Ainda as querelas raciais

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Existem temáticas que, por mais que se escrevam sobre elas, se realizem fóruns, debates, serão sempre atuais. Então qual seria a interpelação que nortearia o diálogo de hoje? Entre tantas que poderiam referenciar as linhas que se seguem, escolhi a querela racial por ser ela emblemática, produtora de xenofobias de todas as estirpes e justamente por ser o problema escudado mais no âmbito econômico e produtivo e, por conseguinte, recheando o universo da violência simbólica. O psiquiatra martinicano Frantz Fanon [1925-1961] escreveu várias obras sobre o assunto, levando em conta a sua realidade, entretanto, o conteúdo não se detém à Martinica e a Argélia – redutos franceses -, mas de um modo geral a todos os indivíduos, pois o racismo é um fenômeno social, portanto, que se repete. Neste sentido, sempre estará na mira dos cientistas sociais que buscam constantemente sua compreensão e, quiçá o desejo de apresentar alternativas e saídas para as problemáticas, tomam para si a causa. Desta forma, no livro “Por uma revolução africana: textos políticos”, o autor diz num determinado momento de sua enunciação que “toda as vezes em que um homem fizer triunfar a dignidade do espírito, todas as vezes em que um homem disser ‘não’ a qualquer tentativa de opressão do seu semelhante, sinto-me solidário com seu ato” [RJ: Zahar, 2021, p. 10]. Eis aí, meus caros leitores, o sentido da militância.

Somente com esse excerto, é possível construir uma significativa reflexão sobre o assunto, especificamente no que diz respeito à problemática no Brasil. Entendo que apenas o substantivo feminino opressão, contido no fragmento, permite ao ser, portador de determinada sensibilidade social, olhar com a devida acuidade sobre o presente herdado do colonialismo e os mais de três séculos de escravidão e opressão de um povo que não se deslocou, por vontade própria do seu território além-mar, para vir ao continente recém-encontrado pelos europeus. Sendo assim, não é possível aceitar, minimamente, a condição dos africanos escravizados e seus descendentes. É significativa a abordagem feita pelo pensador francês Éttiene de La Boétie [1530-1563] no livro Discurso da servidão voluntária, segundo a qual, o sujeito aceita o servilismo por diversas situações, entretanto, nenhuma delas se asseveram às condições de homens, mulheres e crianças seviciadas por mais de 300 anos em solo brasileiro, tudo em nome da economia, como muitos dizem hoje querendo, descaradamente, salvar o seu quinhão financeiro, lançando na briga com essa pandemia aqueles que possuem condições inferiores de subsistência. Quando do fim do escravismo no Brasil, o debate foi semelhante e a saída foi o governo imperial e, posteriormente o republicano, financiar a chegada de imigrantes, enquanto o ex-escravo era empurrado para a nova senzala: os casebres, cortiços, palafitas e barracos, como bem retratou o escritor Aluísio Azevedo [1857-1913] em seu romance O cortiço e retratado posteriormente pela escritora Carolina Maria de Jesus [1914-1977] em seu contemplado Quarto de despejos.

No passado brasileiro escravagista, o algoz era o capataz, personificado no homem-livre, conforme nos apresenta Maria Sylvia de Carvalho Franco no seu significativo trabalho Homens livres na ordem escravocrata, que, recebendo ordens e desejosos de ascender socialmente, mesmo dentro da propriedade rural onde eram agregados, não mediam esforços em agradar seus senhores, desferindo nos lombos dos pretos mais do que os açoites definidos pelos escravagistas. Finda o escravismo, para onde foram os açoitadores e o dorso do africano alforriado por determinação da Regente Isabel que, na manhã de sábado 13 de maio de 1888, colocou fim às sevicias que os descendentes de africanos sofriam? Interessante notar que a Lei mudou o quadro econômico, todavia, não alterou o passado que se faz presente na atual conjuntura brasileira, sobre a qual muitos cientistas sociais, entre eles este que vos escreve meus caros leitores, se debruçam para entender esse fenômeno social na contemporaneidade desta Nação. Cabe aqui um significativo olhar machadiano, segundo o qual, não basta mudar as leis, faz-se necessário alterar os hábitos e ela só pode acontecer no campo educacional. Mas como isso será possível se a sociedade se encontra de costas para o setor?

Olhem só que ainda não passei do substantivo feminino opressão. Quem é o opressor do presente? Nas mãos de quem está o chicote de outrora que fazia sangrar o lombo do preto, castigado por não aceitar ser escravizado, humilhado, assistindo sua família ser destroçada, sua cultura ser vilipendiada e forçada a aceitar crenças religiosas que não faziam parte de seus processos formativos enquanto indivíduos sociais? Entendo que seja significativo abordar a questão sob a perspectiva do filósofo inglês Thomas Hobbes [1588-1679] apresentada em seus livros Do cidadão e Leviatã. Nessa segunda obra, o pensador trabalha com a perspectiva se encontrar uma resposta para a formação do Estado, um ente capaz de equilibrar as pelejas sociais. Karl Marx (1818-1883) vai dizer séculos depois que essa entidade, sempre tenderá a puxar o dial para o grupo que está no poder. Para o sentido da minha reflexão de hoje, entendo que o olhar hobbesiano seja significativo porque indica que, quando um homem é agredido violentamente em sua condição humana, só lhe resta se defender, usando os recursos que possuem, ou seja, a própria violência recebida. Se voltarmos aos tempos da escravidão, entender-se-á os requintes de crueldade contidos nas punições determinadas pelos escravagistas e aplicadas por juízes sem togas e soldados sem armas, usado apenas o açoite e o sadismo. Só objetivando atualizar a questão posta até aqui, meus caros leitores, é sempre bom reforçar a situação, segundo a qual as balas perdidas, por esse Brasil afora, sempre encontram um corpo preto.

Seria o açoite pretérito a hermenêutica jurídica do presente? Uma magistrada do Paraná, em sua sentença, não escondeu o seu racismo ao aplicar a lei, justificando que o criminoso só se tornou como tal em virtude da tonalidade da pele. Quantas dosimetrias não foram aplicadas por ela usando essa regra dos tempos da escravidão? Claro que o pensamento dela não é isolado, se fosse o país não estaria passando por um momento tão complexo provocado pela pandemia e muitos defendendo um estado beligerante, semelhante ao regime de exceção que deu as caras por aqui entre 1965 e 1988. Claro que a República brasileira, em seu nascedouro, assim como a Constituição de 1988, conseguiu através dum bailado semântico acomodar os nobres de outrora e os torturados escondidos na pecha de defensores do nacional em detrimento daqueles que defendiam ideias mais universais como as contidas no lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Há ainda o elemento fundamental do ideal libertário: “não concordo com o que dizes, mas defenderei eternamente o direito de dizeres”. Na Constituição Brasileira, a manifestação do pensamento é livre, todavia, querem distorcer esse item, crendo que podem, quando contestados legalmente pelos fatos dos quais participaram. Autoridades tentam desvirtuar a verdade, atacando a honra de profissionais, principalmente da imprensa. A situação é tão complexa que existem aqueles sujeitos que, mesmo tendo certo nível de conhecimento, acreditam nessas aleivosias viciadas pelo desejo de se manter no poder, buscando avidamente se tornar um autocrata. Coisas de um Brasil colonial, estamental que ainda grassa pelos mais de oito milhões de quilômetros quadrados que formam o território nacional.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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