Crônicas do farol 1

Segredos de um semáforo 

 

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

“- A de sempre por favor”, pediu Fausto ao amigo barman.

Assim que virou o conteúdo do copo goela adentro, o poeta-mendigo agradeceu, dizendo que o dia prometia, caso o farol funcionasse dentro do tempo adequado.

“-Tempo de que”, perguntou um senhor bem-apanhado com roupas que pareciam ser de grifes, mas em tempos de compras de etiquetas, nada garantia que fosse realmente de qualidade.

“- Como é o seu nome”, inquiriu o enunciador do farol.

“- Murilo”.

“- Pois bem seu Murilo, sei lá do que. Acontece que é muito interessante vender minhas crônicas às pessoas que estão dentro de seus automóveis. O senhor não sabe o que eu já escutei e aí é interessante emendar com a narrativa do automóvel seguinte ”, contou Fausto, já deixando o bar com uma quantidade razoável de seus escritos debaixo do braço.

Os valores eram quase que irrisórios. Ele havia fixado o preço em dois reais, mas aceitava um real. Segundo ele, o mais importante não era a grana, mas o comprometimento com a leitura dos seus textos, contou ele certa vez para o atendente do Bar do Farol.

Enquanto Fausto deixava o estabelecimento, Murilo perguntou a Marcelo qual era a história dele e porque foi parar na rua. “- Ele me parece ser bem instruído. Será que foi um amor não correspondido”, perguntou o engravatado enquanto solicitava outra cerveja.

“- Por que todo mundo acha que o homem vira esmoleiro por conta de um amor não bem-sucedido”, quis saber Marcelo emendando uma segunda observação. “- Pelo que me consta esse homem largou tudo porque, segundo me contaram, estava cansado de contar dinheiro dos outros e na maioria das vezes oriundos de especulações, fraudes, roubos e outros tantos desvios”.

“-Interessante sua colocação”, disse Murilo.

“- Mas esquece! Ele não conta para ninguém. Um dia chegou aqui com um amontado de livrinhos feitos artesanalmente, me pediu para guardar uma parte, enquanto tentava vender outras”.

Murilo ficou curioso com a história e deu corda para o balconista falar mais sobre o homem que ganhava a vida vendendo crônicas em miniaturas num dos pontos mais movimentados da cidade.

Enquanto sorvia a sua cerveja, olhava para o sujeito que, às vezes conseguia vender um ou outro livresco e quando o farol ia abrir, ele lançava os textos para dentro dos carros que estavam com as janelas abertas.

Assim que terminou aquela leva, voltou para dentro do bar e pediu outra dose, desta vez dupla e da amarelinha como dizia sempre. Sentava-se em uma mesa à parte, tirando do bolso um caderninho e anotando rapidamente qualquer coisa e em seguida pedia outra quantidade de livros em miniaturas.

“- Posso saber o que você escreveu aí em seus papéis”, inquiriu Murilo.

“- Nada de interessante. Apenas algo que o motivou a me perguntar o que acabei de fazer. E tu viu e ainda quer saber ou fazer parte das histórias que conto nos meus textos”, perguntou Fausto.

“- Não quero fazer parte de narrativa nenhuma. Já tenho minhas próprias histórias”.

“- Pela tua cara de bundão que se veste bem, devem ser bem interessantes. Para estar aqui a essa hora da tarde, usando roupas de grife e bebendo cerveja barata, presumo que cu de vida tu deves ter. Creio que pode ser pior do que a minha”.

Murilo não gostou do que o cronista do farol lhe disse, mas nem pensou em revidar, pois sabia que seria enxovalhado pelo mendigo ou coisa parecida. Para sacaneá-lo perguntou quanto ele queria por toda a produção textual que estava comercializando. “- Para você não vendo nada. Sei que jogará minhas enunciações no lixo ou colocará na churrasqueira de sua casa para assar sebo”.

O interlocutor ficou ali sem saber o que falar, mas foi Fausto quem informou que caso ele desejasse conhecer suas narrativas, lhe ofertaria um livrinho que tinha 15 cm de altura e 10 de largura e pouco mais de dez folhas impressas em frente e verso e grampeada no centro.

Era o próprio cronista quem produzia os pequenos cadernos, numa oficina improvisada no fundo da casa. Sempre que deixava o farol por volta das 20 horas, voltava para o seu reduto e, caso não estivesse encharcado, conseguia escrever os textos a partir das anotações que fazia depois do que ouvia as pessoas conversando dentro dos automóveis.

Os dois enredos que tentava comercializar naquela tarde no meio da semana dizia respeito ao diálogo entre duas mulheres que falavam sobre beleza, sublimidade e dinheiro. A que estava no banco do carona desejava saber mais sobre o homem que iluminava os caminhos da motorista.

“- E eu lá estou interessada em sublimidade e atingir minha alma. Só quero saber se ele tem capacidade de suprir as necessidades de minha conta bancária. O resto eu ajusto! Afinal para que Deus me deu esse corpo? Com certeza não foi para fazer caridade”, externou a condutora quando o farol abriu e ela partiu para não se sabe onde, mas a sua observação fez Murilo ficar pensando a tarde toda, após ler a crônica de Fausto.

Na noite anterior, diante do terminal de computador que usava para produzir as histórias reais ou não, o mendigo do farol ficou pensando quantas crianças passariam fome, quantas obras seriam superfaturadas para que as contas bancárias daquelas dondocas fossem preenchidas. “Fazer o quê? Enquanto tiver trouxa que acha significativo desfilar com mulheres que cobram alto para saírem com eles, a coisa não mudará, principalmente porque haverá outros tantos que acreditam em promessas de políticos”, pensou Fausto colocando um ponto final à sua narração e a suas observações sobre aquela dupla de mulher.

Desejou saber como é que a mulher do banco do carona via aquilo. Pela intensidade da voz da sua parceira de automóvel, provavelmente seria diferente. “Mas aí é assunto para outra crônica. Passemos ao próximo veículo estacionado, enquanto o sinal não abre”.

 

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis.

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