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Márcio chegou em casa, acompanhado de sua garrafa de conhaque e se deu conta de que ainda não tinha escrito nada, apenas as histórias contadas por Amadeu e sem nenhum fio, pegada, parecia enredo de malucos semelhante àqueles contados em salas, cujas paredes eram almofadadas para os pacientes mentais não se matarem.
Sentou-se diante do computador e começou a organizar as ideias a partir das narrativas de seu entrevistado, que eram totalmente desordenadas. Parecia que a vendedora de livros reunia todas as condições para ser a mulher ideal para ele, mas se era por que não falava mais dela? Não tocou mais no assunto daquela noite e nem das outras noites? Não disse nada sobre quem era, quais eram seus desejos mais sublimes? Se se conseguia distinguir beleza externa daquelas vindas do íntimo dela e o que era isso. Será que ficou algum trauma ou ele estava tentando se livrar de um amor não correspondido. De uma coisa, Márcio tinha certeza: o lingerie era a chave para desvendar o cérebro atormentado de Amadeu que escondia a sete chaves algum insucesso que não o deixava pensar com clareza e de onde vinha o dinheiro que ele gastava todos os dias no bar? Onde morava e se tinha família ou não?
Márcio dormiu, sem chegar a conclusão alguma. Durante o sono teve pesadelo estrelado pela colega de trabalho lhe dizendo que era preciso compreender não só ela, mas todas as mulheres do mundo, a partir do jeito que elas andavam, olhavam, sorriam, principalmente as risadas. Quando estavam apaixonadas ou foram surpreendidas por um amor inesperado. O riso era nervoso, pois os cantos da boca ficam repuxados quando davam gargalhadas. Faziam movimentos constantes e semelhantes, olhares perdidos a esmo, sem saber para onde estavam focando seus lindos olhos, sempre sob a perspectiva do futuro amor, mesmo que o ente amado não soubesse.
O jornalista acordou num pulo e gritando por socorro, quando a amiga se transformava em lingerie gigante e começava a enforcá-lo, berrando: “compreenda-me ou sugarei sua alma, macho velho ou aprendiz de homem; bunda mole, frouxo, ser que só pensa com a cabeça de baixo e acha que as mulheres só gostam de pinto de mel”. Ao recordar as imagens do sonho, o Márcio teve um choque, pois seus pesadelos estavam reproduzindo as narrativas de Amadeu. “Preciso concluir logo essa história, do contrário, vou começar a ver mulheres no fundo dos copos e a falar com elas. Coisa de gente amalucada!”
Olhou para o relógio e já colocou a mão na garrafa vazia. Parou, pensou e viu que ainda era cedo para se dirigir ao bar da Net. Então foi preparar o almoço, pois naquela hora não adiantaria tomar café, não sentiria fome no momento adequado. Comida pronta, que consistia em diversos congelados, passou a olhar os jornais numa tentativa de leitura rápida nos leads, ligou a tevê no canal de música, escolheu um livro na estante. Pegou um, pegou outro e nada de se interessar pela história. Achou um finalmente: O viúvo. O exemplar estava amarelado e ficou pensando como foi parar lá em sua biblioteca. Recordou que o achou num lixo numa tarde chuvosa e não queria vê-lo estragar, se desmanchando com a ação das águas. Chegou em casa e cuidou do objeto, como se este fosse um animal de estimação.
Passou apenas os olhos pelas páginas, tentando se concentrar em alguma narrativa, mas sabia que o cérebro não estava armazenando nada. Almoçou e resolveu procurar a livraria que Amadeu disse que comprava livros toda a semana por conta da funcionária, vasculhou o centro da cidade e não encontrou nada. Foi ao supermercado que o seu interlocutor havia dado como referência e descobriu que ele nunca havia trabalhado lá. “História estranha! Como vou escrever alguma coisa, se o supermercado existe, mas o cara nunca trabalhou lá e a livraria não existe”.
Decidido foi para o bar, disposto a saber mais sobre o seu entrevistado. Desta vez Rodolfo disse mais coisas sobre o que sabia de Amadeu. Seguindo garçom, ele não era da cidade. Num dia de lucidez afirmou que havia vindo de outro lugar, assombrado por um amor que lhe custara a sanidade. Ele chegou a vivê-lo, mas a pessoa foi embora sem dizer nada, deixando apenas algumas peças de roupa. Quando o atendente lhe perguntou quais, Amadeu se fechou novamente.
Amadeu chegou, pegou sua garrafa e copo, olhando para o repórter dizendo: “hoje você não me pega! Decidi não falar nada e não vou! Propus um desafio como fez aquele escritor, qual é mesmo o nome dele, não vou dizer nada, absolutamente nada. E se você vir até minha mesa, te dou umas cadeiradas e também no garçom por ele não ter te impedido de falar comigo!”
Para não zangar o homem ainda mais, Márcio ficou onde estava e de soslaio observava os gestos e as manias de Amadeu que bebia, ora tranquilo, ora de forma avassaladora. Acariciava a boca do copo, enfiava a língua dentro do recipiente, fazia movimentos com a língua como se estivesse acariciando a genitália feminina. De repente, ele dobrava a língua como se fosse um órgão masculino e colocava e tirava rapidamente dentro do copo e depois tirava ofegante.
Márcio ficou boquiaberto com as cenas que presenciava e as reações de Amadeu que agia como se estivesse de fato com uma mulher. Inesperadamente, ele perguntou para o copo: “foi bom pra você? Porque pra mim foi excelente!” Como das outras vezes, encheu o copo, olhou para o relógio, virou todo o conteúdo de uma única vez, se levantou e deixou o copo com o garçom lhe dizendo: “Não lhe falei. A mulher hoje estava ótima. Não porque eu a obedeci, mas porque agi como uma mulher, a toquei como ela gostaria de ser acariciada, amada, sem nenhuma pressa e chegamos juntos ao ponto máximo de nossa sexualidade”.
Ao terminar de dizer isso, olhou para o repórter lhe falando: “aprenda a lidar com mulheres. Elas não gostam de ser vistas apenas como vaginas gigantes. Existe vida antes da genitália. Então a descubra e será feliz. Do contrário, ficará sempre na mão. Pode até comer uma mulher, mas jamais a terá de fato dentro do seu coração e ela não o deixará entrar no dela. Ela vai dizer bem baixinho no seu ouvido: “você pode até ter a minha buceta, mas jamais o meu coração”. Até amanhã, meu caro repórter de bosta. Se eu tiver disposto, podemos conversar.