Sobras de um amor … parte III

14.

        

Já dentro do elevador, do nada Angélica desfere um tapa no rosto de Márcio que se limita a passar a mão ao sentir a face ardendo. Como ele ficou em silêncio, a esposa lhe desfere um pontapé perguntando entre os dentes se não iria dizer nada. “- Vai falar ou não seu cachorro. Tu estavas de encontro marcado com aquela vagabunda da Ângela e de sua amiga que usou a desculpa do romance para se aproximar e te levar para um bacanal”.

O marido só alisava a parte da perna que havia ficado contundida com o chute que levou. “- Tenho certeza que levou seu irmão e Roberto para encobrir suas safadezas. E em casa no domingo para dar um de bom-mocinho esmurrou o meu diretor fazendo com que eu demitisse os outros dois. Você é mesmo um filho de uma puta. Vou te partir a cara”, esbravejou Angélica enquanto a porta do elevador se abriu e o casal ingressa no apartamento.

Sem falar absolutamente nada, Márcio se dirigiu à cozinha para pegar uma garrafa com água e se servir dela, mas quase teve o rosto atingindo por um copo atirado em sua direção pela esposa que continua a berrar com ele. Ao perceber que seria impossível conversar com a empresária, o marido foi ao bar pegou uma garrafa de uísque e encheu o mesmo copo no qual tinha tomado água.

Virou o conteúdo todo dentro da boca, enquanto a esposa gritava com ele, dizendo que ia se tornar um alcóolatra para ficar do jeito que aquelas putas queriam. “- Pode encher a cara e depois vai pra UTI, vai pra puta que te pariu, vai pro inferno seu cachorro traidor. Te odeio”, disse Angélica indo para cima dele que achou melhor não falar nada, deixando o apartamento, mesmo tendo jurado que jamais tornaria a fazer isso, mas era impossível continuar ocupando o mesmo espaço que a esposa.

– Era isso mesmo que tu querias! Vai embora e não volte mais. Pode ir com suas putas para aquele hotel de quinta que eu te achei. É lá que é o lugar de cachorro e suas cadelas.

O editor deixou o prédio, indo em direção ao seu apartamento. Desta vez apertaria o passo. Queria chegar logo para descansar. Dentro do imóvel que acabou de sair, a empresária estava possessa e começou a quebrar tudo, jogou a garrafa de uísque no chão, pegou boa parte da roupa do marido e rasgou tudo, se trancando no quarto aos prantos.

Márcio chegou eu apartamento perto da meia-noite, entrou, pensando em ir direto para a cama que manteve no local não com aquele propósito, mas de poder descansar depois de uma manhã de trabalho. Ficaria ali sem precisar voltar ao apartamento. Tomou banho e ao se deitar, escutou as primeiras pancadas de chuva baterem na janela. Não queria falar com ninguém, até porque não tinha o que dizer. Desligou o celular. A mulher tinha ficado histérica, o agredindo fisicamente e verbalmente por conta de uma situação que ele não tinha culpa alguma, mesmo porque não deu aval para Ângela ou Alice se sentirem a vontade para cortejá-lo.

Ao acordar por volta das 3 horas, Angélica procurou pelo marido e não o encontrou, percebendo que a chuva era fortíssima, entrou em desespero, pois Márcio tinha saído a pé e poderia não ter dado tempo de chegar ao apartamento. Não ligaria para ninguém. Eles precisavam resolver seus problemas sem incomodar os amigos e os pais. Tomou um banho e, mesmo com o aguaceiro forte que caia sobre a cidade, resolveu procurar o editor. O primeiro lugar seria no prédio onde ela o conhecera.

Quando entrou no apartamento, a empresária viu tudo escuro e o local era iluminado pelos raios que riscavam o céu desde o começo da madrugada e as trovoadas eram constantes. O coração gelou diante da possibilidade de o esposo não estar ali. Recordou que o encontrou encharcado no banco de uma praça todo encharcado.

Só lhe restava o quarto onde ingressou e em virtude de outro raio que iluminou o cômodo, Angélica pode ver que tinha um corpo estendido na cama e do lado havia uma garrafa. Em virtude da escuridão, não foi possível de a empresária saber se estava cheia, pela metade ou o conteúdo havia sido todo consumido. Recordou quando o marido quase foi a óbito por não suportar a ideia de ficar longe dela e se entregou à bebedeira de uma noite apenas, mas que quase lhe tirou a vida.

Para não assustar o que pensava ser o corpo do marido, Angélica acendeu a luz do banheiro e o ambiente ficou um pouco mais iluminado. Percebeu que a garrafa era de água, portanto, Márcio não tinha ingerido bebida alcóolica. Observou que a respiração dele era tranquila e de alguém que o corpo estava ali, inerte, mas a alma deveria estar andando por algum lugar entre as estrelas.

A arquiteta não pensou duas vezes, tirando a roupa e se deitando nua ao lado do marido que despertou quando se sentiu tocado por alguém. Ao ver de quem se tratava, levantou rapidamente perguntando o que ela fazia ali. “- Só me deixa ficar aqui contigo. Amanhã vou embora, prometo! Não precisa voltar comigo e se quiser procurar um advogado para tratar de nossa separação, não tem problema. Sei que vai doer muito aqui dentro, mas terei que entender, mas agora fique aqui comigo só até essa noite maldita terminar. Não me deixe sozinha, por favor Márcio”, implorou Angélica já chorando, sentindo a alma dilacerada.

O marido olhou fixamente para a esposa e a vontade era devolver todas as ofensas que ela lhe proferira horas antes e ainda mais por ele não ser merecedor de toda aquela violência verbal e também física. Ela desferiu vários tapas em seu rosto, lhe dera um pontapé, além de jogar um copo de vidro em sua direção. A razão pedia uma coisa, mas alma e o coração clamavam por outra atitude. Dois contra um, venceu o amor que sentia por aquela mulher que o ciúme a cegava. Deitou-se e deixou que ela se ajustasse ao seu corpo. Chorando Angélica lhe disse: “Ajude-me a me proteger das minhas insensatezes”.

Dormiram como se a briga e as agressões nunca tivessem existido. Foram despertados pelo telefone da esposa que tocava insistentemente. Meio sonolenta, ela atendeu, viu que era o diretor que desejava lhe falar. Para não acordar o esposo, se dirigiu à sala para conversar mais à vontade com o amigo e funcionário.

“- Dona Angélica, a senhora está onde”, perguntou Roberto.

– É uma longa história meu amigo. Passei e muito do ponto com Márcio. Tenho certeza de que desejará se separar e não posso fazer nada. Eu o agredi em demasia ontem. Não consegui me equilibrar, joguei toda a minha razão na lata do lixo.

– Tenha calma. Não se preocupe com o Marzinho. Venha para cá, precisamos conversar. O Leônidas está vindo também e a Fernanda já se encontra aqui. Não podemos perder dinheiro em hipótese alguma, bem como deixar que o amor de vocês dois vá para o ralo.

– Eu não quero deixá-lo aqui sozinho, sem antes saber o que ele fará. Estou aterrorizada só de saber que Márcio pode pedir a separação e se fizer isso, não sei como a minha cabeça ficará.

– Venha para cá, antes mesmo dele acordar e deixe o resto que a gente segura a onda dele.

“- Obrigado Roberto. Me dê uns vinte minutos que já chego aí”, explicou Angélica.

Sem dizer nada para Márcio que dormia do mesmo jeito que ela o encontrou na madrugada, a empresária achou umas roupas que sempre deixava ali no apartamento e foi para a sede das empresas.

Quando chegou lá, Roberto, Fernanda, Débora e Leônidas a aguardava. Se fecharam na sala de reuniões e o primeiro a desembuchar foi o seu diretor. “- Angélica. Você precisa parar de provocar escândalos como o de ontem. Uma daquelas mulheres é cliente do seu escritório de arquitetura. Passe todo o trabalho para Débora. A outra publicará um livro pela editora do Marzinho e tem grandes chances de ser sucesso. Então, não pode ficar por aí dando murros em todas as mulheres que olharem para o seu marido. A única coisa que conseguiu fazer foi atiçar aquelas duas doidas que só estão esperando vocês dois se separarem para caírem matando em cima do Márcio”, explicou Roberto.

