Gilberto Barbosa dos Santos
Nesses momentos pandêmicos, vos faço uma pergunta, meus caros leitores: o que a sociedade precisa? De pensamento ou de meramente reprodução de algo pensado preteritamente? Lógico que responder a essa significativa interpelação pode nos levar – aí eu me incluo nesse exercício – a pensar sobre o passado e o que nos legou enquanto presente, além do que almejamos para o amanhã. Entendo que os saudosistas e os que se dizem conservadores desejam que o pretérito se materialize na atualidade mesclando com os avanços tecnológicos que temos. Mas será possível que uma sociedade colonial e suas mentalidades, por exemplo, a brasileira, tenha espaço em pleno Terceiro Milênio? O tronco foi abolido naquela manhã de sábado, 13 de maio de 1888 e a Monarquia, em consequência da Questão Servil e outras questiúnculas e querelas religiosas, deixou de existir também numa madrugada de sexta-feira para sábado 15 de novembro de 1889. Da mesma forma como ainda temos mentalidades presas àquele distante ontem, é possível encontrar outras tantas que acham que o golpe militar de 1964 colocou o Brasil no eixo e por isso vociferam um AI-5. Esse tipo de postura se evidencia quando o sujeito diz que “na época dos militares isso e aquilo”.
Se apertá-los é capaz de as memórias irem parar nos tempos em que os capangas, homens livres matavam, mudavam as cercas de lugares para dizer que as terras pertenciam a determinados “coronéis”. Vitor Nunes Leal (1914-1985) em seu clássico do pensamento social brasileiro Coronelismo, enxada e voto, nos apresenta querelas como essas e de maneira didática. Sendo assim, se o desejo de muitos é a manutenção do passado, posso entender que seja o anseio de que as desigualdades sociais que encontramos hoje sejam fruto desse passado tão desejado por essas pessoas. Por que o anseio de que o patriarcalismo rural seja mantido, a exemplo do que sempre foi retratado na maioria das obras ficcionais de Jorge Amado (1912-2001)? Num romance contemporâneo, o escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) relata uma situação interessante numa estância nos pampas. Um funcionário foi falar com o patrão estancieiro sobre as condições em que vivia, inclusive solicitando melhoras no salário. Bastou o trabalhador levantar a cabeça para dialogar com o seu empregador, que levou um murro no rosto e um berro dizendo que jamais deveria falar com alguém superior olhando-lhe no olho. Isso é ficção, mas provavelmente deve ter acontecido na vida real, pois conforme nos diz Aristóteles em seu livro Poéticas: o historiador escreve sobre o que aconteceu e o poeta diz sobre aquilo que poderia ter sido, contudo, com base em acontecimentos pretéritos. Outro que trabalha o seu cotidiano de maneira ficcional é Machado de Assis (1839-1908) – mas sobre este já escrevi bastante, então não vou me deter em suas enunciações para não agastar os leitores que me acompanharam até esse segundo parágrafo.
Se o que foi narrado em Eu vos abraço, milhões tem uma base histórica, como seria essa relação no atual cotidiano? Creio que o enredo, enfocando o Brasil na década de 20 do século passado pode dizer muito sobre essas mentalidades que desejam a manutenção do pretérito. São saudosistas e querem que tudo fique como dantes, talvez em virtude da manutenção dos privilégios aferidos desde a chegada da Família Real Portuguesa em 1808, quando o Estado Brasileiro passa a ser organizado, não como vontade do povo – aliás, com uma massa escravagista, como poderia se pensar uma Nação livre e com cidadãos de fato? -, mas sim como almejava a nobreza escorraçada dos limites de Portugal pelas forças napoleônicas. Creio que muitos dos que me leem tentam entender porque essa exaustiva explicação sobre o passado. Eu explico meus caros: muitos dizem que o pretérito é coisa de museu, entretanto, vira e mexe escutamos aqui e alhures a expressão “porque nos tempos dos miliares era isso, era aquilo”. Entendo que cada um almeje viver no tempo que melhor lhe apetece, todavia, não se pode negar o presente querendo reconstruir o ontem aplaudindo autocratas que se comprazem com torturadores e líderes antidemocráticos. Não é possível com a quantidade de mortes que o país registra diariamente fingir que isso faz parte do processo de moer seres humanos. Ao raciocinar desta forma, faz com que muitos se perguntem: para quem os sinos dobram? Numa democracia consolidada e com cidadãos de fato, talvez o quadro não fosse tão dantesco, ou pelo menos os líderes políticos não estariam apenas pensando no próximo pleito [2022]. Isso ocorre, conforme nos explica Guilhermo O’Donnell (1936-2011) por conta de a nossa democracia ser delegativa e pouco participativa.
