A emergência do Brasil que surgiu das urnas

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos[1]

 

Embora eu saiba que tem muitos foliões acordando neste momento momesco, objetivando recarregar as baterias para logo mais a noite ir sambar numa festa tradicional brasileira, penso que é interessante analisar, laconicamente, se isso é possível nesse domingo de carnaval, a entrevista concedida pelo ex-deputado petista Paulo Delgado que por muito tempo, ou seja, cinco mandatos ocupou um assento na Câmara Federal. Seguindo essa meta, dividirei a entrevista, publicada pelo Valor Econômico e publicada no último dia 05, em duas partes: a primeira diz respeito aos aspectos políticos desse governo que ai está, sacramentando 13 anos do PT (Partido dos Trabalhadores) no poder – é preciso acrescentar que o entrevistado ajudou a criar a legenda sobre a qual recai a culpa de ter lançado o país num lamaçal de corrupção sem igual com nefastas consequências para a Nação. O segundo momento diz respeito às questões envolvendo a saúde mental no Brasil e como a doença vem sendo tratada pelos agentes públicos.

Posto isso, entendo ser importante ressaltar que não tratarei dos dois assuntos neste texto dominical, por considerar ambas as temáticas significativas para o leitor e internauta. Sendo assim, atentar-me-ei ao âmbito das considerações políticas tecidas pelo sociólogo e ex-deputado no que diz respeito ao momento crítico que vive o país a partir do governo central. Seguindo o exemplo do ex-ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, Delgado também faz criticas ao arauto do petismo nacional, Luiz Inácio Lula da Silva. As observações são importantes por possibilitar ao leitor, com senso crítico, compreender um pouco sobre a personalidade do líder sindicalista que foi alçado à presidência da República no começo do século XXI por força das urnas, contudo, após ser empossado no principal assento da Nação, transformou-se de Príncipe encantado da política nacional e “pai dos pobres” – à lá Getúlio Vargas – num dos principais adversários da população brasileira que o culpa por verem a economia desandando e suas finanças derretendo como gelo em tarde de calor.

Desta forma, vou direto aos pontos que considero importantes na matéria. Começo quando Delgado define a questão da formação da equipe dirigente e da troca de “favores” e do compadrio, típicos da política brasileira. Além de apontar que essa é uma constante na política governamental da Nação, o sociólogo e ex-deputado afirma que está prática é problemática para um país, pois há a simbiose entre programa de governo sendo executado pelos militantes partidários. Somente essa observação permite uma significativa reflexão sobre os males endêmicos do Brasil no que diz respeito à formação dos quadros que compõem o Estado – cuja gênese foi apontada pelo escritor e político José Martiniano de Alencar (1829-1877) na década de 60 do século XIX em seu livro Cartas de Erasmo (2009). Essa questão, Delgado a designa como “porteira fechada”, ou seja, a prática de distribuir ministérios em troca de apoio político no Congresso Nacional, e os ocupantes agem como bem entender quando estão à frente desses organismos estatais.

Ao ser instado pela reportagem a fazer uma comparação entre os governos do ex-presidente Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff, o ex-deputado foi enfático: “são semelhantes, se agarraram aos defeitos do Estado achando que tinham descoberto a pólvora. É impossível classificar os governos petistas como de direita ou de esquerda, porque à direita e a esquerda, no topo do poder, vivem uma dentro da outra. É uma simbiose em que a esquerda se alimenta da direta e a direita, da esquerda”. Esse trecho que destaco da entrevista é significativo para se pensar o próprio Estado, já que se evidencia que, tanto faz ser de um lado da balança ideológica como de outro, os interesses são os mesmos e, quem se apossa do principal assento, conduzirá a prática governamental em benefício próprio e dos seus principais apaniguados, conforme uma das teses que Karl Marx apresenta em seu livro A ideologia alemã (1987).

Voltando às observações de Paulo Delgado. Segundo ele, ninguém imaginaria as mamatas que as construtoras teriam num governo que se diz de esquerda. “O que ocorreu no período petista é que usufruir do governo passou a ser melhor do prosperar por si. O governo mirou os Três Poderes com a ambição de controlar e uniformizar tudo, achando que isso é ser de esquerda”. Explicação complexa, mas de compreensão simples, por se tratar da opinião de um político que saiu das entranhas do partido, cujas ações fisiológicas e populistas estão sendo questionadas por alguns antigos correligionários e pela sociedade, de um modo geral. Ao se esquadrinhar meticulosamente os dizeres de Delgado, é possível indicar que se trata de uma visão totalitária que o partido dele tem ou desenvolveu ao longo de sua trajetória ideológica, mas ai quem deve dar explicações mais profundas é a própria legenda – eu fico com a sensação de que há um quantum de verdade nas afirmações do sociólogo Delgado para quem “o fisiologismo, o paternalismo e o clientelismo, que eram as três principais características do Estado brasileiro getulista, avançaram e se universalizaram no período petista”.