Em seguida Leônidas informou que o irmão continua sendo o mesmo desde a adolescência e que jamais daria confiança para aquelas duas. A primeira mandou um bilhete para ele. “-Márcio ignorou o texto, não porque estava conosco, mas porque ele simplesmente é doido por ti. Aline não tem a menor chance com ele. Agora querida: se controle. Pelo meu irmão Márcio em relação à fidelidade dele para contigo, eu colo minha mão no fogo”, finalizou Léo que passou ali somente para tentar mostrar para a cunhada que os três saíram para falar de amenidades e não para paquerar.

– Eu sei Leônidas, mas ontem brigamos três vezes durante o dia por conta desse meu ciúme exagerado e a noite só não terminou em tragédia porque seu irmão é muito comedido. Mas de qualquer forma, eu agradeço por ter vindo até aqui tentar clarear a minha cabeça, mas tenho certeza de que a qualquer momento o advogado dele me ligará para tratarmos de nossa separação. E o que vou dizer a Judith e a minha mãe? Sinceramente estou destroçada.

Quando Leônidas já de pé se despedia, Roberto informou à patroa que não se preocupasse com Marzinho. “- Enquanto você vinha para cá, conversei com ele. O cara está possesso e com a perna arroxeada por conta de um pontapé que destes nele ontem dentro do elevador, mas não vai tomar medida alguma até que eu e Fernanda conversarmos com ele”.

Angélica esperou o irmão de Márcio deixar a sala para dizer que pegou pesado com ele. “- Joguei um copo de vidro nele, esbofeteei várias vezes, justamente porque não me dizia nada. Eu sei que é calado, e não sabe ficar brigando falando entre berros e eu não deixei se explicar. Ele tem horror a chamar a atenção e eu vivo colocando-o em situação que fazem as pessoas olharem para ele mais do que deviam”.

Ouvindo o que a patroa lhe dizia, Fernanda se aproximou, abraçando-a e dizendo de forma bem serena. “- Conhecemos bem o Marzinho e de uma coisa eu posso te garantir: não haverá advogado algum e nem separação. Ele está magoado contigo e isso é muito dele. Até parece que é feito de cristal, mas não o procure durante o dia. Tarsila ficará trabalhando na mansão, então o deixe lá”, lhe pediu a secretária.

– Mas e se aquelas cadelas aparecerem lá.

“- Quem? Alice e Ângela”, perguntou Fernanda.

Foi Roberto quem respondeu. “- Esquece isso e se concentre no seu casamento com o homem que você ama e é doido por ti. Não tem promessa de que não acontecerá novamente. Os dois são ciumentos ao extremo porque se adoram e não podem nem imaginar uma outra pessoa tocando-os. A diferença é que Marzinho é silencioso e dá o bote na hora certa e não te agride. Você fica achando que ele é culpado e parte para cima dele. Tirando isso, são completamente amalucados um pelo outro”.

– Roberto, você tem certeza que essas mulheres não vão importunar meu marido hoje lá no apartamento?

– Angélica. Se concentre no trabalho. Volte ao seu escritório com a sua secretária. Ela tem o projeto da editora para terminar, tu precisas rascunhar o pré-projeto daquela doida da Ângela.  A tarde você volta para cá, pois temos reuniões e decisões importantes a tomar.

“- Olha só, Roberto vou confiar em ti, mas se tiver algo de errado nessa história e eu descobrir, se prepare”, avisou a presidente das Organizações Oliveira.

A arquiteta deixou a sede de suas empresas mais leve e em companhia de Débora. “- Angélica! Por que tem tanto ciúmes assim do Márcio? Meu irmão morre de ciúmes de Fernanda com ele, porque gostaria, mesmo que inconscientemente, ser igual ao Marzinho e isso nunca acontecerá e se ele fosse do mesmo jeito do teu marido, Fernanda não teria caído de amores por ele”.

Pela primeira vez a arquiteta ficou pensativa sobre as observações feitas pela amiga e secretária. Procurava no interior do coração, dentro do cérebro e nos recônditos d’alma, algo que pudesse justificar o ciúme que tinha do marido a ponto de tirá-la do eixo. “- Márcio tem ciúme de ti porque te ama e esse sentimento nasceu a partir do momento em que você virou a vida dele de cabeça para baixo. Ele fazia tudo igual, conforme Fernanda me disse. Um cara totalmente aluarado para quem o mundo parecia ter parado e a terra de girar em torno do próprio eixo. Ai do nada, aparece uma mulher que o atropela com toda a sua empáfia, porém, ele não vai ao solo, mas direto para o coração dela e por incrível que pareça, ela invade completamente a existência dele, fazendo o mundo dele girar ao contrário”, explicou Débora já dentro do carro com a patroa.

Com uma mão no volante e a outra perto do câmbio, Angélica toca a mão da secretária agradecendo o apoio, dizendo que a pergunta que a funcionária e sócia lhe fez tinha muita pertinência. “- Tenho que resolver isso até o final do dia. Não quero falar com Mazinho do mesmo jeito de sempre, pedindo desculpas, afirmando que perdi o controle e que isso e aquilo. Preciso ter maturidade, até mesmo caso ele queira pedir a separação”, expôs Angélica mais para si mesma do que para que a sua interlocutora ouvisse.

Assim que as duas chegaram ao escritório, Ângela estava esperando e a informação era de que precisava falar com a arquiteta. Ao ver a mulher que estava dando em cima de seu marido na noite anterior, Angélica esboçou uma reação, mas ao mesmo tempo em que era contida, lembrou do esposo que jamais reagia a uma ofensa, optando sempre pela ação e certeira. Ao se recordar dessa situação, a empresária sentiu um aperto no coração que a alma traduziu como saudade do seu Marzinho.

– Pois não? O que a senhora deseja? Eu ainda não finalizei o seu pré-projeto e marcamos apenas na sexta-feira.

“- Estou aqui por outro motivo. Desejo-lhe falar, mas a sós”, explicou a cliente

– Eu e minha sócia e futura cunhada não temos segredos uma com a outra, então pode desembuchar o que veio dizer.

Débora percebeu que Angélica poderia descarrilhar e colocar tudo a perder e nada conseguiria evitar que ela partisse para a briga com aquela mulher que tentara avançar o sinal em relação ao seu marido.

– Tudo bem Angélica. Qualquer coisa me avise.

As duas entraram na sala e a arquiteta não se preocupou em fechar a porta da sala, porém, a secretária fez questão de encostá-la para evitar que, caso a coisa descambasse para a briga, a situação se mantivesse apenas no interior da sala onde as duas estavam.

– Agora pode falar o que veio dizer e nos deixar em paz para trabalhar no projeto de reforma de sua propriedade.

– Quero te pedir minhas sinceras desculpas pelo ocorrido ontem. Realmente seu marido é um excelente homem, mas sobretudo uma grande pessoa. Nunca havia me deparado com um ser assim. Achei que os três estavam ali em busca de aventura e por isso não se ocuparam em esconder que eram casados, pois as alianças que os homens colocam nos dedos mais atraem do que repelem as outras mulheres.

Ao ouvir o comentário de sua cliente, Angélica se lembrou do que Amadeu havia lhe dito naquela manhã quando se preparavam para ir à Alemanha. “- Nenhum deles deram espaço para nós chegarmos. Eu e minhas amigas que fizemos apostas para saber qual sairia da mesa para se dirigir a nós, como num jogo de gato e rato. Entretanto, estávamos redondamente enganadas. Por isso estou aqui para lhe pedir desculpas e também para solicitar que continue a trabalhar em meu projeto”.

Angélica se manteve em silêncio, pensando em tudo o que havia feito na noite anterior com o marido. As agressões verbais, os tapas no rosto dele, os pontapés e o copo que jogou nele, achando que tinha dado espaço para que aquela situação acontecesse. “- A coisa fugiu do controle quando a amiga de adolescência dele chegou, levando a nossa mesa junto da deles. Seu marido ficou muito desconfortado e o irmão dele percebeu, tentando arrumar a situação”, tentou explicar Ângela.

