Paulo Nogueira*, Colaboração para o Estado
Viet Thanh Nguyen, autor de ‘O Simpatizante’, fala sobre como foi crescer distante de sua pátria
Viet Thanh Nguyen, como seu nome entrega, nasceu no Vietnã em 1970, mas vive desde os quatro anos nos EUA, onde é professor de literatura na Universidade da Califórnia. O Simpatizante, seu romance de estreia, não fez cerimônia: chegou chegando e embolsou em 2016 o mais icônico prêmio literário americano, o Pulitzer, para assombro – quase constrangimento – do próprio autor.
A história começa em abril de 1975, em Saigon (hoje Ho Chi Minh), no epílogo da Guerra do Vietnã. Com a derrota sulista e de seus aliados norte-americanos, milhares de pessoas tentam fugir do país. Um capitão do Vietnã do Sul, jamais nomeado, é um agente duplo comunista e o protagonista do romance (Em tempo: hoje o Vietnã vive uma espécie de milagre econômico, no modelo comunista chinês, com quase metade da economia privatizada – se bobear, mais do que o Brasil –, mas regime de partido único e censura draconiana).
A própria literatura universal veio ao mundo com um pé na estrada. Seja por imperativos políticos, econômicos ou artísticos, os escritores sempre bateram perna. Já no século 1, o poeta Ovídio foi desterrado para o Mar Negro, por pisar nos calos do imperador Augusto. Depois, rola um cortejo incessante: de Dante a Bolaño, de Joyce a Nabokov, passando pela “geração perdida” batizada por Gertrude Stein. Com a globalização, o fato de que o gênero romance floresceu como afirmação das identidades nacionais soa quase inverossímil.
O incipit (a abertura de uma obra literária) de O Simpatizante é memorável: “Sou um espião, um infiltrado, um agente secreto, um homem de duas caras.” O leitor poderá confiar na palavra – e nas quase 400 páginas – de um narrador na primeira pessoa que se assume como mentiroso? Se as aparências enganam, que dirá um camaleão? Ainda por cima uma confissão compulsória, destinada ao Comandante do campo vietcongue de prisioneiros onde o protagonista está confinado, depois de uma rocambolesca estadia em Los Angeles.
Um romance de espionagem, tipo O Espião que Saiu do Frio, de John Lé Carré? Ou de guerra, como Os Nus e os Mortos, de Norman Mailer? Ou um thriller ideológico, como O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler? O Simpatizante é tudo isto, e não é nada disto, na medida em que este todo não está contido em suas partes. Trata-se, isto sim, de uma saga sobre o desenraizamento, a busca de um lugar no mundo, seja no sentido físico ou metafísico: o simpatizante está sempre em dúvida se olha para o passado ou para o futuro – e é este seu presente eterno.
Como diz uma descendente de japoneses em L.A., a senhora Mori: “Por um bom tempo me senti mal. Ficava pensando por que não queria aprender japonês, por que não sabia falar japonês, por que preferia ir para Paris, Istambul ou Barcelona, em vez de Tóquio. Mas aí pensei: ‘Que se dane’. Alguém perguntava a John F. Kennedy se ele falava gaélico, visitou Dublin, comia batata toda noite ou colecionava quadros de gnomos? Então por que a gente não pode esquecer a nossa cultura? Minha cultura não é essa mesma, já que nasci aqui?” O protagonista discorda: “A coisa mais importante que nunca podíamos esquecer era que nunca podíamos esquecer.” O que não é fácil: “Um jovem vietnamita enamorado da América provou Coca-Cola, por assim dizer, e descobriu que era doce.”
Este caleidoscópio cultural, jamais fixado, é refletido na polaridade Ocidente-Oriente, inclusive literária: o simpatizante escreveu uma tese sobre O Americano Tranquilo, de Graham Greene, devidamente espinafrado, assim como uma citação do indefectível Kipling (autor do poema O Fardo do Homem Branco) se revela uma platitude obtusa.
Nguyen poderia ter assinado o enésimo romance panfletário e unidimensional sobre o imperialismo. Ou não – como notou alguém, certos livros são mais inteligentes que seus autores. Apesar dos momentos de amargura e dilaceração, O Simpatizante não se reduz a um libelo contra o sonho americano. Até porque a literatura lida com indivíduos, e não coletivos. Como ensinou Aristóteles: “Só há conceito no geral, mas só há existência no particular.” E, como os melhores personagens, este simpatizante é prismático até a raiz dos cabelos. Mata inocentes para o inimigo, para que o inimigo pense que ele é amigo: no mundo rarefeito da espionagem, o amigo do meu inimigo pode ser meu amigo… Ou, como o simpatizante admite, a respeito de uma dessas execuções: “Ele era um homem relativamente inocente, que é o máximo que se pode esperar neste mundo.” Aliás, ambos os lados da barricada torturam. Os fins justificam os meios, ou, como corrigia Camus, os meios comprometem os fins?
A vacina de Nguyen contra o panfleto raso e ralo é um humor impagável, uma verve picaresca espelhada no fato de o protagonista ser um bastardo (mãe vietnamita, pai francês), um avatar de ilustre linhagem literária, a união precária de duas metades que nunca encaixam. Como observa a mãe dele: “Você não é a metade de algo, você é o dobro de tudo” – o que é provavelmente demais e de menos para qualquer um.
