do que pelas normas vigentes na sociedade brasileira. Sendo assim, tem-se uma lei que pode, por meio da hermenêutica, deixar de ser aplicada por intermédio dos chamados recursos e outros embargos infringentes e tudo volta como dantes, pois não se tem uma decisão definitiva, que os doutos chamam de “trânsito em julgado”, isto é, não cabe mais recurso. Posto isto, fica evidente que é necessário, antes de se construir uma sociedade civil atuante, criar ferramentas e mecanismos que permitam o brasileiro abandonar a ignorância política que só tem colaborado para a manutenção de vícios, ou melhor, trejeitos herdados do período colonial, depois monárquico e mantido pela República através de muitos artifícios e outras verborragias jurídicas. As dificuldades existentes se encontram justamente nesse ponto: as pontes e ferramentas para transformar um público, uma massa num povo que cobra os seus direitos e observa serenamente os dispositivos presentes na legislação vigente no Brasil. Infelizmente se assiste ao solapamento das instituições por um novo tipo de coronelismo que eu chamo de mandonismo teologal.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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