– E o que Alice tem a ver com tudo isso? Eles foram amigos na adolescência e agora voltou para assombrá-lo, achando que poderiam começar algo que nunca teve início lá atrás por conta da opção que ela tinha feito naquele momento.

– De fato, ela acreditou que pudesse resgatar algo do ontem, mas percebeu que não havia mais espaço para ela na vida do amigo, não do jeito que almejava. Escreveu o romance no anseio de entender tudo. Quando foi conversar com ele, usou o apelido de adolescência de seu marido numa tentativa de mostrar para nós que era íntimo de seu marido.

A arquiteta se manteve em silêncio. “- Só fomos perceber a merda que tínhamos feito ao observar o silêncio dele e quando você chegou como os olhos dele brilharam ao te ver. Alice nos disse que ninguém nesse mundo o tiraria de você. Por isso estou aqui em meu nome e de minhas amigas para te pedir desculpas e se causamos algum transtorno entre vocês, estou pronta para reparar os danos que provocamos. E também para te dar os parabéns, por ter se casado com um homem, até onde sei, integro e correto contigo”.

– De fato, Márcio é um ser singular e antes de ser meu marido, é meu amigo e de todos os que respeitam esse jeito recatado que tem. Ontem ele lhe foi cordial porque é da natureza dele e não para que achasse que pudesse atravessar o sinal e dar em cima do meu marido. Então a partir de hoje tudo sobre a sua reforma, a senhora tratará com a minha sócia. Eu farei o projeto, mas não conversaremos mais. Prefiro assim.

– Obrigada pela sua compreensão. Na sexta-feira pela manhã eu marco e venho ter com a sua sócia.

Assim que Ângela deixa a sala, a arquiteta desaba sobre a mesa e começa a chorar, sendo assistida pela secretária que, ao entrar, fechou a porta. “- O que foi Angélica? O que essa amalucada te disse? Falou que vai lutar para conquistar o Márcio e que os dois marcaram de sair”, perguntou Débora.

– Não! Muito pior menina. Ela me chamou de idiota, pois me fez ver o quanto sou imatura e não confio no amor que o Marzinho me tem. O envergonhei na frente de todo mundo ao agir feito uma desiquilibrada. Se ele tivesse reagido a uma ofensa minha, a situação tinha ficado pior. Eu o agredi de todas as formas que você possa imaginar. Agora compreendo o silêncio dele e porque saiu de casa, vindo dormir no apartamento. Ainda bem que chegou antes daquele temporal todo. Vou ligar para ele.

“- Não faça isso! Se concentre em nosso trabalho e depois na reunião que tem na empresa à tarde. Faça o que Roberto está lhe dizendo e aguarde até o final do dia para se falarem”, aconselhou a secretária.

– Está certo minha amiga. Acho que será bom, desviar um pouco o foco de minha vida sentimental que só não está pior que o homem que eu amo é compreensivo ao extremo.

– Ah! Ninguém falou nada para Judith e Eleanora. Decidimos que vocês dois precisam resolver isso sem envolver as outras pessoas e os amigos.

– Obrigado querida.

Enquanto Angélica conversava com Débora, passando do tema Márcio para os projetos que precisavam ser finalizados aquela semana, o editor conversava com o amigo Roberto. “- Será que pode vir aqui no meu apartamento? Minha perna está doendo e começou a inchar. Então preciso ir ao médico. Não sei se quebrou ou foi apenas uma luxação”.

Depois de 20 minutos, Roberto e Fernanda estavam no apartamento. Márcio estranhou a presença da amiga. “- E quem disse que ela ficaria no trabalho. Vamos. Eu já até marquei um ortopedista. Está nos esperando. Deixe-me ver isso”, pediu o diretor que se assustou ao ver o tamanho do hematoma. “- O que foi isso Marzinho”, inquiriu Roberto já sabendo qual seria resposta.

Depois de todos os exames, o médico resolveu imobilizar a perna do editor para que tudo pudesse voltar ao normal em breve. Quando soube que o paciente tinha se lesionado numa briga, o ortopedista afirmou que se a pancada tivesse atingido os testículos, provavelmente Márcio teria ficado impotente. Claro que essa informação os dois ocultaram de Fernanda, pois sabiam que seria como tentar apagar incêndio com gasolina.

Depois de mais de duas horas entre consulta e imobilização da perna, o trio voltou ao apartamento-escritório. Fernanda ficou lá para almoçar com Márcio enquanto o diretor faria a refeição com Danisa. A comida dos dois chegou e comeram em silêncio que foi quebrado pela secretária da presidência. “- Marzinho, como isso foi acontecer, meu querido. Essa tua mulher é completamente desiquilibrada”.

O editor permaneceu em silêncio e ao tentar se levantar foi ajudado pela amiga que o auxiliou a pegar na bengala. Ele queria levar os pratos para a pia, mas teria dificuldades. Sabia que aquela tarde teria que iniciar um processo de adaptação até retirar a imobilização.

Quando os dois estavam sentados no sofá, o editor disse que desejava pedir a separação. A noite passada parecia filme de terror. Angélica berrando, xingando, o agredindo verbalmente, o estapeando, inclusive o acertando com um pontapé e depois jogou um copo de vidro nele. Ele tentou beber, mas percebeu que só ia piorar a situação, optando por sair do imóvel e indo ao apartamento dele.

Assim que terminou de falar, Roberto chegou para levar Fernanda de volta às empresas. “- Por favor Roberto e Fê, conto com a discrição de vocês, inclusive com minha mãe, meu irmão, Débora, enfim com todo mundo. Depois eu vejo como resolvo tudo isso. Qualquer coisa, digo que tropecei na rua ou algo parecido”.

– Tudo bem Marzinho. Tu  sabes que podes contar comigo. Você tem meu celular. Me ligue, mas se não atender, é porque estou em reunião com a sua mulher. Assim que estiver livre, eu retorno. Agora vê se descansa.

– Vou tomar um calmante e dormir a tarde toda.

Dentro do automóvel, os amigos comentaram o ocorrido com o editor. “- Roberto! Eu não sei o que fazer. Angélica está passando dos limites com essa ciumeira dela. Você acredita que ela atirou um copo nele durante a discussão? E o Marzinho se manteve em silêncio, pois sabia que se fosse falar alguma coisa, provavelmente a gagueira o visitaria e ela, com certeza, o imitaria. Já imaginou como tudo terminaria”, perguntou Fernanda.

– Ele está completamente desnorteado. Sem rumo. Sem chão. Sei que está tentando segurar a onda, mas está difícil. E olha que se ele fosse mulherengo teria dado azo àquelas doidas ontem à noite.

– Mas isso não pode ficar assim. Vou falar com Angélica.

“- Não faça nada! Teremos uma reunião complicada agora a tarde. Assim que terminar tudo, conversaremos com ela. Deixe que eu início o diálogo”, disse o diretor de comunicação.

– Tudo bem Roberto, mas estou pouco me lixando para porra do emprego. Se ela aprontar mais alguma contra o Marzinho, eu não responderei pelas consequências.

– Não será preciso fazer nada. Creio que a partir do momento que ela vê-lo com a perna imobilizada, tendo que inventar uma história para Judith, para a mãe dela e o resto do pessoal, compreenderá que avançou o sinal e que na próxima vez, não será Márcio quem decidirá, mas todos nós, começando por interná-la para um tratamento psiquiátrico.

Assim que o casal de amigos chega e inicia os preparativos para o encontro que deveria consumir a tarde todo de boa parte da diretoria, pois dizia respeito à instalação de uma das indústrias numa localidade em que a água era de ótima qualidade, portanto, a linha de sucos do grupo, inclusive agregando valores às cidades da região, mudando a matriz agrícola naquele entorno.

