Gilberto Barbosa dos Santos
Quando tu, meu caro leitor, se depara com os textos que estampo semanalmente aqui nesta página, o que espera encontrar? Uma reflexão que lhe possibilite pensar no jogo existencial ou na harmonia que sempre buscou e lhe contaram, desde a infância, ser possível encontrar em algum ponto de fuga em que esteja olhado [observação feita a partir do romance Ponto de fuga, da escritora norte-americana Mary Sharratt], isto é, no mar, no asfalto, na lua ou nas estrelas? Há quem busque sempre nas linhas que se seguem um atroz partidarismo disso e daquilo. Uma defesa de determinado ponto de vista que pareça ser o mais acertado, todavia, como dizia Arquimedes, “dê-me um ponto fixo no universo e eu poderei movimentar a Terra”. Essa observação, na era pré-socrática, portanto, na Grécia Antiga, ainda não foi derrubada. Sendo assim, a exemplo das leis da gravidade, também pode ser considerada imutável. Mas por quê? Creio que seja interessante buscar respostas a partir do lugar que se fala, isto é, de onde se discursa, como se discursa, para que, e, a quem se discursa e o objetivo proposta com tais argumentos.
Pois bem. Se eu deixar o lugar da fala de Arquimedes no interior da Terra e me deslocar para o Universo, compreenderei que o pensador pré-socrático tinha razão, pois não há nenhum ponto fixo no universo e nem o ontem, o hoje ou o amanhã, mas tão somente o eterno instante. Diante dessa constatação e deixando o mundo das estrelas e retornando ao lugar em que a vida, para existir precisa do Sol, estrela de maior massa, portanto, os corpos estelares de menor massa giram em torno dele e do próprio eixo. Posto isto, fica claro que, assim como no céu, aqui na Terra também temos corpos celestes que falam, propalam e vociferam pensamentos a espera de que outros entes com menores massas celestiais gravitem em torno dele e os flash sejam acionados. Aqui abro espaço para dialogar rapidamente com uma música do cantor e compositor Lobão, cujo refrão era mais ou menos assim: “é tudo pose, é tudo pose, pessoas preocupadas com os olhares ao redor”. Somarei a essa observação, a fala daquela senhora que, diante do isolamento social por conta desta pandemia, se perguntava o que faria com os 500 pares de sapatos que havia em sua casa. Sinceramente, meu caro leitor, eu não saberia o que responder, pois teria que entender primeiro porque ela tem à disposição 500 pares, sendo que possui apenas um par de pés. Olha aí o dizer de Arquimedes, pois é direito dela o tê-los e até mais se assim lhe aprouver.
Assim como não posso dizer nada sobre o comprar e usar tantos sapatos assim, creio que tecer certos comentários sobre o racismo no Brasil, sem realmente ter vivenciado essa doença, esse câncer cultivado por muitos, mas negado por outros tantos que, quando questionados afirmam “ter um amigo[a] preto[a]” – nada mais preconceituoso do que isso. Mas vá lá! Pensemos, eu e você que está lendo essas linhas neste exato momento: como é possível dizer algo com profundidade ou quase isso sobre determinada temática sem a conhecer? Posto esta interpelação, me vem outra: o que é e como chegar a verdade? Essa é uma das mais encantadoras perguntas do mundo da Filosofia e, me aproveitando dela, emendo outra interpelação: quem disse que fulano é melhor do beltrano? A cor da pele? O saldo da conta bancária? Os amigos que ele tem à disposição no alto escalão burocrático do Estado, mantido com os impostos que todos pagam? A esta pergunta, me parece que todos devem ter respostas nas pontas de suas respectivas línguas, entretanto, de difícil prática, mas é interessante observar que, a exemplo daquela figura de linguagem, a metonímia, na qual a parte é tomada pelo todo. Por exemplo, ao invés do sujeito ser reconhecido pelo seu nome oficializado nos documentos, isto é, o ser em si, ele é tomado pelo cargo, dentro daquilo que Roberto DaMatta diz em seu trabalho Carnavais, malandros e heróis: “sabe com quem está falando?”. Recordo-me aqui um fato contado por uma amiga. Segundo ela, conhecia uma determinada pessoa que, ao se referir a irmã, nunca o fazia pelo nome de batismo, mas somente pela condição de ser residente na Dinamarca: “minha irmã da Dinamarca!”.
