56
Durante o trajeto do clube até o apartamento de Márcio, este percebeu que havia um carro que insistentemente aparecia em seu retrovisor. Ele avisou Angélica, que deu uma olhada e não viu nada. Tempos depois, o jornalista tornou a visualizar o mesmo veículo, tentou ver a placa, mas observou que a mesma estava encoberta. Relatou isso a arquiteta, que não viu, mas lhe afirmou que prestaria atenção. Assim que o automóvel voltou à sua vista, a irmã de Amadeu pediu para o carona anotar o número da placa, cujo plástico havia caído.
De posse dos números, Angélica acessou seus seguranças que checaram a placa e descobriram que era clonada. Do nada, o carro desapareceu, mas deixou Márcio com a pulga atrás da orelha. Angélica, em forma de desabafo, disse para si mesma que podia jurar que o carro era semelhante ao de Rosângela. “Não pode ser! Ela não estaria me seguindo”, pensou um pouco alto de mais.
– Quem está te seguinte?
– Ninguém, Márcio. Acho que é impressão minha.
Chegaram defronte ao prédio em que o repórter residia. Quando este fez menção em sair do carro, a arquiteta pegou em sua mão. O repórter olhou a dentro dos seus olhos e viu em sua mão esquerda a aliança, como a lembrá-lo que não deveria passar da conversa, o campo era minado com muitos explosivos. Melhor se conter.
– Márcio! Não precisa fazer o relatório esta noite não. Diga-me como vai ser amanhã. Quero apenas saber quem essa mulher que virou o juízo do meu irmão.
– Se eu disser, você e seus familiares podem estragar tudo. Inclusive ser agressivo com ela, como já foram antes.
– Como assim? Não estou sabendo de nada!
– Não deveria te falar nada, pois prometi a Tarsila, mas como eu vou embora daqui e, pelo que ela me disse, também irá depois de resolver tudo isso. Então acho que posso lhe confiar isso, desde que me prometa que não vai mover uma palha para intervir no meu plano.
– Está bem! Não farei nada, desde que isso traga Amadeu de volta.
– Claro que sim! E acho que vou precisar de seu auxílio.
– Como?
O repórter explicou direitinho o que tinha pensado. A primeira ideia era leva-la para um restaurante neutro e almoçarem. Em seguida, ela chegaria com o irmão no mesmo estabelecimento. Contudo, essa ideia furou, porque Tarsila disse que quer falar com Amadeu no Bar da Net às 19h. Explicou que o lugar é seguro e sabe que terá seguranças disfarçados de frequentadores. Sendo assim, eu estarei lá com Amadeu. Ela entra, senta, conversa com ele, lhe explicando as razões do sumiço e por que desaparecerá novamente, inclusive que deixará o país.
– Tá! Vocês vão fazer isso. Ela vai embora, você some no mundo e eu fico com o meu irmão mais desmiolado ainda? Ou você acha que do nada, os parafusos dele vão voltar para o lugar só porque essa doida apareceu, explicando as razões de seu sumiço e cai no mundo sem deixar pistas alguma? Negativo. Se for desta forma, não vai acontecer nada. Não vou deixar Amadeu desprotegido assim. É capaz de se jogar na frente de um carro. Nunca. Pode tirar o seu cavalo da chuva, Márcio.
– Porra! Mulher! Espera eu terminar. Esse horário é o que Amadeu costuma deixar o bar. Às 18h30, estarei lá com ele conversando sobre xadrez ou qualquer coisa que na hora me vier na cabeça. Ela me enviará uma foto dela para eu saber quem é. Pedirei ao Amadeu para me esperar enquanto vou ao banheiro. Saio do prédio, encontro ela, a levando para dentro do bar. Ela senta e conversa com seu irmão. Não vai ter perigo dele sair, porque vou dar corda para o assunto. Você sabe que ele é metódico. Então, às 19h, deverá sair, mas acho que não irá sozinho.
– O que você pretende? Chamar enfermeiros do hospital psiquiátrico? Nem pensar! Não quero meu irmão naquele antro de dementes. Ele não está louco. Apenas com os sentimentos em desalinho. Você não viu o rosto da Tarsila?
– Não! Conversou comigo no escuro e me fez ficar sentado num banco da praça de costas para ela. Angélica você sabe que seu pai jogou um monte de dinheiro na cara dela, dizendo que era o suficiente para comprar bananas pelo resto da vida?
Ao ouvir a revelação de Márcio, Angélica ficou em silêncio e os olhos começaram a perder o brilho. O repórter não conseguiu entender se ela sabia, mas escondeu isso o tempo todo ou se também foi pega de surpresa.