Qual a relação do ser humano singular com as grandes marés históricas? Pelo menos na literatura, quem reina é o único, o idiossincrático – o protagonista que é uma minoria de um. Daí a crítica do Comandante à confissão do simpatizante, que lhe consumiu um ano: “A boa notícia é que ela mostra vislumbres de consciência revolucionária coletiva. A má é que sua linguagem trai você. Não é clara, não é sucinta, não é direta, não é simples. É a linguagem da elite. Precisa escrever para o povo!”
O Comandante está certo, claro. Mas o simpatizante também está, ao cumprir ficcionalmente aqueles versos de um poeta brasileiro: “Minha pátria é a infância/Por isso vivo no exílio.” Felizmente, Viet Thanh Nguyen está mais certo do que todos eles. Ponto para os leitores.
Confira abaixo a entrevista exclusiva com Viet Thanh Nguyen:
Entre outras coisas, ‘O Simpatizante’ aborda a glamourização da violência e da guerra por Hollywood. O senhor abre uma exceção para ‘Apocalyse Now’, de Francis Ford Coppola?
Creio que Apocalypse Now é a apoteose do que Hollywood faz, pois é uma grande obra de arte. Mas também é um exemplo do que é a indústria americana do cinema. Por um lado, o filme de Coppola é contra a guerra e o papel que os americanos desempenharam no Vietnã. Por outro, é um reflexo do etnocentrismo americano. Porque é totalmente sobre os EUA e os americanos, e não sobre o Vietnã e os vietnamitas, que não passam de um pano de fundo, de uma desculpa para o drama americano. Creio que isso é emblemático de Hollywood, e foi o que pretendi satirizar. Mas também quis evocar especificamente Apocalypse Now, tanto pela sua proeminência artística, quanto pelo seu próprio desinteresse inconsciente pelas pessoas do Vietnã.
Sua família imigrou para os EUA quando o senhor tinha quatro anos de idade. Tem alguma lembrança concreta de viver no Vietnã nessa época?
Não, mas penso no Vietnã ciclicamente. E acho que isto significa que não me vejo como um exilado, mas como um refugiado. Nos EUA, a imigração faz parte da mitologia do sonho americano, ao passo que os refugiados são muito mais assustadores para os americanos médios, e para os cidadãos em geral de outros países do mundo. Acho que isto ocorre porque os refugiados são mais ameaçadores: transgridem costumes e fronteiras, e trazem consigo imagens de medo, fracasso e contaminação. Minhas lembranças americanas começam num campo de refugiados nos EUA, onde fui separado dos meus pais. Isto constitui uma parte importante da minha identidade, e moldou tudo o que escrevi até hoje.
A meu ver, o protagonista de ‘O Simpatizante’ é uma espécie de herói picaresco, fazendo o melhor que pode sob circunstâncias adversas e estranhas, ao mesmo tempo cômico e comovente. E, como muitos dos clássicos heróis picarescos, ele é um bastardo…
Exato. Quando escrevi o romance, o gênero picaresco estava de fato na minha mente, e queria criar uma história que tivesse a ressonância das narrativas picarescas, com o protagonista percorrendo inúmeras terras e vivendo aventuras e desventuras. No fundo, ele é um pária à procura de um lar. Fazer dele um bastardo, alguém com origens étnicas misturadas, foi crucial. Porque não queria escrever sobre alguém que fosse completamente vietnamita, na medida em que isso facilitaria a identificação dos leitores vietnamitas com o protagonista. Queria que meus leitores vietnamitas também se sentissem desconfortáveis, para que assim reconhecessem que também tinham um papel naquilo que torna meu protagonista um bastardo. O fato de ele ser visto como um bastardo seja por franceses, americanos e vietnamitas é o que faz com que se sinta ao mesmo tempo em casa e perdido em todas aquelas culturas, movendo-se fluentemente por elas mas também sendo rejeitado por todas.
O senhor às vezes pensa sobre o fato de ter nascido no Vietnã e, embora conserve muitas das suas raízes asiáticas, escreve em inglês – a atual “língua franca” do mundo – e talvez um dia possa fazer parte do cânone americano?
Sim. Vim do Vietnã criança, e hoje sou fluente no inglês, mas não no idioma vietnamita. Muita gente pode julgar que perdi minhas raízes. Naturalmente, as circunstâncias em que minha vida se desenvolveu não aconteceram por minha culpa – elas são o produto da história, e não sou incomum: existem muitas pessoas como eu. Mas é um estranho privilégio ser fluente em inglês – como você diz, a língua franca contemporânea –, o que significa que tenho a oportunidade, como o meu narrador/protagonista, de ser ao mesmo tempo parte e crítico desta cultura. Portanto, escrever em inglês significa que minha obra terá um alcance mundial, o que por sua vez me permite não apenas enaltecer mas também criticar a cultura americana, a maneira como aquele poder se constituiu. E se O Simpatizante um dia integrar o cânone americano, acredito que será graças a essas críticas que ele contém…
Bem, o senhor já ganhou o prêmio Pulitzer, que é muito importante…
Engraçado, não é? Um romance é crítico em relação a uma cultura, e esta mesma cultura lhe dá um prêmio prestigioso. Confesso que fiquei atônito. Mas não é tão surpreendente do ponto de vista da história literária, porque a função de escritores como eu é praguejar na língua que nos foi concedida, porque isto confirma para este país aquilo que os EUA acham que são: a terra do sonho americano, em que todos são livres para criticar o ‘american way of life’. É tanto uma maneira de premiar a crítica ao país quanto de enquadrá-la.
*Paulo Nogueira é autor do romance ‘O Amor é um Lugar Comum’ (Editora Intermeios)