DO QUE TEM TRATADO A CRÍTICA ACADÊMICA?

Literatura e crítica literária encarnam, cada uma à sua maneira, formas de pensar o mundo. Se a segunda é o duplo necessário da primeira (“um texto nunca pode dizer toda a verdade sobre si”, diz Todorov), e se a crítica é uma tentativa de expor possíveis “verdades” sobre a literatura, então entender como funciona a análise de obras nos permite visualizar alguns funcionamentos do campo literário. Dá-nos ferramentas para esclarecer processos de legitimação de autoras e autores, bem como em que medida ela, a crítica, reproduz as complexidades da sociedade em que vivemos.

É um olhar possível para entender a importância da pesquisa que Regina Dalcastagnè (UnB), Anderson da Mata (UnB) e Igor Graciano (Unilab) conduziram com a crítica literária acadêmica. Eles mapearam o que é produzido dentro das universidades sobre literatura, em especial a que é de autoria brasileira e contemporânea, para entender do que trata esse tipo de crítica.

Para tanto, analisaram 10 periódicos acadêmicos de literatura com o conceito mais alto segundo os parâmetros do governo federal. As publicações abrangeram um arco de 15 anos.

O estudo partiu da hipótese de que as análises são circulares, homogêneas – estão sempre falando dos mesmos autores, com as mesmas abordagens e o mesmo referencial teórico. Os dados apontam que a maior parte da crítica tem teor monográfico: ou seja, observa um ponto específico acerca de um tema, sem entrar em empreitadas intelectuais arriscadas. O resultado é uma produção marcada por um marasmo teórico.

“Não houve muita surpresa. A pesquisa serviu para confirmar, e expor, o que era uma impressão mais vaga”, diz Dalcastagnè, que coordenou o estudo. “Com esses dados é possível discutir o que está sendo deixado de lado e o que pode ser reforçado na pesquisa e no ensino da literatura no país hoje. O estudo pretende ser uma reflexão sobre nossos procedimentos e metodologias, nosso modo de pensar o mundo, a literatura e a educação. Permite-nos entender o trânsito de algumas teorias, a incorporação de novas discussões no meio acadêmico e mesmo a importância das revistas para a divulgação do conhecimento produzido nas universidades.”

RESULTADOS

Foram localizados 3 085 textos em 10 revistas Qualis A1. Posteriormente, foram extraídos os artigos que tratavam apenas de linguística, o que fez o número descer para 2 565. Destes, 410 trabalham apenas a teoria literária, sem abordar ficções. Portanto, apenas 2 155 desses escritos eram, de fato, análises de obras.

O Qualis é o sistema de classificação dos periódicos científicos. Para atestar a relevância das publicações, levam-se em conta sua abrangência, circulação e periodicidade. A nota A1 é a mais alta.

O primeiro critério para escolher os 10 periódicos foi inserir os que trabalhavam apenas com literatura ou que alternavam edições de literatura e linguística, excluindo os que tratavam apenas de linguística. Deveria abarcar as regiões do país, mas Norte e Nordeste não têm revistas A1. A solução foi trazer revistas das associações da área de Letras e aumentar o número de periódicos do Sudeste. “Pesquisadoras/es do Norte e Nordeste publicam nas revistas que selecionamos e em diversas outras. A ausência de revistas A1 nessas regiões não significa que não existam ali periódicos importantes para a área, apenas que não cumprem com todos os requisitos da Capes”, pontua Dalcastagnè.

As revistas analisadas foram: O Eixo e a Roda (UFMG), Ipotesi (UFJF), Gragoatá (UFF), Terceira Margem (UFRJ), Literatura e Sociedade (USP), Itinerários (Unesp-Araraquara), Letras de Hoje (PUC-RS), Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (UnB), Revista da ANPOLL e Revista Brasileira de Literatura Comparada.

Nos 2 155 artigos, verificou-se que os autores mais estudados são homens. E os mesmos homens: Guimarães Rosa (121 textos), Machado de Assis (108), Carlos Drummond de Andrade (51) e Antonio Candido (também com 51). Depois vem Clarice Lispector, com 47 textos, seguida por Mario de Andrade (39).

Esses números são o conjunto completo de textos encontrados sobre os autores; o cenário se repete de forma parecida se separarmos os escritos de acordo com o tipo de abordagem em que se inserem – monográfica, panorâmica ou comparativa –, pois Lispector continua sendo a única mulher a figurar na lista das três modalidades e os autores homens se repetem com variações pouco significativas. Se considerarmos apenas os escritores analisados nos artigos de autoria feminina, Clarice Lispector figura na 3ª posição e Carolina de Jesus aparece no 10ª lugar.

O mesmo ocorre no mapeamento das referências teóricas usadas nos artigos. Se estudados os textos que trabalham obras literárias e os que tratam apenas da teoria, que totalizam 2 565 produções, vemos que Antonio Candido é o “campeão”, com 393 citações. A ele seguem Walter Benjamin (256), Roland Barthes (214), Michel Foucault (17º) e Mikhail Bakhtin (162). A primeira mulher a figurar na lista, Linda Hutcheon, é citada em 94 artigos (15ª posição). Como ela não aborda questões de gênero e é estrangeira, vê-se que o espaço para a inteligência feminista brasileira no campo da teoria ainda é bem restrito na crítica acadêmica.

Em contrapartida, mulheres lideram a autoria dos artigos. Dos 2 155 analisados, 57,7% são de autoria feminina. Ou seja, uma diferença grande entre a autoria das críticas, de um lado, e o que é analisado por esses textos e seu referencial teórico, de outro. Se levarmos em conta que o estudo abrange os últimos 15 anos, essa discrepância é compreensível – as discussões sobre perspectivas subalternizadas ou de periferia foram difundidas há relativamente pouco tempo, relevando-se o papel das mídias sociais de expandir o alcance desses debates.