– Bem. Tarsila me disse que o seu irmão é um homem especial. Sensível, um poeta que até parece ser mulher de tanto que conhece a alma feminina. Falou que o ama muito e se afastou por isso. A condição dos dois não deixariam nunca serem felizes. Os tentáculos da sua família iriam sempre atrapalhar. Seu pai comprou a livraria por que descobriu que ela trabalhava lá. Só fez isso para mandá-la embora. Isso é muita crueldade com um ser humano.
– Isso eu não sabia! Minha mãe me disse que a aquisição e o fechamento for por achar que os livros e o local tinham entortado a cabeça de Amadeu.
– Pois é! Ela mentiu! Ou teu pai mentiu a ela. A verdade é que seu Jocelino humilhou Tarsila por ela ser preta. E olha que eu não acho que ela mentiu. Penso que não teria necessidade para tanto. Falou ainda que estava, mesmo de longe, cuidando do seu irmão.
Márcio acrescentou: “- Então eu acho que nem você tem a dimensão exato do tamanho do braço e do caráter do seu pai. Desculpe-me, é seu pai. Eu não o conheço e por isso desconheço as razões para agirem desta forma, contudo, não se pode atropelar uma pessoa, agredi-la por conta da cor de sua pele. A violência praticada contra Tarsila é em função de sua condição e afeta todos nós pretos, indistintamente. Em virtude disso é que te falei ainda a pouco que, quando entro num lugar, muitas vezes é somente para resgatar a minha alma que habita um corpo preto. O local está com clima poluidíssimo e repleto de ignorância branca”.
Angélica não disse nada. Permanecendo em silêncio, enquanto o repórter continuava com suas observações sobre a mulher desaparecida e suas razões e também em relação ao irmão dela. “- Ele não deu conta de viver num ambiente em que o ar é completamente poluído pelo racismo”, sentenciou Márcio, enquanto a arquiteta apenas anuía com a cabeça e olhar em prantos.
– Às vezes nos pedem para amar em silêncio, quando o que mais queremos é gritar aos quatro cantos do mundo totalmente o contrário. Mas, e daí? Adianta berrar, falar? Não! Melhor é entender o que sente e cultivá-lo, mesmo que esse amor seja dirigido a uma pessoa que você sabe que jamais compartilhará fisicamente esse sentimento. Às vezes dói um pouco, ou muito, saber que se é correspondido e por uma razão qualquer, não se pode vivenciar esse singelo sentimento. Eu entendo Tarsila e o seu irmão. E sei que jamais voltará com seu irmão nas condições sociais impostas pela sua família. Para ela, Amadeu será sempre uma estrela que, mesmo em noites chuvosas, brilhará, nem que seja através dos raios e os trovões serão os sons dos dois corpos fazendo um amor celestial. O gesto dela é belo e muito sublime. Abrir mão de viver o amor por saber que as tormentas seriam maiores. Seus pais não vão dar trégua para os dois. Seu pai, assim como você, se recusa a ser contrariado e fará de tudo para prejudicá-los, principalmente Tarsila.
– Obrigado Márcio pela noite. Aprendi muito com você. Talvez muito mais do que nesses meus 30 anos. Tive namorados e namoradas e nunca senti nenhum quantum de paz que sinto quando estou contigo. Embora tenha me jogada na cara tudo o que a minha família é e ter doído muito mais do que o tapa que eu lhe dei, tenho vergonha de, com todo o dinheiro e poder que tenho nessa cidade, não conseguir mudar as pessoas que mais amo neste mundo: meus pais. E por mais que eu pense, não vejo como isso seja possível.
Em seguida à fala de Angélica, se fez entre os dois um silêncio sepulcral, quebrado pelo som de um automóvel que vinha em alta velocidade, reduzindo a velocidade quando chegou perto do carro de Angélica. Era o mesmo carro que estava seguindo os dois. Tanto a arquiteta quando o repórter se assustaram e ficaram boquiaberto quando a pessoa do lado do carona, usando o vidro estampou um cartaz em que se lia: “Tá louquinho para comer a galega seu chifrudo!” E o motorista arrancou em seguida. Angélica ficou estarrecida, porque reconheceu a letra do bilhete e o carro, embora não tivesse a placa traseira, com certeza era o de Rosângela. Não disse nada para Márcio, optando por ficar em silêncio.
Refeitos do susto e da vergonha, ambos se despediram com Angélica pedindo para Márcio conversar com ela no período da tarde do dia seguinte. Não deixaria o irmão sozinho durante o encontro. O repórter pediu para que ela o aguardasse um minuto. Buscaria a chave extra para que a arquiteta passasse à servente do seu escritório que faria uma faxina em seu apartamento no dia seguinte. Quando descia para entregar a chave, o jornalista se lembrou do que Tarsila lhe disse. “Mas por que me preocupar com isso. Até o final de semana estou fora desta cidade!” O repórter entregou a chave para a arquiteta, dizendo que deixaria tudo pronto para que a empregada pudesse limpar o local.