Interessante apontar que esse quadro foi amplamente registrado pelos nossos ficcionistas do Brasil Oitocentista e também do século XX, entre eles Jorge Amado (1912-2001) que nos legou importantes romances, entre eles, Tocaia Grande (2008). Nessa e em outras obras, são retratadas a vida política no interior do Brasil consubstanciado com as teses apresentadas por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) no livro Raízes do Brasil (2006). Também é significativo compreender, a partir dessa chave literária, que “o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra” (NIETZSCHE, 1992, p. 59). Sendo assim, é possível, sempre que necessário, recorrer à obra de arte para compreender um momento significativo da nossa sociedade, como por exemplo, o romance Esaú e Jacó (2012), de Machado de Assis (1839-1908), cuja enunciação diz respeito a um momento singular da vida política brasileira: a passagem da Monarquia a Republica ocorrida no dia 15 de novembro de 1889.

            Voltando à entrevista, sobretudo para não se perder o foco da minha reflexão, o ex-deputado traz outros apontamos que devem ser compreendidos pelo eleitor desta segunda década do século XXI e também por se tratar de um ano em que os indivíduos com, ou sem, cidadania escolherão seus representantes nos mais de cinco mil municípios espalhados pelo Brasil. Segundo ele, “o Estado brasileiro está subjugando a sociedade e aumentando o caráter fictício do cidadão. Ninguém tem mais visão geral das coisas ou aceita o ponto de vista do outro. O que parece direito é na verdade privilégio e tutela. Quando pensamos o PT, pensamos em autonomia do cidadão. A distribuição de poder pelo Estado sem que o cidadão participe da mobilização social pelo direito dá ao cidadão a ilusão de poder. Na verdade, o que você tem é o cidadão buscando aumentar dependência do Estado. É isso que entope o Judiciário de processo pessoal irrelevante. E é isso, pelo sono do PT em relação ao futuro do país, que provoca essa crise que não leva o governo a ter humildade e pedir ajuda”.

Deixando as ideologias partidárias para um segundo momento, mesmo que o entrevistado seja um ex-deputado do PT – e quem sabe um ex-petista o que, para muitos, pode significar ressentimentos com o grupo que está no poder, as afirmações que Delgado fez e retratamos no parágrafo acima é digno de futuras reflexões sobre o Estado que o partido pegou após o fim dos dois mandatos consecutivos de Fernando Henrique Cardoso em 2002 e como se encontra as mesmas instituições 13 anos depois da chegada do PT ao governo central, inclusive do ponto de vista econômico, elemento fundamental para se pensar os ganhos sociais e a saída de muitas famílias da linha da pobreza. É preciso compreender que a eliminação desta condição não se faz com maquiagem, ou seja, mudando dados e marcadores sociais para dizer que neste governo ou, como gosta de dizer o arauto do petismo nacional, “nunca antes na história desse país…”.

Como a esfera socioeconômica anda de mãos dadas com o processo eleitoral e político, vou atentar-me ao que Delgado apontou sobre esse universo. Para ele, a política nacional tem modificado a identidade pessoal do brasileiro. “Uma característica desse período”, explica o ex-deputado, “é que, se antes o Parlamento era reconhecido como o principal topo das elites do Estado democrático, hoje é formado por guetos de todo tipo. Isso se ampliou para os Três Poderes como um fim. O que visa o interesse de cada setor é enfiar a bandeira na sala, arrumar crachá, patrocínio, o que está em discussão é agarrar no governo para exercer o seu poder”. Instigantes observações essas do ex-deputado que suscita a todos nós uma reflexão sobre o que se entende por Estado brasileiro e o que se almeja dele. Portanto, eis ai uma explicação sintética do Estado patrimonialista tão bem delineados por Florestan Fernandes (1920-1995) em várias de suas obras, inclusive no A revolução burguesa no Brasil (2006) e por Raymundo Faoro (1925-2003) em seu Os donos do poder (1991).

