Cajamangas e morangos

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

            Sem querer parafrasear o médium de Uberaba, Chico Xavier, hoje me recordei desse fruto agridoce pelo qual tenho significativo apreço desde a infância. Explico-vos o motivo da lembrança. Não posso precisar o dia certo, mas foi numa reunião de educadores e um deles levou uma jarra de suco feito a partir de cajamangas e, para não bancar o guloso, repeti várias vezes a ingestão do líquido. Entre uma golada e outra, minha mente recebeu a lembrança duma tarde num distante março que já beira às quatro décadas. O tempo passou, mas o resultante daquele dia permanece até o presente, bem como os versos que eu lia debaixo dum pé de cajamangas.

            Como me disse certa vez um escriba amigo de redação, escrevemos por necessidade e para não esquecer o que vivenciamos. Sendo assim, o que se segue pode ter acontecido ou não, mas pouco importa, já que Aristóteles disse que o poeta não versa sobre o que foi, mas como gostaria que tivesse acontecido tais representações presentes nas suas enunciações. Então o narrado pode ser real ou ficcional, já que Nietzsche afirmou, um dia desses na estrada filosófica, que o poeta só escreve sobre aquilo que vivenciou, do contrário, não seria o que é e sim um inventor que usa as palavras para criar algo inexistente.

            De qualquer forma, não sei se foi desse jeito que o pensador alemão grafou suas ideias, pois penso que o mais significativo é o que se compreende disso e daquilo vivido, mesmo que o eu do narrador se confunda com o eu que é narrado. Desta forma, assim como um eu que conta a história passa para o eu da personagem, a nossa vida também é desta maneira quando mudamos de ciclo de vida, de cidade, de ensino médio para curso superior e a vida universitária. Tudo é muito novo e em algumas vezes é preciso chegar com uma armadura para não deslizar nas primeiras curvas da existência na faculdade. Não é andar de cabeça baixa e nem com altivez, mas, talvez a certeza de quem se é.

            Fácil né! Não é! Justamente quando aquele mundo ainda não é seu e foi apenas lhe apresentado por quem fazia parte dele. Você ingressou sem nenhuma bula, então como se posicionar? Não precisa dar uma de dono do mundo, mas é preciso certo jogo de cintura. E foi justamente por conta dessa postura aliada a sinceridade que uma certa fruta agridoce faz parte, não só de minha infância, mas também do período de minha formação profissional.

            Para ser sincero contigo, meu caro leitor, não sei ao certo como tudo começou, apenas me recordo que estava debaixo do pé de cajamangas degustando o poema “arritmia” que integra o livro Rebento. A estrofe é significativa e acho interessante apresentar a vocês, meus caros leitores, na íntegra: “vários são os fatores/que fazem um coração disparar/uma noite maldormida/o corpo sem comida/ou um novo amor a pulsar[1]”. Assim que terminei de absorver mentalmente o pulsar, escutei uma pergunta, em tom ríspido. “- Escuta aqui, por que você foi deselegante comigo lá na biblioteca? Se comportou como se eu não existia”, me disse uma veterana dum curso que era diferente do meu.

            Olhei para minha raivosa interlocutora, fechei o livro e a encarando com firmeza, lhe disse que não a conhecia e não tinha a menor vontade de tê-la no rol dos meus relacionamentos. Com essa observação esperava colocar fim àquela conversa, mas parece que o falado irou mais ainda a minha interlocutora. Imagina um calouro falando assim com ela. Naquele universo, os ingressantes tinham que se render, de qualquer forma, aos mais antigos da universidade e eu cheguei dizendo a ela que isso não funcionaria comigo. Ah! Esqueci de acrescentar que ela tinha presença, e como não dei a mínima para aquilo, a moçoila ficou mais enlouquecida.

            Eu, sentado no banco e ela em pé. Como não fazia movimento de que se afastaria e eu não sairia do meu local, a senhorita resolveu se sentar a meu lado e tentou argumentar, mas fui enfático dizendo: “- Sabe qual é o problema das pessoas que se acham bonitas, mesmo elas sendo? É que acreditam que todo mundo vai cotejá-las! Acontece que comigo não é assim. Penso que as coisas podem acontecer naturalmente. Eu já tinha te notado, mas não me aproximaria de ti por conta da sua beleza. Eu conheço a outra moça que estava contigo naquela mesa, aliás foi a primeira pessoa que conheci aqui. Então nada mais natural do que dialogar com ela”.

            Para mudar o rumo da conversa, ela desejou saber qual livro eu estava lendo e acabei lhe dizendo que, embora fizesse um curso totalmente diferente, sempre apreciei a poesia e aqueles que sabiam combinar verbos com versos e muitas outras rimas. Daquele diálogo, seguimos proseando até hoje e olha que já está quase chegando às quatro décadas de diálogos intermitentes, mas sem que haja arranhões em nossos afetos.  

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Professor no ensino médio em Penápolis. e-mail:   gilcriticapontual@gmail.comd.gilberto20@yahoo.comwww.criticapontual.com


[1] – Clareanna Santana. Arritmia. In. Clareana Santana. Rebento. João Pessoa, PB, 2023, p. 16.  

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