Brasil: do ficcional ao real

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Poderia escrever sobre o quase ministro da educação que, de doutor não tinha nada e também que da outorga de Oficial da Marinha Brasileira tem apenas um curso que forma oficiais para a reserva, conforme há no Exército brasileiro através do CPOR (Centro Preparatório de Oficiais da Reserva), portanto, não é um militar de carreira das Forças Armadas do Brasil, entretanto não vou abordá-lo aqui, até porque muita coisa já foi dita desde a última quinta-feira, quando este foi anunciado como o novo titular da pasta de Educação, porém, não assumiu porque faltou com a verdade num dos pontos chaves para o país, o seu Lattes. Se o meu enfoque hoje não é mais esse imbróglio do Governo Federal em tentar mostrar à sociedade, ou pelo menos ao seu eleitorado a que veio, então qual será o meu enfoque nas linhas que se seguirão? Sempre procuro trazer aqui assuntos que possam proporcionar aos meus leitores momentos para reflexões e, se conseguir, auxiliá-los a transformar informação em conhecimento. Pois bem, se o escopo é esse, então atentar-me-ei a este conteúdo a partir da nomeada da reflexão de hoje.

Começaria por uma tentativa de analisar o país ficcional, isto é, aquele que todos almejam, principalmente se os meus leitores entenderem que este se encontra no mundo das ideias e, seguindo as observações do pensador grego Platão, é lá no ambiente abstrato que sua construção se realiza de maneira perfeita como uma circunferência. Deste modo, desde que o sujeito inicia a sua jornada pelo orbe se transformando de ser biológico em ente social, apreende de seus responsáveis e do círculo familiar, isto é, daquelas pessoas que frequentam seu mundo material, aquilo que Immanuel Kant (1724-1804) chama de vir a ser, ou seja, que ainda não é, mas está latente como vontade potência, conforme afiança outro pensador alemão, Friedrich Nietzsche (1844-1900) em uma de suas obras filosóficas. Seguindo esta chave, qual seja, a de transformar a expressão física do homem em ser social a partir do que se idealiza, não em si mesmo mas como se projeta no outro, no filho, é que será possível pensar no Brasil ficcional, aquele que pode estar nas páginas dos romances, sejam elas de antanho, como fez José Martiniano de Alencar (1829-1877) quando, após romper com o Imperador Dom Pedro II (1825-1891) por conta de questões alusivas ao universo escravista, transportou para seus enredos o que imaginava ser o fim da escravidão: por meio duma relação cordial entre escravizado e escravagista. Há quem acredite nessa hipótese, como fez recentemente um representante da Casa dos Bragança, isto é, herdeiro da carcomida realeza luso-brasileira (1808-1889). Este individuo ousou afirmar que estava tudo bem nas relações sociais entre os cidadãos brasileiros. Equivocou-se em tudo o que disse. Primeiro porque no Brasil, não há povo conforme já aventei em outro lugar, portanto, achar que aqui há homens com capacidade política para decidir o destino da Nação é plainar no universo da ficção e não no âmbito real da existência nacional.

Outro ponto que a “Sua Alteza” errou foi em dizer que não há conflito étnico-racial no país. Talvez ele esteja preso numa das páginas romanescas de José de Alencar. Contudo, se deixar o campo ficcional e percorrer outras páginas alencareanas, se deparará com informações salutares que os instruirá no que tange ao começo dessa sociedade plutocrática e mantenedora duma burocracia aristocratizada que rege com maestria uma sociedade, cujo súditos esperam que tudo caia do alto do trono, coadunando com o que o literato Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) nos apresenta em diversos momentos de suas enunciações, sejam elas romanescas, narrativas breves ou as crônicas. Talvez o representante da realeza luso-brasileira, banida num golpe de espadas na madrugada do sábado, dia 15 de novembro de 1889, ainda esteja lá no Brasil Oitocentista quando o sujeito beijava a mão de seu ancestral na esperança de que este pudesse resolver todos os seus problemas. Naquela época, o plebeu se encontrava numa sociedade estamental de pouca mobilidade social, pois havia o preto escravizado e o branco escravizador, mas existia aquele que ficava com o chicote nas mãos usando-o nas costas do elemento africano por determinação do senhor, porém, fazendo uso do instrumento de forma sádica e prazerosa. Será que a chamada classe média baixa brasileira é o retrato desse feitor, desse capitão do mato tornado capanga nos tempos do coronelismo e miliciano na contemporaneidade? Interessante notar que o escritor baiano Jorge Amado (1912-2001) foi mestre nessa narrativa demonstrando com maestria a força do mandonismo local através das mãos dos capangas. Um exemplo desse universo concreto no ficcional pode ser encontrado no clássico Tocaia grande.