Mas, nesses 15 anos de corpus, houve evolução?

“Ainda precisamos analisar esses dados com mais cuidado. Mas, sem dúvida, há uma evolução”, garante Regina Dalcastagnè. Ela afirma que, em geral, pesquisadores que publicam em revistas A1 são mais experientes (doutores ou alguns doutorandos) e que há uma leva nova de estudantes preocupados com questões de raça e gênero. “Para detectar o interesse desses estudantes, e suas possibilidades futuras, precisaríamos fazer um outro levantamento, complementar: sobre as teses e dissertações que estão sendo defendidas agora”, explica.

Fora isso, a pesquisadora lembra que as correntes minoritárias da crítica acadêmica, que se preocupam em ler e valorizar a produção que nasce dos grupos sociais marginalizados, têm aberto espaços importantes. Por exemplo, ao se exigir esse tipo de conhecimento ao ingressar na docência de ensino superior, o que repercute em outras instâncias, inclusive nas leituras nas escolas. Portanto, há legitimação dessas produções. Mas ainda é uma posição de resistência.

“Você vai encontrar Carolina de Jesus ou talvez um ou outro escritor de origem periférica no ENEM, mas eles ainda estão fora das resenhas dos jornais, das listas dos premiados dos concursos literários, das traduções. A dicção da elite continua sendo aceita em geral como a única dicção literária legítima. É uma disputa desigual; mas pelo menos já há disputa”.

ABORDAGEM

Ao analisar os 2 565 textos que estudam ficções (2 155) e os que abordam a teoria literária (410), a pesquisa mostrou que maior parte (55,8%) do que foi publicado nas revistas A1 trabalha com conhecimentos extraliterários – ou seja, usam aportes conceituais da sociologia, antropologia e história. Aqueles que se detêm exclusivamente na análise dos textos ou teorias, sem levar em conta o mundo ao redor, somam 31%.

O resultado parece estar em sintonia com as disputas próprias do universo acadêmico, “entre duas posições bastante diferentes para se pensar a literatura e sua importância no mundo – uma que expande sua interpretação, vendo-a como um discurso sobre este mundo, e outra que tende a destacar a especificidade do literário, quase como se o mundo fosse um detalhe numa forma expressiva que deve ser avaliada por si mesma”, avalia Dalcastagnè.
Depois vêm os que se pautam pela filosofia ou psicanálise, que são 19,9%; os que abordam o corpus via tradição literária, com 19,8%; e os que estudam literatura e outras mídias, com 6,9%.

Outro resultado a se levar em conta é a predominância da crítica acadêmica de teor monográfico, ou seja, que aborda algum aspecto de um tema específico: são 66,2% dos 2 155 artigos que analisam literatura brasileira.

É notória a existência de um incentivo forte a esse tipo de especialização na vida acadêmica. Dalcastagnè afirma que o trabalho monográfico permite com mais facilidade que “toda” a bibliografia pertinente seja pesquisada e abre menos flancos para críticas. “Há muitos trabalhos monográficos com grande interesse e qualidade, mas a concentração neste formato tem muito a ver com a opção por caminhos com menor risco”.

Artigos comparativos (que cotejam produções de diferentes escritoras/escritores) e panorâmicos (apanhados gerais sobre um tema, sem se deter em pontos específicos) são 18% e 15,8%, respectivamente.

FORMAÇÃO

Além dos três professores que conduziram a pesquisa, também trabalharam nela duas estudantes de pós-graduação e 12 alunos da graduação em Letras da Universidade de Brasília. Nestes, o estudo produziu um efeito interessante.

As experiências de leitura dos pesquisadores da graduação mostraram que o contato frequente com os artigos os tornaram muito mais críticos em relação à produção acadêmica. “Embora estudantes de um curso de Letras tenham acesso a inúmeros artigos de críticos e teóricos ao longo do curso, a seleção feita pelos professores (…) entroniza os críticos lidos, sem que haja muito espalho para o dissenso (…). No contexto da pesquisa, sem a demanda de uma leitura voltada para a compreensão e absorção, num processo mais transmissivo que dialogado, havia uma maior liberdade de leitura”, escreve Anderson da Mata no texto que expôs os resultados da pesquisa, apresentado em dezembro último em Brasília, no VI Simpósio Internacional de Literatura Brasileira Contemporânea.

Os pesquisadores da graduação destacaram a qualidade técnica da escrita e seriedade das críticas literárias analisadas pelo estudo. Mas trataram como problema a repetição dos autores analisados e nas referências teóricas. Também mencionaram a ausência quase total de perspectivas subalternas ou periféricas. “O interesse obsessivo da crítica com autores canônicos demonstra, no relato desses pesquisadores, que, em lugar de estimular a elaboração de novas visadas sobre as obras clássicas, aquelas que nunca se esgotariam, essas escolhas levam a uma saturação traduzida em desinteresse”, continua Anderson da Mata no texto.

Abrir espaço para que esses estudantes entrem na discussão sem receio de se expressar é criar boas chances de que se tornem profissionais com autonomia intelectual, preocupações dialógicas e inclusivas. “Em tempos de ‘escola sem partido’ e de perseguição a professores/as que insistem na formação crítica das/os estudantes, garantir espaços de debate abertos e democráticos é uma questão que vai além da pedagogia, é um problema político, de resistência e de sobrevivência da liberdade de pensamento”, finaliza Regina Dalcastagnè.

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Disponível no site http://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/1859-do-que-tem-tratado-a-cr%C3%ADtica-acad%C3%AAmica.html (Acessado no dia 17/05/2017 às 11h12)

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