Antes da reunião, nem Angélica, Fernanda ou Roberto tocaram no assunto Márcio. Ao término do encontro, a empresária afirmou estar exausta querendo voltar para casa, mas teve o desejo abortado, pois a secretária passou a chave na porta e o diretor foi incisivo.

“- Angélica! Vou te mostrar uma coisa e já te aviso: você é minha patroa e sou grato à oportunidade que está me dando, mas colocarei meu cargo à disposição se acontecer novamente isso que te apresentarei”, afirmou o diretor mostrando uma imagem com Márcio tento a perna imobilizada pelo ortopedista. “O médico informou que se o pontapé que deu nele pegasse nos testículos, ele ficaria impotente”.

Angélica se desesperou, mas Fernanda continuou. “- Seus ciúmes passaram do ponto. Ontem o esbofeteou várias vezes, além de jogar um copo nele. Ele não dizia nada porque sabia que seria atacado pela gagueira e tu, com certeza, iria imitá-lo e aí a coisa ficaria feia. Já te pedi isso várias vezes, mas farei novamente e espero que pela última vez: faça esse homem feliz. Ele só tem olhos, coração e alma para ti”.

– Teremos que contar uma história para sua mãe, para Judith, enfim para todo mundo. Os únicos que sabem o que aconteceu e as consequências somos nós e ele. Eu o levei ao médico logo depois que você saiu daqui. Não podia deixá-lo sozinho.

– Vocês têm a minha palavra. Isso não tornará a acontecer. Aquela Ângela esteve no meu escritório na parte da manhã e me contou o que havia acontecido e eu com o meu desespero não acreditei em meu marido. Sinceramente estou toda envergonhada. Débora insistiu comigo para eu não envolver os nossos trabalhos nessa confusão toda provocada sempre pela minha imaturidade.

– Por isso que lhe disse: vamos manter isso entre nós. Já temos uma narrativa. Agora, por favor, se controle. Marzinho não é nenhum santo, é um homem como todos os outros, mas sempre pondera antes o que vai fazer e ontem a noite se quisesse poderia muito bem ter saído com qualquer uma delas e nenhum de nós o impediria, mas nada disso aconteceu porque o meu amigo é fiel ao amor que lhe tem.

“- Eu sei que passei das contas com meu marido e agora está lá todo engessado”, desabafou Angélica.

Os três olharam ao mesmo tempo para o relógio e foi Fernanda quem informou que Márcio deveria estar dormindo. Havia tomado um analgésico para conter a dor e depois informou que tomaria um chá ou calmante para dormir. “- Obrigado pela amizade de vocês dois. Eu sei que querem a saúde do nosso casamento. Ele falou alguma coisa de separação”, perguntou a empresária.

– O que você acha Angélica?

A empresária ficou em silêncio, enquanto se dirigia à saída da sala dispensando os dois funcionários. Roberto precisava dar atenção à esposa e Fernanda se preparar para a faculdade. Já tinha faltado no dia anterior e não podia ficar se ausentando por nada.

Quando a empresária chegou ao prédio em que funcionava de forma provisória à sede da editora Jardim da Leitura, se deixou ficar um certo tempo com a cabeça debruçada sobre o volante, entre lágrimas de desespero e perguntas como deveria dialogar com o esposo. Temia que ao vê-lo, tocasse no assunto de separação, pois na sua fúria de ciúmes quase o incapacitou como homem. Depois de tanto ponderar, tomou coragem e entrou no prédio.

Dentro do apartamento teve a mesma sensação daquela madrugada e recordou como Roberto o encontrou desfalecido aquela final de tarde quando ele havia passado a noite anterior bebendo tudo o que via pela frente, achando que no dia seguinte despertaria melhor. Chegou até a vidraça e observou o dia indo embora e os raios novamente faiscando no ar, indicando que haveria mais uma noite chuvosa.

Ficou sentada numa das poltronas, ouvindo o silêncio do imóvel e os trovões que começam a emitir sinais de vida e de chuva. Sozinha chorou, ao se recordar das agressões que desferiu contra o marido na noite anterior. No papel idiota e infantil que fez no interior do bar onde Márcio estava com o amigo e o irmão para conversarem sobre a sociedade no supermercado. “- Meu deus do céu! Como pude ser tão egoísta”, se perguntava mentalmente a arquiteta, enquanto tentava segurar as lágrimas que vinham em abundância.

De cabeça baixa e com o rosto entre as mãos, não percebeu quando Márcio chegou próximo dela ficando em pé, por conta da perna, e em silêncio. Ao perceber que havia alguém perto, Angélica ergueu o rosto e chorou mais ainda enquanto se levantava para abraçar o esposo, achando que a primeira coisa que ele diria era “precisamos conversar” e a segunda seria “acho melhor nos separarmos”.

– Vamos para casa, antes que a chuva desabe e eu não posso correr com essa perna imobilizada. Terei que ficar assim por pelo menos uma semana. Então preciso conversar com Tarsila para ver como trabalharemos durante esse tempo. Quero lançar a editora dentro de no máximo três semanas.

– Está certo. Vamos que eu te ajudo. Em casa preparei o jantar para ti e vamos conversar muito.

Caminhando escorando na bengala, o casal deixa o apartamento e chegando no térreo, a empresária pede para ele aguardá-la enquanto busca o carro que havia deixado no estacionamento. Angélica chega e o ajuda a se ajustar no banco do carona e depois contorna e entra no automóvel, indo em direção à torre. No meio do trajeto, a chuva retorna de forma bem intensa. Por conta do calmante, o editor começa a dormir enquanto a esposa presta atenção no tráfego que parecia piorar na medida em que a chuva se intensificava mais.

O editor só acorda quando o automóvel para defronte ao prédio. Já no estacionamento, a empresária deixa o carro se dirigindo para o lado do carona, o ajudando a descer. Ele olha tudo aquilo e recordando quando saiu com a perna doendo, mas o sangue fervia. O médico disse que o percurso que fez a pé pode ter agravado a lesão.

Ao perceber que o esposo estava pensando em algo e que provavelmente tinha a ver com a briga da noite anterior, Angélica pediu para que subissem. “- Vamos amor. Dentro de casa, conversaremos. Eu sei que tenho a lhe falar e a escutar também”.

Ainda se ajeitando no caminhar com a bengala, Márcio entra no elevador com Angélica e se segura no ombro dela. “-Obrigado amor”, disse baixinho o editor como quem deseja passar confiança para outra pessoa. Já dentro do apartamento, o editor volta a se sentar no mesmo local do sofá, como buscando um porto seguro, enquanto Angélica entra no quarto para colocar uma roupa mais leve.

Quando ela chega na sala, o marido está de pé, tentando ir até a cozinha pegar algo na geladeira. “- O que você quer amor? Pode deixar que eu pego para ti”. O esposo olha, dizendo que quer uma cerveja sem álcool. A empresária retornar com uma garrafa de cerveja e outra de vinho e após depositá-las em cima da mesa, ajuda o esposo a se sentar novamente no sofá.

– Não sei por onde começar, pois as confusões são diferentes, mais intensas, mas os motivos são os mesmos: meus ciúmes e minha imaturidade e dificuldade em lidar com o que sinto por ti, o casamento e a vida nova que me proporcionas.

“- Acho melhor tu iniciar pelo começo. Prometo não interromper com os meus irritantes filosofismos que tanta aversão provoca em ti”, disse o editor.

– Débora me fez uma pergunta logo cedo. Ela estava comigo nas empresas. Ela quis saber por que tenho tanto ciúmes de ti. Fez uma comparação com o irmão. No caso dele, é porque gostaria de ser como tu, mas não percebeu ainda que se se parecesse contigo, Fernanda jamais se apaixonaria por ele.

“- Sim! E daí? Chegou a algum denominador que possa ser útil para ti e o nosso casamento”, inquiriu Márcio.

