Gilberto Barbosa dos Santos
Ao ler o Casta: as origens de nosso mal-estar, escrito pela jornalista estadunidense Isabel Wilkerson, recém-lançado no Brasil pela editora Zahar – incorporado à minha biblioteca particular – fiquei tentado a analisar alguns fragmentos da obra, levando em conta a realidade brasileira sob diversas perspectivas, entre elas a apresentada pela escritora e crítica literária Tony Morrison (1931-2019), quando, no ensaio “o corpo escravizado e corpo negro” [A fonte da autoestima. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p.104-109] ela faz uma distinção entre os corpos escravizados os negros. Tentarei juntar à essa compreensão os conceitos coercitivos presentes nos trabalhos sociológicos de Emile Durkheim (1858-1917), principalmente no que diz respeito às instituições como Igreja, Estado e Família e algumas questões apresentadas pelo escritor brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) em sua obra romanesca.
Posto isto, começo por um pequeno fragmento deslocado do texto de Wilkerson para me ajudar na reflexão desta última quinta-feira gelada de julho. Segundo a jornalista, “todos nascemos num jogo de guerra silencioso, com séculos de existência, em equipes que não escolhemos. O lado para o qual somos designados no sistema americano de classificação humana é anunciado pelo uniforme da equipe, usado por cada casta, indicando nosso suposto potencial e valor. Que alguém consiga criar ligações duradouras por sobre essas linhas divisórias inventadas é um atestado da beleza do espírito humano” [Casta: as origens de nosso mal-estar. Trad. Denise Bottmann e Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p. 32-33]. Soma-se a esse excerto, a epígrafe retirada de um texto do escritor e crítico literário estadunidense James Baldwin (1924-1987) autor do livro Notas de um filho nativo [São Paulo: Companhia das Letras, 2020] “Pois, mesmo que eu falasse, ninguém acreditaria em mim. E não acreditariam em mim justamente porque saberiam que era verdade”.
Como podem compreender, meus caros leitores, esses dois momentos do livro nos fazem refletir sobre o mundo em que vivemos que, segundo algumas pessoas, já era assim quando chegamos aqui. Por que então por que mudar? No caso de nossos políticos, foram escolhidos para ajustarem as alterações, mas como todos sabem, aqui a democracia é mais delegativa do que participativa, então quando um representante da coletividade vocifera tais observações, todos olham como se estivessem assistindo uma parada militar, como disse certa vez o jornalista Aristides Lobo (1838-1896), por conta da passagem da Monarquia à República, tão bem explorada ficcionalmente por Machado de Assis em seu penúltimo romance Esaú e Jacó, publicado em 1904, portanto, 16 anos do fim do Império, sendo que o novo regime já tinha debutado à sua chegada nas paragens brasileiras. Para manter-me no foco dessa narrativa de hoje, acrescento a segunda epigrafe utilizada por Isabel Wilkerson vinda da mente do físico teórico Albert Einstein (1879-1955): “Se a maioria conhecesse a raiz desse mal, o caminho para curá-lo não seria longo”. Diante do exposto até aqui, pergunto-vos meus caros leitores: pode-se responsabilizar alguém no que tange ao quadro dantesco em que a sociedade vive?
É possível elencar aqui uma série de mazelas que nós, cientistas sociais, somos chamados cotidianamente a compreender e, se possível, indicar caminhos com possíveis saídas. A médica negra brasileira, Jurema Pinto Werneck, diretora da Anistia Internacional do Brasil, ligada a ONU (Organizações das Nações Unidas) em recente entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, afirmou que é necessária a refundação da Nação. O seu olhar faz parte de sua visão sobre o racismo sistêmico que, para ela, é “a regra que estrutura as regras do funcionamento do Brasil como estado e como nação, inclusive seu povo e sua sociedade, está fundada nos alicerces do racismo. Então falta refundar a nação”. Mas por onde começar? Responder essa interpelação me leva às conceituações feitas pelo sociólogo francês quando trata das questões alusivas aos fatos sociais, os definindo como externos aos sujeitos, portanto, coercitivos, pois estão agindo antes mesmo deste indivíduo se tornar ente social após os processos de socialização primária e secundária. É interessante notar aqui, meus caros leitores, que todos condenam a corrupção, contudo, os políticos envolvidos em mutretas, rachadinhas e enriquecimentos ilícitos, usando a estrutura plutocrática, já denunciada pelo escritor José Martiniano de Alencar (1829-1877) ainda nos tempos monárquicos por intermédio do que chamou de Cartas de Erasmo ao Imperador, permanecem comandando o país.
Se a corrupção e o enriquecimento ilícito, orquestrados por parte da categoria política, continuam dando a grassa na sociedade brasileira, é preciso questionar por quais motivos isso vem acontecendo. Se é comum o brasileiro condenar esse tipo de delito, bem como achar o racismo um ato abjeto, contudo, as duas questões permanecem no cotidiano brasileiro. Neste sentido, a observação feita pela médica carioca e integrante dos quadros da ONU, é pertinente, pois é necessária a recriação deste país. A interpelação que fica é: como? Novamente Durkheim pode apresentar não a solução, pois não é esse o papel de cientista social, mas sim dos ideólogos e aí eles existem de todos os lados, das chamadas esquerdas, direitas, centros e seus extremos. Não adentrarei a este universo, pois não cabe aqui e sim nos templos disso e daquilo. Para o momento, entendo, meus caros leitores, que é preciso compreender a natureza das coisas e no caso em tela, do Brasil. Será possível a reconstrução de um país, escudado em mais de 300 anos de trabalho escravo, contudo não é do homem em si, mas somente daqueles que tinham a pele preta e essa condição, quiçá a Lei Áurea publicada naquela manhã de sábado, 13 de maio de 1888, não foi abolida, bem como o hábito racista herdado pelos descendentes de escravagistas e por parte da sociedade de um modo em geral. Nos Estados Unidos esse apartheid, conforme a jornalista Isabel Wilkerson apresenta em sua obra quando analisa o sistema de castas e também apresentado pelo psiquiatra martinicano Franz Fanon (1925-1961) em vários de seus textos, entre eles Por uma revolução africana: textos políticos [Rio de Janeiro: Zahar, 2021], é claro, no Brasil é negado, conforme já evidenciei aqui.
Parece-me que neste ponto entra em cena a reformulação, não somente da Nação, mas sobretudo das instituições que a formam. Há aqueles que desejam o retrocesso, pois ainda estão parados na Idade Média, indicando que é melhor ficar no ontem do que avançar visando o futuro mais igualitário. Daí a dificuldade de se implantar uma sociedade mais igualitária na qual, conforme nos apresenta o pensador francês Michel Lacroix em seu livro O culto da emoção: ensaios [Rio de Janeiro: José Olympio, 2006], os jovens e adolescentes do presente almejam trabalhar no que gostam, dividindo seu tempo com ações solidárias. Por que será que é tão difícil a família entender o presente que a sociedade vive? Creio que se deve ao fato de estar-se vivendo uma completa anomia, nos dizeres de Emile Durkheim, ou seja, de plena ruptura com o passado, enquanto o pretérito convive com o futuro, tentando encontrar um espacinho no amanhã para o ontem que não quer morrer, principalmente no que diz respeito à coerção que as instituições exercem sobre o homem do devir. Essa imposição ocorre por meio do dever, contudo, não se analisa a natureza de desse dever que existiria no devir.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.