Essa é uma peculiaridade brasileira que atravessou toda a monarquia e veio sentar praça na República, mantendo o que Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) define como bovarismo, evidenciando que somente foi alterado o nome do regime, conforme o Conselheiro Aires, um dos narradores oblíquos criados por Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) no romance Esaú e Jacó. Toda vez que leio os jornais e vejo a situação vexatória em que a República se encontra, com súditos analfabetos políticos, pois desconhecem minimamente o correto funcionamento das instituições que sustentam o arcabouço da vida ativa no país, além de saberem pouco ou quase nada da Constituição Federal (1988), me convenço de que a dúvida de Custódio ainda persiste: afinal é Monarquia, República ou uma mistura das duas? Será que Immanuel Kant (1724-1804) tinha razão ao afirmar em seu trabalho À paz perpétua que o homem, em virtude de não ter atingido a maioridade crítica não teria condições de viver numa República? Sendo assim, a Monarquia seria o regime mais aprazado, tendo em vista que o monarca não cairia de paraquedas no trono, pois teria que ser preparado para o posto. Essa observação me faz recordar aqui, de chofre, que durante a vigência da monarquia nessas paragens brasileiras, parecia que o rei não governava, apenas usufruía do cargo. Claro que se faz necessária uma pesquisa mais aprofundada na história do Brasil para saber se de fato, os nossos imperadores, não governaram, apenas reinaram, deixando a política para a briga entre Conservadores e Liberais [como Machado de Assis dizia não existe nada mais interessante do que um liberal ser oposto a um conservador, isto é, os dois são gêmeos siameses. Aqui me parece que o grupo de Hard Rock dos anos 70 do século XX, Harpia tinha razão ao afirmar em uma de suas letras que “o passado nos reserva um desafio”.
Sendo assim, meu caro leitor, será que seja possível olhar o ontem brasileiro, objetivando dar um passo à frente? Muitos dirão que se o cidadão se manter lá no século Oitocentista nunca desembarcará de fato no século XXI. Instigante olhar, entretanto, isso só seria possível se o racismo, o complexo senzaleiro, a síndrome do pequeno poder, o reizinho que acredita ser um autocrata, não estivesse dando as cartas no presente. Se essa é a realidade do país, então o cientista social, sem politiquismo e militância, enxergará com a devida acuidade por que o presente está cada vez mais parecido com o passado, dificultando a jornada que a Nação deveria empreender para desembarcar no mundo moderno. Será que o medo de observar o passado, não muito distante, reside no fato de que poder-se-ia se se descobrir racista, reacionário, violento? O que há no passado desse homem que faz com que ele se recuse a revisitar os pontos que o construíram como sujeito social, optando assim por voltar lá na época medieval? É, meu caro leitor, como podes ver, o indivíduo individualizado confia nos sistemas peritos, conforme aponta o sociólogo inglês Anthony Giddens em seu trabalho As consequência da modernidade, porém, teme o seu passado coletivo de escravagista, machista, arrogante e patriarcal, mas o mantém avidamente em seu cotidiano.
Enfim, meu distinto leitor, voltando a Arquimedes, não é possível defendermos ponto de vista ossificados e querer dá-los como verdades absolutas. Claro que todos nós sabemos que os problemas das desigualdades sociais no Brasil foram provocados pelo forte passivo escravagista, pela formação de uma casta de burocratas aristocratizados e sempre seduzida por uma categoria de plutocratas acostumada a se enriquecer com os tributos que a população paga diariamente. De um lado, temos um grupo que quer se apropriar de parte dessa fatia do bolo tributário e do outro há uma facção que deseja a mesma coisa e, entre as duas facetas da vida nacional, está o cidadão comum sem cidadania, esperando de pires na mão cair migalhas do alto do trono. Machado de Assis continua atualíssimo e sempre a nos dizer muito sobre o hoje a partir do seu olhar construído ontem.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.