– O ciúme é com relação a tudo que me proporcionas. Não é só você e o seu amor, mas a vida que me apresenta todos os dias. Amigos que não querem meu dinheiro, não desejam sair em fotos comigo e depois se gabarem para os colegas. Sua mãe ser minha amiga. Roberto e Fernanda me falaram agora depois da reunião da tarde que seu te agredir novamente, como fiz essa madrugada, os dois colocaram à disposição os cargos que ocupam. O amor que tua mãe me tem, o carinho de Débora, enfim, um mundo novo que eu descobri e achava que não existia. Eu sei que se sair de minha vida, tudo se esvai também e eu não tenho nenhuma vontade de reviver o que aquela Angélica, antes de você aparecer, vivia.

Márcio continua prestando atenção na esposa enquanto falava sobre tudo o que se passou com ela naquela quarta-feira dos infernos. “- Ontem durante o encontro com as meninas, fiquei muito à vontade. Nem parecia que eu era a ricaça, pois não senti nenhuma falsidade vinda delas. Muito pelo contrário, um carinho enorme e como se todas nós nos segurássemos. Sabe Márcio, é como se eu tivesse passado 30 anos na escuridão e do nada, me chegou uma luz que harmoniza o meu ser, mas por ter surgido sem eu esperar, pode estar me cegando. Não sei se me entende”.

– Entendo sim, amor.

– Débora me pediu para separar a nossa vida pessoal dos nossos trabalhos. E eu sei que ela tem razão. Não posso ficar interferindo na sua editora, até porque não entendo nada de publicações e qualidades textuais. Eu só compreendo de lê-lo e gostar ou não de uma história. Você não se mete em nada de minhas empresas e nem no meu escritório de arquitetura, então devo fazer o mesmo contigo.

Márcio ouvia atentamente o que a esposa lhe dizia, pois tudo aquilo parecia vir d’alma. “- Ângela foi ao escritório hoje pela manhã me pedir desculpas por ter atravessado contigo, mas ela imaginava que tu fosses um tipo de homem que não se concretizou. Me falou que a aliança que tu usas não afasta as mulheres, mas pelo contrário, as atrai. Me lembrei do que o Amadeu disse aqui naquela manhã em que viajamos para a Alemanha. Ali entendi o quanto eu estava sendo egoísta e só pensando na minha pessoa e no meu prazer e exigindo que tu fizesses sempre os meus gostos e nunca reparando no que já vinha realizando para me deixar imensamente feliz”, disse a empresária.

Quando o marido fez menção de dizer algo, Angélica finaliza. “- De modo que sei que o meu caminho é longo e espero sinceramente que esteja comigo, mas por conta das agressões que lhe desferi ontem à noite, se quiser a separação, mesmo com o coração todo retalhado, não farei objeção alguma”, afirmou a esposa com muito medo de que fosse essa a opção do marido.

– E você acha mesmo que nos separando, resolveremos todas essas questões? Tens certeza de que me deixará em paz? Não ficarás me procurando, me perseguindo na rua e por onde quer que eu vá? E se eu encontrar outra pessoa para ficar comigo, como tu reagirás?

“- Está pensando em correr para os braços dessa Alice! Eu já imaginava. Fez de durão ontem a noite só para mostrar a ela que continua o mesmo da adolescência e que podem realmente viver aquilo que não conseguiram nos dias em que morou com ela”, disse a empresária meio que entre os dentes.

– Bom! Você falou e eu escutei e não te interrompi. Gostaria que fizesse o mesmo comigo. Me deixasse falar e depois observaremos o que é possível fazer. Mas pelo que acabou de dizer, já deu a resposta que eu queria ouvir. Grato! Pelo que pude sentir, se nos separarmos, tenho certeza absoluta que dentro de uma semana, um de nós dois estará péssimo e o mundo completamente cinza e nunca mais cessará essa chuva. O outro, com certeza, estará falando sozinho pelas ruas, como o seu irmão quando o conheci.

– Isso não acontecerá contigo, pois terá os braços, a cama e a buceta dessa horrorosa Alice para te aconchegar. Agora eu sim, ficarei sem norte algum, procurando não sei o que, mas sei que estarei como bate-bate de parque e com aquela sensação de quem encontrou um belíssimo diamante, mas o perdeu na floresta do ciúme.

– Eu também! Mas está difícil ajudar esse diamante a continuar a ser belo como o encontrei e fui surpreendido por um amor incondicional, mas é a vida. Fazer o quê! Espero que essa esmeralda …

Antes de Márcio terminar, Angélica já começa a desabar em choro dizendo que tentará ser forte, mas não promete se conseguirá seguir sem o seu grande amor. “- Mas do que você está falando Angélica”, perguntou o marido.

– Ué! Da nossa separação. Você não procurou advogado hoje para tratar do nosso divórcio?

– Quem disse que eu quero me separar de você? Com o ocorrido, você percebeu onde os extremismos podem nos levar. Creio que estamos nos expondo em demasia e de maneira desnecessária. Não quero isso para o nosso amor. Posso ser um romântico tolo, como sempre diziam que eu era, mas acho belíssimo o nosso sentimento e aí quero ser egoísta, pois não desejo te dividir com ninguém. Quero viver plenamente o que sinto por ti. Ainda não consegui por conta dos nossos ciúmes.

– Amor! Quer dizer que não pedirá separação, mesmo eu tendo quase lhe quebrado a perna por conta do meu surto de ciúme.

“- Por que me separar de ti se o que eu mais quero é estar contigo todos os dias, horas, minutos, segundos até o fim da eternidade”, perguntou o esposo tentando se levantar para ir se preparar para dormir. Sabia que seria complicado ter uma noite de sono com aquela perna imobilizada.

Angélica, com os olhos cheios de lágrimas, ajudou-o a se levantar, e o abraçando, beijando disse que faria todo o esforço do mundo para que a paixão, o amor que ambos nutriam um pelo outro não saísse mais daquelas paredes. “- Amor, confia no sentimento que me tens, porque eu confio no que sinto por ti”, pediu Márcio enquanto caminhava apoiado na bengala em direção ao quarto de hóspedes.

– Por que está indo para lá, se acabou de me dizer que não vamos nos separar?

– É que não quero te incomodar na cama. Minha perna está imobilizada e não desejo ser um estorvo para ti enquanto tu dormes.

– Senhor Márcio! Deixe que eu decida. Agora venha que vou te ajudar a tomar banho. Afinal eu causei esse problema em ti.

O casal entra no banheiro e Angélica auxilia o marido a se desfazer das vestimentas e, com o maior carinho, ajuda-o a passar sabonete e esponja pelo corpo. Ela também estava nua como o marido, o que provocou ereção em Márcio. Ao vê-lo desta maneira, Angélica apenas o massageou por um determinado momento e, percebendo o quanto de prazer estava transmitindo ao marido, continuou até que ele, meio sem graça, acabou ejaculando.

Terminado o banho, o casal foi para o quarto e o editor foi auxiliado a colocar a roupa para dormir e a esposa voltou ao chuveiro para tomar o seu banho. Enquanto ela estava no chuveiro, Márcio fechou os olhos e ficou pensando em tudo, dividindo sua atenção com o barulho da chuva e do chuveiro. Recordou o momento em que a esposa lhe desferira o pontapé dentro do elevador e como mancava depois de ter andado uns dez quarteirões entre o seu apartamento e o dela.

Queria mesmo se separar dela. A agressão foi muito séria, inclusive se o copo acerta o seu rosto, poderia até ter ficado cego. Mas como fazer isso, se amava aquela doida que brigaria com o Sol se este olhasse diferente para ele. Tentou controlar as lágrimas, mas foi em vão. Sabia que se a deixasse, os dois ficariam sem chão e ele, com certeza, não encontraria outra pessoa como ela. Tinha um caminhão de defeitos, era doida, intransigente, mas quando estavam só os dois, desligados do mundo exterior, era tudo leve e duma luz encantadora.

A esposa estava de pé e em silêncio percebia as transformações que estavam acontecendo na cabeça do marido que deixava transparecer pela face que se modificava e os olhos que, mesmo fechado, possibilitam escorrer as lagrimas. Desejou profundamente saber o que se passava no interior do marido que estava provocando aquelas lágrimas silenciosas. Tentou se segurar, mas não conseguiu e mesmo sem se vestir, se deitou ao lado do esposo, dizendo baixinho no ouvido dele: “- Quer dividir comigo, o que está te maculando a alma, meu amor”.

