Adeus à democracia e o fim do espetáculo

Gilberto Barbosa dos Santos

 

“Se a história de fato não se repete, devemos ao menos aprender suas lições para proteger nossa democracia – antes que seja tarde demais”. Esse é um pequeno trecho da “orelha” – aquela aba que há nas capas dos livros – da obra “Como as democracias morrem” (2018), escrito pelos cientistas políticos norte-americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos professores da Universidade Harvard. No prefácio da referida obra, o também cientista político e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Jairo Nicolau, traz para o leitor brasileiro a ideia de que se está vivendo no momento uma “recessão democrática”. Segundo ele, esse termo foi grafado por outro cientista social americano, Larry Diamond “para descrever o fim do processo contínuo de ampliação de democracia no mundo. O fracasso da democratização nos países que promoveram a Primavera Árabe (apenas a Tunísia conseguiu fazer uma passagem bem-sucedida) e a reversão de experiências similares incipientes na África, no Leste Europeu e na Ásia ensejaram um novo ciclo de análises, em geral pessimistas, sobre os Estados democráticos”. Mais: “inicialmente, a ideia de recessão democrática estava associada às dificuldades de surgimento de novos governos desse tipo desde meados da década de 2000. Nos últimos anos, porém, a preocupação dos estudiosos passou a ser a crise das democracias consolidadas. A pergunta agora é: democracias tradicionais entram em colapso?” (Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 8).

Posto isso, faço uma nova interpelação: se de fato as democracias estão em crise, precisamos, antes de dizer um sim ou um não, saber que tipos de democracias está se pensado. Seria aquela capaz de manter o espetáculo cotidiano no qual todos são personagens e categorizados a partir de seus pertencimentos étnicos, econômicos e sociais, e por que não, ideológicos e religiosos? “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, p. 13). Neste ponto, convém tentar entender a que modo de segurança essa sociedade do espetáculo faz referência. Se forem usadas as observações feitas pelo pensador inglês, Richard James  Blackburn no livro O vampiro da razão: um ensaio de Filosofia da História (1992), é possível compreender que a existência humana na contemporaneidade, estava atrelada a uma espécie de vida mágica, na qual os sujeitos sociais, ou melhor, os indivíduos individualizados, poderiam ser vistos não diretamente daquilo  que realmente são – muitas vezes nem eles mesmos sabem dizer de que matéria são feitas as suas consciências ou a partir de que princípio inteligente são seus constructos -, mas sim daquilo que o externo constrói dele, tendo como ponto de partida o que vislumbram e imaginam, ou seja, um universo cheio de glamour no qual tudo é lindo e maravilhoso, como nos contos de fada, entretanto, sem um final de feliz, pois a realidade é marcada pela certeza da finitude dos seres corpóreos. Em virtude desse dado, afasta-se o mais rápido possível a ideia de letalidade do homem, transladando para qualquer tempo na linha do espaço o seu deixar de existir, passando a construir o próprio viver levando em conta um vir a ser que pode ser personificado no hoje, vislumbrado por muitos no espetáculo diário apresentado pelo seu semelhante. Sendo assim é possível indicar que o homem contemporâneo para fugir da morte, como afirmava o teatrólogo Antunes Filho (1929-2019), escapando do seu destino trágico se intoxicando de consumo e participando ativamente da vida espetacular que a sociedade lhe proporcionava, afastando-o da solidão provocada por determinadas certezas. Desta forma, o indivíduo, ao ser um consumidor, transforma-se também em mercadoria a ser devorada no mercado comestível da efêmera existência social.

Será que a crise da democracia liberal e ocidental está também associada à essa incapacidade das instituições, que dão respaldos aos seus respectivos Estados, continuarem a gerar sociedades espetaculares? “O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o momento autônomo do não vivo”, nos diz Guy Debord, fazendo com que eu volte a etapa inicial deste texto, isto, tentar entender se o abalo sofrido pelas democracias contemporâneas está umbilicalmente atrelado ao fim das possibilidades oníricas que o sistema capitalista criava diariamente aos seus indivíduos. É interessante notar que outro intelectual norte-americano, Marshall Berman (1940-2013) tratou da questão da dissolvência do sujeito social no momento seguinte à aquisição de um bem material que teria para este um valor de troca muito maior do que o valor de uso, personificado no sentido que se dá a determinados bens materiais, isto é, qual é a finalidade do mesmo. A partir desse momento, a mercadoria deixa de ser vista apenas em sua razão em si, ganhando forma a partir dum vir a ser nunca concretizado por quem a observa. Essa certeza ativaria no homem a sensação de insegurança, da qual só conseguira escapar através das instituições que lhe pudessem lhe ressarcir a confiança e a segurança. Neste ponto, usando referenciais de Emile Durkheim (1858-1917), é possível entender que essas instituições podem ser aquelas que agem coercitivamente sobre o sujeito, pois lhe são externas e impostas pela própria sociedade. O pensador francês diz que essa coação garantidora da tal segurança mágica adviria da Família, do Estado e da Igreja. Esses três modelos, da forma como foi conhecida desde a Idade Média, estão em crise, justamente pela velocidade do sistema capitalista em sua fase financista e também pelas constantes revoluções no campo da robótica e da tecnologia.

No que diz respeito ao Estado, o indivíduo individualizado, não está muito lá interessado em questões filosóficas sobre esse ente que surge como vontade da população para equilibrar as mais comezinhas divergências entre sujeitos que querem um lugar ao sol. O homem incorporado com suas forças egoicas tende a querer saber o que essa instituição pode fazer por ele? Ela deve deixá-lo livre para travar suas relações comerciais, afetivas e religiosas ou criar normas que estabeleçam o equilíbrio entre as pessoas? Pois bem! É justamente na tentativa de responder a essas interpelações que todas pessoas deveriam refletir sobre qual sociedade gostariam de existir. Se a característica peculiar deste Estado é a democracia, isto é, governo de todos, como é possível compreender a crise que esta vem passando no presente? Este abalo fica evidente em diversos pontos do globo, conforme vários cientistas sociais e demais pensadores vêm indicando em suas obras, entrevistas e artigos científicos produzidos nos últimos 3 anos. Sendo assim, a questão passa a ser o motivo dessa situação? Entendo que há vários, entre eles, esse que ligeiramente apontei aqui, ou seja, a ausência da capacidade dos governos constituídos democraticamente em manter o espetáculo, através do qual a massa, seja amorfa ou dita consciente, permaneça alienada, fugindo da morte a todo custo. Daí saber-se-á as razões pelas quais se tentam desestabilizar todo o serviço público de saúde, educação, etc., para evitar que recursos sejam destinados aos pertencentes às categorias sociais mais baixas da sociedade. Os valores investidos nesses programas deveriam ser revertidos nos financiamentos de espetáculos destinados a entreter as bizarrices daqueles que um dia desejaram integrar aquela elite da nobreza europeia que, para evitar ser copiada pela burguesia nascente, criava códigos e mais rococós.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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