Gilberto Barbosa dos Santos
Em tempos de quase santos heróis e semideuses, principalmente na esfera da política – período em que para se ganhar a confiança do eleitor incauto, o postulante se coloca na condição de paladino da moral e da ética como se essas duas categorias fossem produtos a serem adquiridos no mercado eleitoral, portanto, de livre opção do candidato, eis que volto aqui às páginas do INTERIOR para tratar dum assunto que tem tudo a ver com o presente, sobretudo, da crise que assola o país e de quebra as pessoas que escolhem livremente seus representantes para o Legislativo e no Executivo das mais de cinco mil cidades brasileiras.
Posto isso, inicio a minha jornada dissertativa na manhã desta quinta-feira recorrendo ao poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto e o seu auto de natal Morte e vida Severina. Desta singular obra que retrata a vida do nordestino brasileiro e de muitos outros sujeitos e sesmarias pertencentes aos extratos inferiores da sociedade brasileira que, por lutar para deixar a sua condição de indivíduo petrificado num mundo de pobreza, colhe muitas adjetivações, em sua maioria, negativas e, talvez isso ocorra por desconhecimento ou mesmo pela visão do emissor estar escudada numa prática coronelística em que a pessoal ao se dirigir a um poderoso coronel tinha que baixar a cabeça num gesto de subserviência – Moacyr Scliar em seu romance Eu vos abraço, milhões apresenta cena semelhante. Ou também por achar que um descendente de escravo, cuja alforria não foi uma conquista, mas sim uma concessão do trono, deveria se colocar como a personagem Raimundo, que estampa as páginas do romance machadiano Iaiá Garcia, ou seja, de eterna gratidão à Coroa e as elites que mantiveram por cerca de três séculos seus ancestrais na condição de cativo.
Mas, sem delongas atento-me para as observações poéticas e o jogo textual de João Cabral de Melo Neto. “O meu nome é Severino,/não tenho outro de pia./ Como há muitos Severinos,/ que é santo de romaria,/deram então de me chamar Severino de Maria;/como há muitos Severinos/com mães chamadas Maria,/do finado Zacarias./Mas isso ainda diz pouco:/há muitos na freguesia,/por causa de um coronel que se chamou Zacarias/e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria./Como então dizer quem fala/ora a Vossas Senhorias?/Vejamos: é o Severino/da Maria do Zacarias,/lá de serra da Costela,/limites da Paraíba”. Um leitor desatento poderá não ver nada nesse trecho que justifique uma reflexão, contudo, quando se avança na narrativa, depara-se com essas abordagens: “E se somos Severinos/iguais em tudo na vida,/morremos de morte igual,/mesma morte severina:/que é a morte de que se morre/de velhice antes dos trinta,/de emboscada antes dos vinte,/de fome um pouco por dia/(de fraqueza e de doença/é que a morte severina/ataca em qualquer idade,/até gente não nascida)./Somos muitos Severinos/iguais em tudo e na sina”.
Peço desculpas aos meus leitores por usar um grande trecho da obra, mas o objetivo se justifica: primeiro porque estou trabalhando no tema em parceria com uma professora da área de Linguística, cujo resultado final terá duas vertentes: uma delas é o aspecto socioeconômico da questão atrelado ao universo do etnocentrismo e como o substantivo ao ser adjetivado afere ao seu portador uma peculiaridade que lhe oferta certos rechaços por parte das chamadas pessoas portadoras de um tipo específico de pré-conceito originário nas teorias raciais que grassaram o Brasil oitocentista, conforme a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz aponta em seu livro O espetáculo das raças – quem deseja conhecer um pouco sobre essa problemática recomento a obra, entre outras tantas elaboradas pelo sociólogo Florestan Fernandes.
Diante das denuncias feitas pelo poeta pernambucano em seu auto de natal, fica-me, na condição de cientista social, uma miríade de interpelações, começando por aquela que me possibilitará enveredar pelo labirinto social que forma a existência do cidadão. Ou seja, onde começa a visão desqualificadora do outro que se torna uma prática nefasta que vem se arrastando no Brasil desde os primórdios de sua colonização, isto é, como terra a ser explorada até sua exaustão e não como local edênico em que se poderia fixar residência, a exemplo do que aconteceu na América do Norte. Não é preciso se debruçar sobre os grandes tratados humanitários para saber que a visão, tornada práxis cotidiana, de que se é melhor do que o semelhante em virtude de seu pertencimento étnico e robustez na conta bancária, começa no interior das residências e respectivas alcovas. Ou seja, não se traveste de superior a partir das relações travadas nas ruas, nos bairros e em outros setores da vida social, mas sim no momento em que se é construído enquanto ente social, durante os processos de socialização primária, conforme o sociólogo Peter L. Berger apresenta em seu trabalho A construção social da realidade. Dito de outra forma, e talvez, de maneira mais direta: a criança não vem ao mundo enquanto bebê já escolhendo com quem vai falar, do que vai conversar, mas isso lhe é ofertado durante os primeiros anos de sua existência corpórea.
Tendo isso como premissa, é possível constatar que as adjetivações negativas, dadas aos demais sujeitos e pares sociais, tem origem no processo de formação deste indivíduo que se tornará adulto preconceituoso e com práticas distorcidas na e da realidade que o cerca. O que torna essa conduta mais perversa é que o portador de tal visão de mundo, a ressignifica de acordo com seus preceitos e valores éticos e morais. Sendo assim, pode-se colocar na condição de paladino disso e daquilo quando lhe convém, contudo, no mundo da esfera privada defenestra, ofende e busca sempre adjetivar pejorativamente aqueles que no momento lhe parece adversário. A situação ganha dramaticidade quando este mesmo ente político tem ojeriza de críticas politizadas e não partidarizadas ou ideologizadas, portanto, sem os anseios de poder e para permanecer na crista da onda, como se diz no jargão popular. Pois bem! Se isso é fato e tendo a crer que sim, pois há diversos exemplos aqui e alhures em que pessoas, pelo simples fato de discordar dos rumos das políticas palacianas e encaminhadas sorrateiramente objetivando beneficiar determinados segmentos, são adjetivadas jocosamente. Uma singela passada por alguns post nas páginas de relacionamento da internet evidenciará o que acabo de apontar, isto é, indivíduos são humilhados por pensarem de forma diferente, grupos manifestam suas formas perversas de ver e qualificar o outro, num teatro dantesco em que há espetacularização da imagem distorcida do semelhante.
Enfim, com práticas como essas, oriundas dos mais diversos lares brasileiros, busca-se referendo, não somente nas obras cientificas de renomados cientistas sociais e pensadores brasileiros como Tavares Bastos, Silvio Romero e escritores oitocentistas: Machado de Assis, José de Alencar e Aluísio de Azevedo – para ficar com os mais conhecidos -, mas também nos autores contemporâneos como Jorge Amado e o seu Seara Vermelha. Posto isto, se observa que o Brasil está longe de se livrar da pecha de Nação com alto índice de desigualdade social, bem como o país que tem preconceito de ter preconceito, já que se desclassifica o outro não a partir do caráter que este possa ser possuidor, mas sim pelo fato deste recusar-se a baixar a cabeça para supostos poderosos e integrantes duma elite carcomida pela presunção e de adjetivos caquéticos como o exposto na frase: “você sabe com quem está falando?” É isso ai, fico por aqui, mas recomendo a leitura do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e gilberto_jinterior@hotmail.com .