Lentamente Márcio abre o olho, permitindo que Angélica notasse o volume de lágrimas que havia vertido. Optou por ficar em silêncio, mas percebeu que a esposa ficaria incomodada por não saber o que lhe ocorria, além de achar que ele não confiava nela. “- Queria que o mundo lá fora não existisse para não atrapalhar o nosso amor. É muito tumulto, confusão por nada. Eu quero apenas te amar. Só isso. Não tenho interesse em nada material desse mundo passageiro, mas almejo apenas seguir te amando. Será que isso é tão difícil”, perguntou Márcio deixando o choro tomar conta de todo o seu ser.

Angélica olhou ternamente para o editor, percebendo o quanto o esposo era frágil e por isso transformou sua vida num ato metódico, sendo protegido pelos amigos, aliás os três eram assim e se blindavam. Naquele momento foi como se o esposo tivesse se tornado o amigo que pedia abrigo para poder continuar amando a mulher que todos diziam ser amalucada.

Depois de refletir por alguns minutos, a arquiteta afirmou que não era nada dificultoso. Ela que estava complicando tudo porque nunca tinha sentido um amor pleno advindo de um outro ser que não desejava nada, apenas amá-la. Depois dessa fala do editor, a esposa conseguiu finalmente compreender porque Márcio adorava passar horas vendo as estrelas ou a cor laranja que o Sol usava para tingir o céu antes de partir para o Oriente.

A empresária se levantou, colocou um baby-doll e voltou para o local em que estava, deitando a cabeça sobre a região do tórax de Márcio onde ficava o coração e ficou ouvindo os batimento cardíacos dele. “- Obrigado meu amor por não desistir de nós, mesmo eu colocando em risco a sua integridade física por conta de minha imaturidade e não saber ler o seu amor da forma como musicava para a minha alma”, lhe disse enquanto o esposo lhe massageava o couro cabeludo.

O casal se desligou por cerca de três horas e foi despertado quando o esposo sentiu sede. A arquiteta o ajudou a ficar em pé, auxiliando no trajeto até a cozinha. Os dois se sentaram e enquanto o editor ingeria a água, a empresária, com os olhos brilhantes, queria fazer algo para mostrar ao marido o quanto o amava, mas apenas disse que não sairiam de casa no dia seguinte. “- Mas e seu trabalho no escritório”, perguntou Márcio.

– Faço tudo daqui e repasso para Débora, até porque é ela quem vai ficar com o projeto da Ângela. Eu não tenho condições de continuar com a conta e também a empresa não pode abrir mão desse trabalho.

– Mas…

– Não tem mais nem menos. Pararemos o mundo por 24 horas só para nós dois. Estão todos bem e quem precisa ficar assim também somos nós.

Enquanto o esposo bebia água silenciosamente, Angélica foi ao quarto pegou o celular e passou mensagens para Débora, Roberto e Tarsila pedindo para não deixar ninguém vir para o apartamento deles. Ela precisava cuidar do amor que unia os dois.

O casal retornou ao quarto, sendo que o esposo foi amparado pela mulher que, de alguma forma, se sentia outra depois de ouvir o pedido de Márcio para que ela o deixasse amá-la com simplicidade, sem muita confusão, brigas, ciúmes. O amor dos dois precisava de paz, sem a qual, não seria possível seguir em frente. Angélica ajudou o editor a se ajustar na cama e depois desligou todos os celulares. Não queria ser incomodada por ninguém.

O dia seguinte amanheceu como o anterior, com a cidade sendo castigada pelas chuvas. A empresária acordou mais cedo, deu um beijo no rosto do marido, deixou o quarto e fez pedidos através de um aplicativo. Desejava preparar um café da manhã para ele, bem como um almoço diferente. Determinou o horário que as mercadorias deveriam ser entregues e voltou para a cama.

Os dois despertaram a partir do som do equipamento eletrônico e o editor precisou ir ao banheiro, sendo ajudado por ela que não estranhava mais o jeito dele eliminar a urina. Do jeito que estava não tinha firmeza para ficar de pé, então se sentou no vaso e assim que terminou, voltou novamente ajudado por Angélica. A exemplo do que aconteceu na noite anterior, a arquiteta auxiliou o marido a tomar banho e em seguida se higienizou também.

Márcio foi para o mesmo canto do sofá como quem procurava abrigo e proteção, enquanto ela organizava a cozinha para preparar o café para o esposo. Em cinco minutos tudo o que ela havia pedido chegou e o marido, mesmo capenga, desceu com Angélica para segurar o elevador enquanto ela colocava tudo dentro do compartimento. O procedimento se repetiu quando chegaram no andar do apartamento em que o casal morava.

Depois de tudo pronto, a empresária rebocou o marido para a copa onde se alimentariam. “- Será que minha esposa pode me explicar tudo isso”, pediu o editor. “- De repente eu descobri o que estava ferrando o nosso casamento: querer complicar o que é simples. E eu só pude perceber isso ontem a noite quando te vi chorando silenciosamente porque quer apenas me amar”, explicou a esposa.

– Como é que é?

– Isso mesmo, meu marido querido. Não tinha percebido porque tu és metódico. Por mais que eu tentava entender a amizade entre você, Roberto e Fernanda, não compreendia até perceber que os três são iguaizinhos. Têm um medo danado do mundo e por isso construíram uma enorme armadura. Quando meu diretor falou que se eu te machucasse novamente, ele colocaria o cargo à disposição e Fernanda também sairia, entendi que tu faria o mesmo por eles. Eu e Danisa chegamos depois e, de forma egoísta, sem entender como funciona a mente e o coração do trio, queremos cada um só para nós. Espero que Ricardo compreenda isso mais rápido do que eu e Danisa.

“- Você a essa conclusão apenas de ontem à noite para hoje de manhã”, perguntou o esposo.

– Não amor! Ao te flagrar naquele pensamento todo como se tua alma conversasse com o seu ser material, as peças que faltavam no quebra-cabeça do nosso amor apareceram. Tu tinhas uma vida espartana e se ficar sem ela, perde até a noção de onde está. Você nunca está fora do ar, mas tem uma percepção diferente de tudo que acontece em teu entorno.

Márcio só observava a esposa, estimulando a sua fala. Queria entender o que Angélica descobriu e de que maneira essas descobertas poderiam torná-los mais felizes e sem tantas brigas por causa do ciúme que ela sente dele. “- Você me pediu para confiar no amor que me tens. Eu nunca te solicitei isso, mas surraste meu diretor não porque eu pudesse dar confiança a ele, mas justamente pelo contrário, desejava construir uma intimidade comigo que nunca teve e por ser branco e tu preto, estava enraivecido, a exemplo do que aconteceu com Rodolfo”.

Antes que o marido pudesse dizer alguma coisa, já que mastigava um pedaço de omelete recheada com bacon, Angélica explicou que havia compreendido aquela observação sobre ela e Rosângela. “- Você me disse que se eu optasse por ela, deixaria o meu caminho livre, mas não falou nada se deixaria de me amar. Provavelmente seguiria me amando em silêncio. Ontem me fez uma série de perguntas sobre uma possível separação se eu te deixaria em paz, tipo seguindo a sua vida. E aí antes de dormir, falou que não quer nada, mas apenas me amar, mas não informou se do meu lado ou separado”, explicou a esposa.

O editor colocou outro pedaço de omelete na boca, enquanto a empresária tentava fazer com que a fala acompanhasse o raciocínio sobre as descobertas que fizera desde a noite em que saiu com as mulheres da família de Márcio que agora eram também do seu núcleo de relações. “- Se nos separarmos, não conseguirei te deixar em paz, e provavelmente farei tudo o que fiz quando te achei no Pontal quando fugiu para tentar entender o que acontecia contigo e sua cabeça. Desejava ter certeza do que sentia por essa bobona aqui e imatura que se tornou sua esposa. E tentaria te achar para quê? Para viver em harmonia contigo ou ficar brigando, dando show pensando que as mulheres poderiam me roubar você, como se tua opinião não valesse nada”, desabafou Angélica, enquanto ingeria seu copo de suco.

