Após processo institucional de branqueamento, escritor passa por escurecimento
A revista The New Yorker da semana passada traz um texto de Benjamin Moser sobre Machado de Assis, “The Alienist”.
Num retrato preciso (complementado por uma breve análise do clássico machadiano “O Alienista”), Moser, o biógrafo americano que colocou Clarice Lispector no mundo, agora apresenta Machado de Assis ao público americano, tradicionalmente refratário à literatura estrangeira (consta que apenas 5% dos livros de ficção publicados nos Estados Unidos são traduções).
O texto frisa o contraste entre o burocrata conservador, fundador da Academia Brasileira de Letras, que atravessou a vida como um bem comportado burguês, marido exemplar, um funcionário público perfeitamente integrado à elite letrada da sociedade escravocrata brasileira, um homem que jamais saiu do Rio de Janeiro, e o escritor espantoso que produziu uma obra singularíssima e bastante estranha ao panorama cultural, social, racial e ideológico do seu tempo.
Um escritor que, como lembra Moser, parece mais próximo de Henry James do que de seus colegas brasileiros.
E, além de tudo (ou acima de tudo, diríamos acompanhando a perspectiva cultural contemporânea), pelo ramo paterno Machado era neto de escravizados. Como parte significativa da população brasileira urbana de seu tempo, ele era “mulato”, a expressão tradicional indicativa da intensa miscigenação do país, que passou do sentido radicalmente negativo de origem (a palavra deriva de “mula”), para uma autonomia semântica neutralizada por uma sociedade atravessada inteira por relações interétnicas; e, na passagem do século 20, para a valorização exótica de uma suposta democracia racial, que jamais existiu de fato.
Entretanto, como todos sabemos e Moser destaca no seu texto, Machado nunca foi um ativista político de nada.
Um leitor que lesse Machado sem nenhuma informação biográfica prévia, apenas mergulhado nos temas de sua literatura, jamais diria que o autor teria alguma ascendência negra. O contraste que de imediato nos ocorre é o também pardo Lima Barreto, o pós-moderno que o didatismo escolar do nosso movimento modernista relegou ao papel de “pré-moderno”, e que em cada página martelou nossas fraturas raciais e sociais.
Penso que entender o fenômeno Machado de Assis (e nem remotamente tenho esta pretensão aqui) será também entender parte substancial da formação do Brasil.
Machado passou por um processo institucional de branqueamento, e agora passa por um processo, também institucional, de escurecimento, como se na formação sócio-cultural brasileira (assim como acontece para o imaginário norte-americano ou sul-africano) houvesse apenas brancos e negros a considerar, e a mestiçagem (aqui incluindo-se o índio no nosso imenso caldeirão racial) não houvesse produzido nenhuma consequência singular ou autônoma nas gerações subsequentes à violência de origem. Sim, sabemos que segue vivíssimo nosso racismo estrutural e que a democracia racial é uma lenda perversa.
Mas que outros aspectos nos transformaram? Em que sentido eles são relevantes e culturalmente produtivos, sem cairmos na armadilha ideológica de Gilberto Freyre (que, pelo menos, teve o mérito inaugural de destruir as teses então poderosas das desgraças da nossa mistura)? O que afirma, o que representa o criptográfico Machado de Assis?
Passo agora a outra leitura, de outra dimensão: o extraordinário “Dicionário da Escravidão e Liberdade” (Companhia das Letras; org. Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes).
São 50 textos curtos, assinados pelos maiores estudiosos nesta área fundamental da historiografia brasileira, que abordam desde aspectos complexos do comércio negreiro, passando pelos movimentos abolicionistas e suas implicações políticas, até os quilombos, questão indígena, revoltas escravas, coexistência entre libertos e escravizados, escravidão urbana e rural, mestiçagem, doenças, famílias, alforrias –enfim, não há praticamente aspecto relevante da escravidão brasileira que não se enfrente em um verbete claro e sólido, destinado ao leitor comum e não ao especialista.
O livro compõe um painel fantástico (e assustador) do que representou a escravidão no Brasil, cujos sinais indeléveis ainda hoje estão em toda parte. E em boa parte incompreendidos, como o enigma machadiano. É uma leitura especialmente iluminadora da complexidade brasileira, somando-se a uma nova e rica bibliografia acadêmica da nossa questão racial.
Cristovão Tezza
Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.
Disponível no site https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristovao-tezza/2018/07/machado-branco-machado-preto.shtml (acessado no dia 19/07/2018 às 23h33).