Vidas sociais em decomposição

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Meu caro leitor, o que acontece com o mundo neste exato em que tu lerás as linhas que se seguem? Por onde eu ou você começaria a responder significativa interpelação para esta primeira semana de junho? Posso te afiançar que terá muito trabalho aquele que tentar encontrar uma saída para o caldo efervescente que se tornou o mundo a partir do momento em que o afro-americano George Floyd foi assassinado, por meio de asfixia, por um policial norte-americano branco [optei por não citar o nome do algoz por entender que pelo seu ato, não merece figurar aqui em minhas reflexões, já a vítima sim, pois, se cometeu algum crime, a sentença não deveria ser a pena de morte aplicada por um soldado]. Mas será que foi somente essa morte elemento suficiente para explodir o Planeta, já desorganizado pelo Covid-19 e pelas crises sucessivas no universo do capitalista financeiro? Claro que entender a situação global ajuda a compreender esse momento delicado que a humanidade enfrenta e as revoltas aqui e acolá tendem a se intensificar, justamente por conta do aumento das desigualdades sociais no mundo, provocando a volta das apostas messiânicas em líderes farisaicos. Resta saber quem são os apostadores dessas práticas nefastas que levaram a sociedade global a um conflito bélico na primeira metade do século XX e a ascensão de líderes totalitários aos poderes em suas respectivas nações: Adolf Hitler (1889-1945), na Alemanha; Josef Stalin (1878-1953) na ex-URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas); Benito Mussolini (1883-1945) na Itália. E quando a sociedade se imagina livre de tais credos antidemocráticos e fascistas, eis que as condições sociais nestas duas primeiras décadas do século XXI foram capazes de criar situações para que novas mentalidades com esse tipo de posicionamento político eclodissem aqui e alhures, conforme os pensadores Timothy Snyder e Yascha Mounk, nos apresentam em seus respectivos livros Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas e O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Ambos os textos foram publicados no Brasil em 2019, portanto, primeiro ano do atual governo brasileiro, o que permite uma significativa reflexão que começo aqui a partir de uma conversa com uma amiga norte-americana que conhece um pouco a História brasileira.

Ela me perguntou por que a morte de um afro-americano foi capaz de causar uma comoção quase que global e no Brasil, os assassinatos seguidos de negros por parte das autoridades policiais não subleva as categorias sociais mais baixas da nossa sociedade que vivem à margem de basicamente tudo o que o Estado oferece, além de ser a que mais está sofrendo com a pandemia interna, que tende a ampliar o número de infectados e mortes nos próximos dias, tendo em vista a equivocada tomada de temerárias decisões, conforme indicam diversos cientistas sociais, biológicos e pesquisadores das mais variadas nuanças e infectologistas. Afirmei-lhe que antes de tentar pensar no presente, faz-se necessário uma busca lá no passado das duas nações, começando pelo processo de colonização e as matrizes ou ethos formador dos dois países. Se ela preferir, em quais éticas o Brasil e o EUA foram forjados. Enquanto nas colônias americanas, o trabalho era entendido como forma de agradecer a Deus pelo dom da vida e ascese enquanto ferramenta para se ampliar os ganhos materiais como sinais de que o sujeito portador de tais bens herdaria o paraíso depois de morto, nas colônias lusitanas da América o trabalho era visto como algo maldito, uma danação dada por Deus ao homem por este ter lhe traído a confiança. Soma-se a isto o fato de que ambas as colônias estavam escudadas no trabalho escravo, contudo, a comparação neste quesito econômico termina no campo da exploração do elemento africano, pois ao sairmos desta égide e partindo para a extinção desse processo, se sabe que nos Estados Unidos o fim do escravismo provocou a Guerra de Secessão entre o Norte desenvolvido e o Sul subdesenvolvido e agrário. Se lá houve um conflito fratricida, aqui a coisa não passou de uma festança no final de semana iniciada naquela manhã de sábado, 13 de maio de 1888, quando o singelo decreto colocando fim ao escravismo e assinado pela regente Princesa Isabel foi publicado na imprensa carioca e espalhada pelo resto do Brasil.

Entendo que aqui, entre nós, o fim do trabalho servil não foi uma conquista dos africanos e seus descendentes, mas uma concessão do Estado Monárquico que, acossado pelas nações europeias entre elas a França e a Inglaterra, acabou eliminando um dos períodos mais abjetos da sociedade brasileira que perdurou por mais de três séculos deixando resquícios até hoje. Os fortes fragmentos podem ser observados pelos números descendentes de africanos assassinados pelos aparelhos repressivos de Estado, como dizia o pensador francês Louis Althusser (1918-1990). Sendo assim, se o fim do servilismo nas duas Nações foi diferente, inclusive com suas matrizes colonizadoras, o homem do século XXI não poderia esperar resultados diferentes dos atuais quando um afro-americano é esganado pelo joelho de um policial branco que, enquanto mata a sua vítima, se exibe para os holofotes e, aqui nas terras brasileira, um adolescente negro é metralhado pela Força Pública – não podemos esquecer que essa é a mesma polícia que matou um homem e o governador fluminense festejou como se seu time do coração tivesse marcado um gol de placa. Ou seja, nos EUA a coisa está fervilhando, espalhando pelo mundo, enquanto aqui o país se esfarela nas mãos de uma camarilha política que deu provas de que não possui compostura para estar ocupando os cargos que assentam nas esferas federais, mas que, vociferou ontem que seria a voz do combate à corrupção, entretanto, hoje se deleita com o que há de mais corrupto no Congresso Nacional – tudo bem, o pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) no capítulo 18 do clássico da ciência política, O príncipe afirmava que ao governante não é necessário a manutenção da palavra dada durante a campanha eleitoral. Resta então à patuleia que o escolheu decidir se continua defendendo-o, apesar da grande mentira ou conscientizar-se politicamente.

Se por um lado, o brasileiro se vê escorchado pela categoria política e acossado por um vírus rastejante, o resto do mundo engrossa a fileira daqueles que marcham contra o racismo, pois ele é real e macula o espírito – e aqui não é aquela entidade individual que as religiões ocidentais costumam enfatizar, mas sim a unidade de uma determinada comunidade – de um povo que não pediu para vir à América e nem ir à Europa: foi levado como mercadoria e ultrajado por indivíduos que se acham mais humano do que outros, justamente por suas peles não apresentarem quantidade suficiente para protegê-los da radiação solar. O lamentável que essa movimentação do africano enquanto produto que deveria gerar valor, contudo, não receber nada por isso, exceto a comida e a chibata quando se rebelava contra as condições de sevicias em que vivia, permanece no presente. Na América, há o levante contra essa estrutura viciante, aqui o açoite chega todos os dias em forma de vilipendio, desprezo, péssimos salários, ausência de futuro para muitas crianças, adolescentes e jovens que, sem conseguirem produzir para si referenciais de sucesso, vivem no submundo e escombros duma sociedade que se compraz com a violência diária. Daí fico pensando naquilo que o atual chefe do Executivo disse numa reunião que desejava armar a população, quando muitos clamam por uma educação e condição dignas de existir. Eis o filho Thanatos gerando o pai, o Caos.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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