O estado do Estado nacional

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Entre escrever algo sobre a nossa educação e as tragédias humanas, principalmente aquelas que ocorrem por descuidos dos homens ao longo de décadas, optei por tentar compreender o que existe e, se há algo por trás da observação feita pela líder comunitária Janaina Xavier em entrevista concedida por um jornal de circulação nacional. Não pretendo imiscuir no bojo do material divulgado pela imprensa, no qual essa senhora é a protagonista principal, contudo, atentar-me-ei para uma frase que a mesma disse, entre tantas outras coisas. Segundo ela, “a pior violência é a do Estado, que ‘não deixa a gente progredir na vida’”.

Posto isto, irei direto ao que interessa: que Estado seria esse que Janaina Xavier está apontando? Seria aquele em que há instituições e poderes como o Executivo, o Legislativo e o Judiciário – para pensar na divisão feita por Montesquieu em seu O espírito das leis -, cujas funções dizem respeito ao respaldo da do à existência do cidadão? Podemos pensá-lo da perspectiva abstrata, mais especificamente teórica, isto é, do ponto de vista do que foi e como é pensado pelos homens. Em linhas gerais, pode-se dizer que esse Leviatã – obra do pensador inglês Thomas Hobbes [1588-1679] que costuma ser utilizado para designar esse ser invisível – está presente em todos os lugares, seja nas instâncias macros e micros da vida material.

Desta forma, pensá-lo a partir da filosofia política é observá-lo do ponto de vista analítico, principalmente no que diz respeito ao que a “difere da história das doutrinas políticas como do uso prático que os estudiosos fazem de uma doutrina quando tomam partido”, conforme nos explica o jurista e filósofo italiano, Norberto Bobbio [1909-2004] no prefácio do seu livro Norberto Bobbio: o filósofo e a política – antologia. Por isso, compreender o Estado é entendê-lo como um ente criado para harmonizar, por intermédio da legislação, a existência humana em sociedade. Claro que o que eu acabo de escrever é uma microsintese ou, como muitos preferirem, é quantum mínimo daquilo que vem a ser uma suposta definição do que é o Estado. Todavia, para tentar compreender o desabafo daquela líder comunitária do início desta enunciação, penso que o explanado pode ser útil para esse início de conversa.

Também é possível observá-lo, em linhas gerais, a partir da perspectiva de John Locke (1632-1704), para quem o Estado tem papel fundamental na sociedade, na medida em que garante o direito à propriedade privada, a liberdade entre os homens para estabelecerem suas relações comerciais, de produção e de consumo, sem que haja uma interferência gritante dos agentes estatais no processo de construção social. Esse preceito de Estado mínimo na sociedade é chamado de liberalismo e, agora, a partir das últimas décadas do século XX e nesses primeiros anos desse Terceiro Milênio, ficou conhecido como neoliberalismo. Também aqui não vou apontar se essa designação é a melhor ou se a mesma é responsável, juntamente com o capitalismo pela miséria da humanidade, mais humana do que material, todavia, me parece ser significativo compreendê-la a partir também do ponto de vista de Karl Marx [1818-1883] e sua teoria que propõe a extinção do Estado burguês e, em seu lugar seja criado um Estado proletário.

Para Marx e seu método dialético, o Estado aparece aos sujeitos históricos como sendo um ente que objetiva equilibrar as desigualdades entre os homens – uma espécie de juiz que está acima das questiúnculas e mazelas sociais, o que me faz reportar a um dos princípios da religião Persa, segundo os quais o homem deve chegar ao topo da montanha e de lá ver o mundo que deixou, analisando as suas construções e qual está sendo a sua participação individual nessa edificação. Sendo assim, há uma inversão do real, pois a aparência seria esta, isto é, de harmonizador, quando a sua essência é totalmente outra já que a ação desse Estado é defender os interesses da classe prostrada no poder, isto é, o segmento que detém o poder em determinado momento histórico e se mantém lá, graças ao que Karl Marx chama de ideologia, cuja objetividade é introduzir na mente humana a ideia de que os indivíduos que compõem as camadas inferiores da sociedade estão sendo representados no comando da Nação. Será esse o Estado de que fala a personagem principal da reportagem divulgada por um periódico de circulação nacional na última terça-feira?

Antes de tentar responder a essa interpelação, é preciso observar a peculiaridade do Estado brasileiro. Analisando de forma sintética outras organizações sociais e formas de governo, é possível apontar que aqui, essa entidade abstrata não surge como vontade de um povo que se reúne e define como serão as regras de convivência, como indicam os filósofos políticos alinhados com os chamados pensadores jusnaturalistas. É preciso compreender que antes da chegada da Família Real – conforme já venho propalando aqui há algum tempo – não havia Estado definido como tal e suas instituições, pois éramos colônia de Portugal, isto é, um amontoado de terra que a Coroa lisboeta mantinha sob seu domínio através de diversos mecanismos repressivos que não evitaram diversas tentativas de separação, cujas sedições foram combatidas e eliminadas com muita violência. Se por um lado, todas as tentativas de o Brasil, na época colonial, se desvencilhar do julgo lusitano foram frustradas, por outro, o nosso território aceitou todo tipo de aventureiro e desterrado que, ao ser comparado com o homem luterano, apresenta-nos um ser não muito afeito à construção, edificação e trabalho sempre pautados no âmbito da moral e da ética, mesmo porque o seu objetivo era somente o de extrair daqui um quantum significativo de riqueza e em seguida desbravar outras tantas terras existentes naquele momento histórico.

Se isso é claro, então como pensar o estado nacional a partir de seu surgimento, não através e do povo, mas sim da Corte que vem desterrada ao Brasil, escorraçada pelo Exército Napoleônico que grassava pela Europa subjugando outras nações e reinos? Há quem se ocupe em pensar a criação do Estado Brasileiro a partir da construção de prédios públicos na cidade do Rio de Janeiro e outras regiões que pertenciam à Coroa. Eu prefiro pensar, não nos prédios, mas nas instituições enquanto eram pensadas e erguidas burocraticamente e através das designações de seus ocupantes, ou seja, quem eram os sujeitos que preenchiam tais postos nessa imensa chancelaria monárquica brasileira. Até aqui, entendo que os meus leitores me acompanham no raciocínio e estão de acordo com ele, mesmo porque vira e mexe abordo, em linhas gerais, essa temática, porém, hoje objetivo aprofundar um pouco mais, no afã de tentar entender a pergunta formulada pela líder comunitária da região onde ficava ou ainda permanece a cracolândia na capital paulista.

Mas para não perder o foco, o nosso Estado tem várias peculiaridades especificamente por ter sido erigido do alto do trono e não das ruas, das casas e das praças – tão utilizada por Antonio Frederico de Castro Alves [1847-1871] em um dos seus poemas – como deveria ser, entretanto como não foi isso que aconteceu, tem-se uma enorme distorção na forma como o cidadão se porta diante do Estado, seja ele monárquico ou republicano. O mais importante a observar aqui é que o comportamento do brasileiro de não exigir a mercadoria que compra todos os meses mediante o pagamento de impostos se iguala àquele que esmola migalhas que caem do alto do trono e, desta forma, se contenta com os farelos.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.

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