Diante da afirmação do político, fica-se com a sensação de que em sua opinião, o Congresso Nacional antes era elitista. Segundo ele, a sua abordagem diz respeito à representação da sociedade pluriclassistas, entretanto, “com a irrupção do dinheiro sujo nas campanhas, acabou-se com a ideia de eleger o melhor dos melhores. Hoje quem ganha é o melhor dos piores. Uma das características do Parlamento é que você dificilmente consegue enviar para o Parlamento um representa muito melhor do que a prática daquele setor que ele representa. O sistema eleitoral não tem o poder mágico de mudar a qualidade de candidatos. Se a população reclama do sistema e da qualidade do Congresso, tem que reclamar dos partidos, que indicam os candidatos, do Tribunal Eleitoral, que os aprova, e dos cartórios que lhes dão certidão negativa. Os três são responsáveis pela composição do Congresso”.  O que fica para ti leitor desta minha reflexão dominical? Eu observo que o sociólogo está conclamando a sociedade a exigir melhores políticos e postulantes, entretanto, como há uma simbiose entre os homens e o poder público, haverá sempre aqueles que enxergam no Estado uma forma de se locupletar com os ganhos alheios, conforme retratado por José de Alencar. Segundo ele, e ai tendo a concordar com sua análise – mesmo que ela tenha sido elaborada na longínqua década de 60 do século XIX -, o Estado brasileiro é formado por uma casta de burocratas originária na aristocracia lusitana empobrecida que veio para o país juntamente com a Corte[2] lisboeta e se apropriou do aparelho estatal e dele suga todos os seus benefícios, transformando seus recursos públicos e coletivos em propriedades particulares. Isso foi ontem, contudo, em virtude do que se observa no presente, o que o literato disse sobre a Nação Oitocentista, vale para o país que emergiu das urnas em 2014.

As informações ventiladas pela reportagem do jornal econômico são importantes, me permitindo mais uns artigos que disponibilizarei aos internautas que acessam o meu portal Crítica Pontual na medida em que ficarem prontos. Desta forma, concluo as linhas de hoje com o retrato do Partido dos Trabalhadores elaborado pelo sociólogo Paulo Delgado que foi deputado por cinco mandatos pela legenda, me assegurando isenção ideológica quando o assunto é o grupo, tendo a frente o PT, que está no poder federal brasileiro há 13 anos e, em virtude disso passa por uma profunda crise ética, política e ideológica, perdendo com isso importantes quadros como a da ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy hoje no PMDB paulistano de onde almeja voltar à chefia do Executivo da capital paulista. Sendo assim, Delgado ocupa-se em pensar o futuro da agremiação que está consubstanciado na personalidade de Lula – ser político que não aceita, conforme o ex-deputado, que alguém brilhe mais do que ele. “Tudo o que vira deus sem motivo acaba como doença. Primeiro o PT tem que parar de reclamar e começar a ter vergonha do que acontece. Essa crise não é dos petistas como um todo, uma crise dos bons propósitos que construíram o PT ou das ideias de boa sociedade e inclusão social que impulsionaram o PT de maneira rápida até chegar à Presidência. É uma crise da elite partidária, da oligarquia. Por isso, o processo de impeachment, se não levar isso em conta, não terá sucesso. É um erro de nação querer matar o PT fora da via eleitoral [o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se posicionou contrário à extinção da legenda]. Uma parte das ideias sociais do PT, essenciais para o Brasil ficar em pé, não foi esgotada pela crise política. O MDS [Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome] pilota a única moeda preservada do PT. Ali está o caroço do humanismo que deu a velocidade para chegar e no poder não soubemos entender como marca suficiente. O impeachment tem que levar em conta que é preciso preservar alguma coisa do PT. Especialmente porque, por temperamento, Dilma não sabe muito dos problemas do Brasil”. Esse trecho da entrevista, me parece ser um dos mais emblemáticos sobre os quais deverei escrever outro texto. Para o momento fiquemos com essa afirmação do ex-deputado petista, o sociólogo Paulo Delgado.

 

BIBLIOGRAFIA

ALENCAR, José de.  Cartas de Erasmo. Organizador José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: ABL, 2009.

AMADO, Jorge. Tocaia grande: a face obscura. 1ª ed. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008 (Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros. V. 3).

BARMAN, Roderick J. Imperador cidadão e a construção do Brasil. Trad. Sonia Midori Yamamoto. São Paulo: Editora da Unesp, 2012.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Globo, 1991.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociologia. Prefácio José de Souza Martins. 5ª ed. São Paulo: Globo, 2006.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacó. Introdução e notas Hélio Seixas. 1º ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

MARX, Karl. A ideologia alemã: I – Feuerbach. Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 1987. (Coleção Pensamento Socialista).

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. Notas e posfácio J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

 

[1]Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, cientista social, professor em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticasocial.com.br.

[2] – “A palavra ‘corte’ significava tanto a residência física do imperador quando a cúpula de uma elaborada hierarquia de privilégios. Na base da hierarquia estavam fidalgos, de sangue nobre ou azul. Esse status [grifo do original] pode ser herdado, obtido por nomeação a uma das ordens de cavalaria ou adquirido por ordenação como oficial militar” (BARMAN, 2012, p. 28).

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