Sendo assim, me atendo ao título dessa reflexão, vos interpelo meus caros leitores, por que pensar é tão complicado? Por que é tão penoso raciocinar? E por ser tão trabalhoso é que as pessoas preferem reproduzir e essa mera reprodução técnica como dizia Walter Benjamin (1892-1940) está sempre pautada pelo pretérito e nunca a partir de uma visão de mundo que tenha como pressuposto o desejo de se viver numa Nação em que o trabalho, seja ele de qual natureza for, tenha o seu devido valor. Entendo que a não valorização da atividade laboral é um forte resquício colonial, em que a maioria dos lisboetas que vieram para cá fez fortuna arrancando o couro dos escravos com severos açoites, como se estes fossem obrigados a aceitar as condições lhe impostas por mercadores e caçadores de pessoas: uns instalados na Europa e donos de embarcações mercantis e outros nas costas africanas no lado do Oceano Atlântico. Por que desejar o ontem se podemos construir um futuro mais harmônico, mais solidário? Talvez o veto a uma sociedade mais igualitária esteja justamente no fato de que não se poderá vangloriar das coisas materiais que se possui, independentemente da maneira como esses penduricalhos foram adquiridos. Será que não advém daí a complacência de grande parte dos brasileiros para com os corruptos, principalmente aqueles que chegam ao topo da estrutura social e econômica por intermédio de eleições, muitas vezes, semelhantes àquelas “a bico de pena”, conforme Machado de Assis denuncia em algumas de suas enunciações?
Não sei ao certo, meu caro leitor – estou no singular, pois não sei quantos me acompanharam até aqui – até que ponto a sociedade pode suportar ser extorquida pelo rol de plutocratas que se compraz com uma elite burocrática e aristocratizada afeita ao enriquecimento ilícito sob o auspício e beneplácito daqueles que interpretam as leis e conseguem mudar uma vírgula para transforar um crime de lesa majestade para apenas numa tentativa. Novamente é interessante retornar ao Brasil Colonial quando aqui ainda era Terra quase que virgem e os atos corruptivos, conforme nos apresenta a historiadora Lilia Moritz Schwarcz em sua obra Sobre o autoritarismo brasileiro, eram aceitos pela Metrópole, desde que o quinhão destinado à Coroa fosse mantido. Ou seja, não interessava se homens foram comprados, superfaturadas obras, desviados tantos quilos de ouro, pois o mais importante era o quinto destinado à metrópole. Daí a expressão “quinto dos infernos” – na época se dizia: “vai cobrar esse quinto nos infernos”. Tem-se ainda a expressão “santo do pau oco” que ainda vigora entre nós, porém, sem que muitos compreendam sua gênese. Enfim, entendo que pensar é mais significativo do que reproduzir, principalmente no campo das ideias quando se tem alguém que esteja no comando afirmando que o jeito que ele entende é o correto e quem pensa diferente, é estranho no ninho e, por mais capaz que seja, não é interessante mantê-lo objetivando o progresso e o futuro da Nação. Melhor é manter como fora outrora. Esse é o Brasil do século XXI que deseja, sonha com autocratas que garantam pão e segurança.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.