Márcio se concentrou também em sua bebida, dizendo a esposa: “- Parece que agora está entendendo o que venho lhe dizendo a tempo. Não vou a lugar algum sem o teu amor. Você só via o que sentia e não olhava para o sentimento que estava recebendo do meu coração”.

– Ângela me disse que nenhuma mulher é capaz de ficar entre nós dois, caso eu não queira, mas preciso entender isso. Falou-me que você é um homem especial e que naquela noite achou que tu serias diferente do se apresentou para ela e que tudo poderia ser charme e elas resolveram jogar contigo, Roberto e Leônidas, mas que erraram feio. Amor, quando ela me falou isso, fiquei tão envergonhada e depois quando vi a imagem sua com a perna imobilizada porque eu te dei um pontapé, percebi a enorme cagada que tinha feito e sei que se nós nos separássemos a relação com seus amigos nas minhas empresas, ficaria complicada.

Terminaram o café nesse clima de comunhão, sem promessas, mas internamente com cada um se comprometendo evitar novos desajustes como o ocorrido naquela noite no bar. “- Amor! Não prometo eliminar o ciúme, pois ele é uma amostra-grátis que vem junto com o amor, mas tentarei ser melhor e respirar calmamente o oxigênio que seu coração me oferece a cada manhã. Novamente obrigado por esse amor que parece um átomo em plena explosão”.

Os ponteiros do relógio marcavam quase meio-dia quando Márcio lentamente se dirigiu ao sofá, enquanto Angélica organizava a cozinha. Pelo nível da alimentação que fizeram, voltariam a sentir fome apenas no final da tarde. Foi pensando nisso e olhando pela janela e observando que a chuva diminuía que o editor propôs a esposa que passassem a tarde no clube onde ela descobriu que o queria mais do que como amigo.  Angélica adorou a sugestão e em menos de meia-hora os dois estavam a caminho. A intenção era ficar um bom tempo lá, inclusive levaram até cobertores extras.

Enquanto a empresária e o editor gastavam os últimos cartuchos para fazer a relação caminhar, Fernanda e Roberto conversavam abertamente sobre o amigo. De fato, eles se pareciam muito, reservada as devidas proporções, era como se Fernanda só conseguisse andar sabendo os passos que daria caso Márcio a conduzisse e ele da mesma forma e Roberto também. “- Roberto. Se Marzinho se separar daquela dinamite de olhos esverdeados, não conseguirei ficar trabalhando aqui com ela. Não tem profissionalismo que aguente, pois ele é doido por ela e será imensamente infeliz se não estiver com aquela desmiolada da Angélica”.

– Penso da mesma forma que você, Fê. Não pensaria duas vezes e ao sair daqui solicitaria um espaço na rede de supermercados dos pais dele e tu viria comigo.

“- Do que os dois estão falando”, perguntou Amadeu.

“- De uma suposta separação entre Márcio e Angélica”, respondeu Roberto.

“- Esquece! Aqueles dois não se separam nem usando pé-de-cabra. Resta saber o tempo que conseguirão sobreviver longe um do outro. E por falar nela, nem apareceu por aqui hoje. Vocês estão sabendo de alguma coisa”, perguntou o vice-presidente.

Fernanda e Roberto se entreolharam e foi o diretor quem falou. “- Ela ficou em casa cuidando do Márcio, pois lhe deu um pontapé que precisou ficar com a perna imobilizada por uma semana”, informou o diretor. “- Mas por favor não comente nem com a sua mãe, pois isso iria parar no ouvido de Judith e a coisa ficaria pior. Deixe os dois se resolverem. Você e Tarsila estão bem porque resolvem as pelejas sem fazer alardes. Sua irmã precisa aprender a fazer isso também”, argumentou Roberto.

– Meus amigos, minha irmã se ficar sem aquele negão, desparafusa de vez. Ele apresentou uma vida que Angélica nunca teve. Eu amo aquele cara porque me ajudou a reencontrar a mulher da minha vida e sei que a Keka é a mulher da vida dele. Espero que ela acorde e pare de aprontar escândalos.

Tanto Roberto quanto Fernanda olharam para o vice-presidente como que estimulando ele a continuar. “- É como se Angélica estivesse ficado esse tempo todo no escuro e quando o mosquito apareceu, foi como se a luz chegasse toda de uma vez só e ela começou a enxergar, mas ao mesmo tempo, tem medo de abrir os olhos para vivenciar esse amor. Falei isso para o Márcio. O negão é o universo dela. Esse mundo aqui só tem sentido para ela se o Marzinho estiver do lado dela. Por isso enlouquece só de pensar em perdê-lo. Podem ficar tranquilos que não direi nada a ninguém, até porque os dois precisam crescer e resolver seus problemas juntos”, informou Amadeu dizendo que tinha que voltar para a mansão. “- Vou curtir minha negona deliciosa e a chegada de nosso primeiro filho”.

Quando Amadeu deixou a sala, o diretor olhou para a secretária lhe dizendo que tinham que ir almoçar e seguir em frente. “- Você ficará por aqui ou comerá sozinha? Se quiser pode vir e nos fazer companhia. A não ser que marcou algo com Ricardo”.

– Não marcamos nada. Ele ficou meio assustado depois do jantar na segunda-feira à noite na casa dele quando ficou de frescuras porque não iria morar no apartamento do Marzinho. Disse-lhe: se quiser ir comigo tudo bem, se não, eu vou sozinha e aí tu ficas com seu orgulho de macho idiota.

Depois disso, Fernanda aceitou o convite e foi almoçar com Roberto e na volta encontrou Ricardo que a esperava. Queria saber onde ela tinha ido e porque não o avisou. Ela nem deu trela para a cobranças dele. “- Ricardo porque não vai tomar no seu cu. Desde quando tenho que dar satisfação para homem. Se você não quer ser cobrado futuramente, então te recomendo que não faça agora”, disse a secretária, indo para o interior do prédio.

– Espero que não esteve com aquele Marzinho novamente.

– E se estive com ele, qual é o problema? Estou começando a desconfiar que tu amas mais o meu amigo do que eu. Por que não o esquece e se concentre no que realmente nos interessa. Já encontrou o terreno para sua irmã planejar a nossa casa? Aposto que não. Passa mais tempo pensando no Márcio do que realmente em me fazer feliz. Tchau. Depois eu te ligo. Fui almoçar com Roberto e Danisa, se é isso que desejava saber.

Fernanda sabia deixá-lo mais apaixonado por ela. Começou a entender porque os amigos dificultaram tanto a investida do noivo. É uma ótima pessoa, mas um tanto quanto inseguro e por isso a secretária desistiu de brigar com ele, passando a projetar a vida de casada com o noivo. Mas não podia deixá-lo querer governar a vida dela, principalmente a relação fraternal com os amigos.

Enquanto Fê se perdia pelos corredores do prédio em que funcionava a diretoria das Organizações Oliveira, Angélica e Márcio se acomodavam no chalé 38 do clube. Ao chegarem no local, desligaram os telefones para que ficassem mais à vontade, sem interferência do mundo externo. O que desejavam um para o outro não dizia respeito ao universo sexual, mas acharem um ponto que pudesse afastar do amor que sentiam um pelo outro, aquela instabilidade provocada pelo ciúme, inexperiência de Angélica e de certa forma, a imaturidade do marido também.

Os dois se sentaram numa poltrona de maneira que o editor pudesse ficar com a perna imobilizada suspensa sem sofrer incômodo algum. A chuva que tinha diminuído durante o trajeto que fizeram do apartamento de Angélica ao clube, havia se intensificado, portanto, era impossível os dois deixarem o chalé para realizar qualquer atividade, mas o esposo quis ir para o local justamente porque era possível, mesmo pela janela, vislumbrar a natureza sem aquele amontado de prédios e concretos que sempre via da janela do apartamento.