A irmã de Amadeu seguiu para o seu apartamento. Fez as devidas ligações e percebeu o quanto a sua esposa sabia de coisas que ela havia dito como numa troca de confidências e agora estava usando para machucar pessoas próximas a ela. Angélica acreditava que tinha dedo de Rosângela no sumiço da moça. Só não sabia ao certo qual a ligação entre as duas. Assim que Márcio lhe mandasse a foto, averiguaria direitinho e chegaria ao encontro munida para colocar essa mulher no seu devido lugar.
Assim que entrou no apartamento, observou que a esposa ainda não havia chegado. Olhou para as malas que tinham ficado na sala. Entendeu que era hora de colocar um fim naquilo tudo e tentar recomeçar a vida de alguma forma. Mesmo não sabendo por onde. Enquanto se banhava, percebeu o quanto era infeliz e incapaz de colocar uma ordem no seu mundo, pois o dinheiro, o poder, a ganância, a cobiça e o status social vinha em primeiro lugar e isso só a tornara infeliz. No começo era interessante e delicioso perceber como ter o poder sobre as outras pessoas, mas com o passar do tempo, entendeu que ser temida era o pior dos sentimentos que uma pessoa poderia atrair para si.
Ao sair do banheiro, estava só com o camisão que usava quando foi surpreendida por Márcio no café da manhã. Se encaminhou para a sala e viu Rosângela sentada no sofá. Estava longe, em algum lugar que amor nenhum conseguiria entrar. Angélica foi até ela e sem alarde, sem ira, apenas lhe disse.
– Deixe a chave do carro aqui no apartamento. Espero que ele esteja com as placas certas. Amanhã de manhã te levo ao aeroporto com o meu carro. Se não couber essas malas todas dentro dele, chamamos um taxi. Não quero você em meu quarto hoje. Por favor, durma no compartimento dos hospedes. Boa noite.
Ao terminar de dizer isso, a arquiteta se levantou, dirigindo-se para o quarto. Fechando-o por dentro. Não deixando chances de Rosângela se quer se explicar. A sua fala indicava que sabia quem estava no carro e porque fizera aquela cena abjeta. Deixou-se cair na cama e chorando copiosamente, não parava de se perguntar como fora tão idiota em não perceber quem realmente era Rosângela. Uma pessoa sem escrúpulos que não media esforços para estar no topo da pirâmide, seja em que instituição social fosse. Sentiu-se usada em sua intimidade, ultrajada. Agora entendia a dor e a ferida que Márcio carregava consigo e o quanto ela tinha sido baixa ao contar para certas pessoas aquela narrativa para forçá-lo a atender seus mandos: trazer o irmão de volta. “É! Ele conseguiu, mas pagou um preço enorme. Entendo porque não quer ficar mais aqui na cidade. Não sabe quantas pessoas conhecem o seu segredo!”
Depois de chorar bastante e se perguntar um milhão de vezes sobre o sentido de tudo que fez até ali, Angélica mandou uma mensagem de texto a Márcio. “Meu caro Márcio, te peço mil desculpas por tudo que lhe causei. Queria tanto que meu irmão voltasse para a nossa família, que não me preocupei com as outras pessoas. Você realmente tem razão. Não sou diferente dos meus. Sou egoísta. Só pude perceber isso agora a noite e entendo que o expus a uma situação vexatória para satisfazer, aos olhos de muito, um capricho meu. Mas sei que para você não é capricho algum, mesmo minhas atitudes tendo o virado do avesso, expondo um segredo e uma história que sangra dentro de ti. Espero sinceramente que um dia me perdoe. Beijos. Angélica”.
Márcio visualizou a mensagem. Ficou emocionado por que sabia que não eram meras palavras jogadas ao vento e partia, não de uma linda mulher trintona, mas de um ser que estava começando a olhar para dentro de si em busca de algo que a fizesse feliz. O repórter sempre entendeu que não se pode buscar fora quando não se sabe o que lhe falta. “Quando o humano tiver consciência do que lhe está ausente, encontrará as ferramentas para encontrar e depois compartilhar o que achou. Talvez as dificuldades de Angélica”, pensava Márcio enquanto procurava uma forma de responder sem ser excessivo, meloso, mas simples e objetivo, “seja mesmo o excesso e como todo mundo a enxerga: um caixa-eletrônico. O seu meio social a fez ter uma visão obscura, obtusa e enviesada das pessoas”.
O repórter pensou, pensou e respondeu: “Tudo bem dona Angélica. Eu a compreendo. Seu pesadelo está prestes a terminar. O meu, creio, só quando deixar essa cidade. Abraços. Tenha uma excelente noite de sono. Márcio”. Enviou a mensagem, virou do lado e dormiu.