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Após o banho, Márcio decidiu que não faria nada. Dormiria a tarde toda ou até quando o sono durasse. Regulou sua televisão para um canal que só tocava jazz e se deitou no sofá. Enquanto estava em vigília, a imagem daquela mulher que o procurou no dia anterior e logo na segunda-feira queria a sua demissão para do jornal, povoou sua cabeça. Apesar da raiva que sentia da bacana e as várias tentativas de tirá-la do pensamento, não deixava de observar-lhe as formas e a roupa que estava vestindo no domingo e a que portava naquela segunda fatídica.
“Droga! Que mulher dos infernos! Quer me foder no trabalho, mas fica aqui me enchendo a cabeça! Que merda de lembrança! Tanta coisa boa para recordar nesses momentos de relaxamento e me vem a imagem dessa demente! Cruzes!”. Com esses pensamentos, e lutando com o que povoava sua cabeça, Márcio adormeceu.
Acordou assustado com o barulho do celular. Era uma mensagem de texto: “Espero o doutor repórter no mesmo lugar de sempre. A.” Olhou para o que estava escrito com os olhos embaçados, os esfregando para tentar decifrar nitidamente o que dizia e, com muito sacrifício, entendeu o conteúdo. Imediatamente compreendeu de quem se tratava e mandou outro texto, mas foi devolvido com os dizeres que o número encaminhado não existia.
Olhou para o relógio e viu que havia dormido pouco mais de uma hora e meia. Ajustou o equipamento para despertar às seis horas e voltou a dormir. Novamente a bacana da manhã e do dia anterior voltou a lhe assombrar. “Eita diabos! Essa mulher não vai embora? Fica aqui me assombrando. O que será que ela tem que não me sai da cabeça?” Com essa pergunta, mergulhou novamente no sono, despertando meia hora depois. Passou o olho pelo relógio e voltou a mergulhar no silêncio da casa.
Abriu os olhos antes mesmo do relógio despertar-lhe e viu que já eram 5 e meia da tarde. Amadeu costumava chegar ao bar às seis. “O que será que tinha para lhe dizer? E como tinha conseguido o número de seu celular?” Com esses pensamentos foi ao banheiro, tomou uma ducha rápida para tirar os últimos resquícios do sono da tarde.
Quando chegou ao boteco, que vira restaurante na hora do almoço, Amadeu já estava lá saudando-o cordialmente. “Olá meu caro repórter! Observo que atendestes prontamente ao meu chamado! Todo jornalista é capacho mesmo de sua fonte! Pobre profissão essa sua! Vive fofocando sobre a vida alheia em busca de uma manchete que será usada para limpar a bunda no dia seguinte”.
– Você me chamou aqui pra quê? Pra ficar me ofendendo? E a propósito: como conseguiu o número do meu celular?
– Assim como você, meu caro, eu também tenho as minhas fontes que não revelo nem debaixo do maior açoite.
Depois de afirmar isso, Amadeu deu uma enorme gargalhada e perguntando logo em seguida: “- O moço bebe o que, além de água?”, rindo logo em seguida.
Porém, antes de Márcio, Amadeu respondeu ironicamente. “Cuidado, hein, seu fígado não é de borracha e nem auto-limpante. Não quero ser acusado de levar carolas com pinto para o mau caminho!”.
– Vou beber o mesmo que você! Vou pegar uma garrafa só pra mim!
– Não precisa não! Vamos dividir essa. Assim que acabar pediremos outra e pode deixar que eu pago a conta!
– Tá bom então!
Márcio se sentou à mesa ficando defronte a Amadeu, perguntando novamente o motivo de tê-lo chamado.
Amadeu o olhou bem dentro dos olhos e disse: “- Eu vejo o mundo apodrecendo diariamente à minha frente, sem que eu possa fazer alguma coisa para cessar essa putrefação ou o cheiro que exala de carnes vivas, mas animadas por almas purulentas”
– E daí, pergunta Márcio.
– Daí nada! Estava apenas tentando entender sua cabeça. Estou sabendo que foi enquadrado pela proprietária da moral e dos bons costumes! Soube também que quase levou um ponta pé no traseiro hoje de manhã e se não fosse o seu chefe, tu estavas agora desesperado procurando emprego.
– Do que você está falando, meu amigo?
– Não se faça de desentendido. Tô ligado que foi enrabado logo cedo na redação por conta daquela porcaria que você escreveu ontem como isca para contar uma história que nunca existiu. Apenas na sua cabeça oca recheada deste vírus que anda trepando com os incautos. Mas eu não estou nem aí para ele. Estão dizendo que seremos obrigados a usar máscaras. Eu só aceito se a minha tiver um círculo no meio para eu tomar minhas biritas.
– Não estou sabendo disso não!
– Aliás você não sabe de nada, nem mesmo por que aquela mulher foi te peitar na redação. Pobre homem que pensa saber de tudo, mas no fundo não sabe nem porquê não consegue se relacionar direito com quem quer que seja.
– Amadeu! Deixa de me enrolar com essa conversa empolada, de filosofia de quinta categoria. Por que você me chamou aqui? Tenho certeza de que não foi para beber comigo e nem para me pagar uns tragos. Isso você pode fazer sozinho.
– Por nada! Só queria ver se as porradas que levou de manhã da mandona da cidade tinha deixado sequelas no meu amigo e saber se ele aprendeu a não mexer mais em cumbuca alheia.
Após dizer isso, encheu o copo de Márcio, e olhando para o seu copo, Amadeu disse ao jornalista: “Eu tenho muitos livros para ler, mas poucos amigos, ou quase nenhum, com quem dividir seus conteúdos. Assim acontece com as músicas que gosto. Tenho várias prediletas para ouvir em qualquer momento, mas quase ninguém com quem dividir suas audições”.
– O que isso significa Amadeu?
– Significa que um homem solitário, em meio aos seus livros, precisa ficar atento para não incorporar uma das personagens de seus romances prediletos. Por exemplo, se você adorasse o romance Dom Casmurro, daquele escritor chato que ninguém gosta, mas muitos dizem que já leu e entende aquelas porcarias que escreve.
– Machado de Assis?
– Sim… Esse mesmo! Você bem que poderia se passar pelo maluco do Bentinho e estar sendo atormentado por uma personagem que acredita existir em minha vida. Ou, sei lá, virar o Conselheiro Aires e estar apaixonado pela Natividade, achando que ela é a mulher que comeu teu fígado hoje de manhã lá na sua redação.
– Vamos lá, por que você me chamou?
– Está bem! Vou te contar, mas antes preciso ir ao banheiro e enquanto isso, peça mais uma garrafa de uísque. É por minha conta.
Enquanto Márcio foi ao balcão pegar a bebida, Amadeu se levantou também, indicando que ia ao banheiro, mas quando o repórter lhe deu as costas, saiu rapidamente pela outra porta do bar que fica no caminho para chegar ao banheiro.
O jornalista voltou à mesa sem perceber o ocorrido e ficou bebendo, enquanto esperava Amadeu voltar do banheiro. Ele só foi perceber que tinha sido enganado quando passou meia hora e o seu entrevistado não retornava. Foi até o banheiro e viu a porta aberta. Aquilo o enfureceu de um tanto que ao voltar, só disse ao caixa para anotar o valor do que tinha consumido na conta do Amadeu.