A empresária não quis dizer nada, ficando à espera de que o esposo pudesse falar alguma coisa, mas este só queria uma coisa: amá-la sem que o mundo externo existisse. Desejava apenas dar aquela mulher o que o coração e alma dela sempre buscaram: paz, harmonia, segurança e uma vivência serena com o marido.

Os dois optaram por ficarem escutando o barulho da chuva e acabaram pegando no sono. Despertaram quase duas horas depois com o barulho de uma trovoada e o clarão feito por um raio. Ela se levantou dizendo que prepararia um chá para os dois e o editor, fazendo um pouco de esforço, se dirige à janela para ver a pequena floresta que crescia ao fundo do chalé que Angélica escolheu para eles.

A arquiteta lhe entregou uma caneca, fazendo uma pergunta que estava com ela já algum tempo. “- Márcio! Se Ângela ou Alice aparecesse na sua frente, completamente nuas e se insinuando para ti, você iria até os finalmente com elas?”

– Primeiro: o corpo de Alice eu conheço porque moramos juntos e não me despertou nenhum interesse. Quanto a Ângela, ela teria que me oferecer muito mais do que o corpo e uma transa. E, por fim, porque eu cederia aos encantos delas se eu tenho tudo aqui comigo?

– É que fiquei pensando…

– Pare de pensar e me responda: por que está comigo? Sei que não sou o suprassumo em beleza, não tem ambição e nem status para lhe oferecer.

– Olha só! Eu passei a minha vida achando que sempre compraria as pessoas, o amor, tudo o que o dinheiro poderia adquirir, porém, nada que possuo seria capaz de me transmitir a paz que sinto quando estou contigo. Eu me sinto segura em relação a ti. Foi difícil entender isso, até que Ângela e Débora me falaram tudo aquilo, me mostrando um homem que o meu ciúme e egoísmo não me deixavam ver. Contigo me sinto plena. Tem algumas coisas aqui dentro que ainda precisam ser equacionadas e sei que posso ter umas recaídas, contudo, agora eu sei que tu não deixarás de me amar.

– Amor! Às vezes passamos a vida procurando algo sem saber ao certo o que é, mas só vamos saber quando esse algo surgir diante de nós. Também pude compreender muitas coisas contigo, inclusive a minha tentativa de casamento. Acho que não amava Márcia, mas queria apenas dar uma resposta ao meu pai por conta de nossas brigas.

– Você está querendo me dizer que eu sou o seu primeiro amor?

– É! Acho que é, pois seguiria em frente te amando, mesmo tendo como companhia apenas uma foto sua na carteira e na lembrança aquela mulher que eu conheci num domingo chuvoso em que eu estava ressacado exalando a bebida e solidão.

Ouvir aquilo da boca do esposo foi como se o coração de Angélica tivesse sido iluminado pelo raio que tinha acabado de cair próximo do local em que estavam. Ela beijou o marido com carinho, paixão, amor e muita amizade. A partir dali começou a entender a relação do irmão com Tarsila e por que Amadeu tinha ficado desparafusado, bastando a esposa estar com ele para as coisas começarem a entrar no eixo e ela, ao descobrir toda a dor que o marido sentiu naqueles últimos cinco anos, não querer deixá-lo mais.

Enquanto a empresária abraçava o editor, este percebeu que a temperatura dela se elevava, sentido ao mesmo tempo que os pelos do braço ficavam eriçados. Mesmo sabendo que a perna limitava seus movimentos, Márcio foi avançado e Angélica se soltando em seus braços e os olhos ficando cada vez mais esverdeados. Ao passar as mãos pelas nádegas da empresária, essa mordeu levemente os lábios do marido enquanto lhe acariciava o membro que ficou mais excitado com os movimentos que a esposa fazia, esfregando lentamente a região da vagina no ponto entumecido das vestes do esposo.

Lentamente, porém sem deixar cair o tesão, o casal se ajusta nas poltronas e acabam de tirar as roupas e fazendo um amor bem diferente do que até então vinham realizando. Era de uma entrega singular, em que nenhum dos dois queria chegar logo ao clímax. Márcio desejava sentir os lábios vaginais da esposa devorando o seu membro e ela que todo o pênis dele se alojasse dentro dela numa sincronia perfeita e, desta forma, juntos o casal gozou, acabando por dormir de forma que os corpos se protegiam do mundo lá fora.

Despertaram quando a noite já começava a ser anunciada. As estrelas que imaginavam clarear os sonhos do casal foram substituídas pelos raios que cruzavam os céus, indicando que o dia terminaria como iniciou: chuvoso. A dupla se entreolha se percebendo nua, compreendendo o que havia acontecido. Os dois corpos ficaram dentro do chalé, mas as almas com certeza estavam em outro lugar. De olhos bem esverdeados, Angélica beija o marido e num impulso o auxilia a se vestir e em seguida se arruma e, observando que a tempestade havia cessado, disse ao esposo: “- Amor! Vamos. Preciso preparar o nosso jantar, já que o café da manhã foi equivalente ao nosso almoço”.

Márcio concordou, saindo junto com ela do chalé, mas ficou esperando ela se aproximar mais com o carro para entrar no automóvel do lado do carona. Já dentro do carro, a dupla sentia uma leveza bem diferente e foi o editor quem abordou esse sentimento. “- Angélica, estou me sentindo tão leve quanto naquela tarde em que dormimos no quarto do hotel e você arrastou a sua cama para junto da minha. Creio que estejamos começando uma nova etapa de nosso relacionamento”.

– Também me sinto assim. Então guardemos só para nós dois.

Ela liga o carro, o manobrando para deixar as dependências do clube e de soslaio observa que o esposo estava com a cabeça no encosto do banco com os olhos fechando, indicando que provavelmente caminhava pelas estrelas que, em virtude do tempo chuvoso, estavam encobertas naquele começo de noite. Angélica pensou em perguntar, mas entendeu que o melhor era deixá-lo assim. Era o jeito dele se comunicar com o seu eu mais profundo, aquele que era doido de amores por ela.

Ao parar o veículo por conta do farol, a empresária aproveitou e tirou uma das mãos do volante e apertou firme a do marido que, mesmo estando de olhos cerrados, correspondeu ao toque dela, indicando o diálogo que sua matéria vinha tendo com a alma. Quando a avenida estava livre para que o carro continuasse seu trajeto, o editor olha para a arquiteta e lhe pergunta: “- Observou como é tão simples me amar? É assim que te amo, com essa simplicidade. Amanhã voltamos ao trabalho e a serenidade dará a tônica do nosso relacionamento. Quando você está longe, eu fico ansioso para te ver novamente”.

– Amor! Comecei a perceber isso ontem a noite quando me disse em forma de pergunta e um pedido: te deixar me amar com simplicidade. Confesso que não estava vendo o seu sentimento e acho que era essa cegueira que me dominava e eu só enxerga o medo de te perder sem, no entanto, sentir o amor que me tens. Obrigado por me ensinar novamente a te amar.

Enquanto Angélica prestava atenção no trânsito, o marido colocou uma música para o casal e a primeira que inunda os alto-falantes do automóvel dizia que quando um coração cansado de sofrer encontra outro que também esteja calejado da dor, pode surgir um novo amor*. Mesmo forçando o corpo, o editor beija a face da esposa que estremece toda por conta do carinho contido naquele singelo gesto de amor que o marido lhe deu.

Assim que o casal ingressa no estacionamento do prédio, a chuva volta a ser intensa, assim como o amor entre Márcio e Angélica prometia ser dali para adiante. Pelo menos era o que as almas diziam uma para a outra, se prometendo influenciar a sua manifestação material para fazer o ser amado, feliz, reduzindo a ciumeira toda, amadurecendo para que os dias futuros fossem mais de paz, harmonia e menos discussões infundadas. Dentro do elevador, como quem escuta o comando da alma, Márcio abraça a esposa dando-lhe um beijo de pura paixão, sendo correspondido pela parceira. Desta forma, entraram na residência  .

 

*Esse é o sentindo dos primeiros versos da música Caminhos Cruzados, interpretado por Milton Nascimento. A composição é do maestro Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça

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