Posto isto, fico aqui com as minhas indagações sobre qual país eu gostaria de encontrar nas páginas romanceadas por diversos escritores, sejam eles de outrora ou do presente como a carioca Adriana Vieira Lima, Aline Bei, Marcelo Vicintin, Rodrigo Lacerda. E o que dizer da filósofa Djamila Ribeiro? Quais são as contribuições destes ficcionistas contemporâneos, incluindo aí o jornalista Fernando Molica, autor do romance Bandeira negra, amor? Será que suas enunciações, a exemplo de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) e outros como Aluísio Azevedo (1857-1913), contribuem para pensar o país real a partir da ficção? Se eu for pensar o universo literário tendo como pressuposto o que afirma o pensador italiano Riccardo Mazzeo, ou seja, de que ela “é em si ambivalente, metafórica e metonímica”, diria que tudo e nada ao mesmo tempo, pois os enredos, assim como o ato da leitura, dizem respeito à personagens que existem apenas na sua literalidade e expressividade artística do autor que constrói suas histórias se utilizando de diversos narradores dúbios, ousados, ou simplórios, mas que se propõem a enunciar suas vivências. Desta forma, ao terminar por exemplo, o romance Crocodilo, de Javier A. Contreras, tem-se a sensação de que foi apenas um enredo consumido nestes tempos pandêmicos? Creio que não, pois há muitos pais semelhantes ao jornalista Raul que não sabe onde perdeu o filho que comete suicídio. Quanto conclui a leitura, procurei compreender, a partir da obra Suicídio, de Emile Durkheim (1858-1917), quando esse ato de ruptura que o sujeito social comete fora do universo ficcional foi provocado por uma anomia social, antes que seja um problema psíquico. Também fiquei tentado a entender, por exemplo, quando, no livro O fazedor de velhos 5.0, o narrador Pedro conta sua história cinquentenária de viúvo com dois filhos para torná-los cidadãos, tenta entender porque o primogênito desaparece momentos antes de a mãe vir a óbito vitimado por um câncer.

Enfim, essa é a parte ficcional que pode muito bem ser lida levando em conta o ponto de vista de cada leitor que, quererá ou não abrir portas dentro de si, muitas vezes trancafiadas a sete chaves. Mas, e no que diz respeito ao Brasil concreto, aquele em que as personagens ficcionais, muitas vezes, são inspiradas em seres reais? Será possível lê-lo a partir de textos significativos como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), no qual o leitor encontrará algumas definições importantes para se pensar o brasileiro enquanto integrante de uma categoria social que se encontra bem no meio da pirâmide social, ou seja, a famosa classe média e suas mobilidades para cima e para baixo, isto é, média alta e média baixa? Interessante notar que o pensador brasileiro, nesta obra cria o conceito de bovarismo que expressa a tendência de muitos indivíduos apresentarem comportamentos marcados pelo desejo de fustigarem as próprias realidades, imaginando para si personalidades e condição de vida que não são possuidores. Será que a observação do estudioso tem fulcro no presente? Será que o ex-ministro da educação Carlos Decotelli se enquadra nesse conceito bovárico?

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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