Vidas consumidas pelo tempo congelado

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Por onde começar a reflexão de hoje, meus caros leitores? Escrever sobre o Covid-19 não dá, pois tem muita gente tratando da temática e de sua letalidade. Escarafunchar os bastidores do Governo Federal e escancarar o que há de podre no subsolo do poder central também não, já que outros tanto já sabem da guerra fratricida, do investimento pesado na manutenção do ódio e da maléfica divisão entre o “nós” e “eles” que vem apequenando o Brasil nas duas últimas décadas e, quem acompanha a história recente da Nação, tem consciência do que estou dizendo. Então não sobrou quase nada para ser narrado aos meus leitores semanais, a não ser que tratemos de versos, poemas, enunciações, crônicas e romances que podem dizer um pouco mais sobre nós, seres – que estamos tentando a uma infinidade de tempo – humanos.

Já que estou sem tema alguma para encantar os que leem as linhas que estampo aqui todas as quintas-feiras, acho que vou enfocar o tempo: essa figura enigmática que para a maioria da população mundial ficou suspensa, portanto, desmontando o argumento apresentado pelo pintor surrealista espanhol Salvador Dalí (1904-1989) no famoso quadro “As horas moles”. Se os relógios, quiçá suas onomatopeias marcarem o compasso do coração de cada um e atiçando a ansiedade de outros, estão meio que adormecidos enquanto o vírus e sua letalidade rastejante batem às portas, como naquelas histórias contatas para as crianças antes de dormirem, dizendo que um ogro iria abrir a porta da casa, caso elas não adormecessem. Bem! Aquele tempo já se foi, mas o bicho papão está lá fora, então, enquanto não passar o risco pandêmico, se pudermos, fiquemos em casa! Mas não era sobre isso que pretendia escrever hoje, mas da suspensão do tempo e a possibilidade de contarmos nossas historietas e como as vicissitudes da vida podem ter forjado o caráter, a consciência, as noções de ética e moral da maioria dos cidadãos que se digladiam hoje entre o que abre e o que fecha na economia, mesmo que a morte esteja bafejando na próxima esquina.

Mas, enquanto a peleja não foi vencida por um dos lados e o Covid-19 segue amedrontando tudo e a todos, independentemente da categoria social, credo religioso, etnia e gosto cultural já que o SUS (Sistema Único de Saúde) é para todos, vou dividir com meus leitores uma passagem do romance O cortiço, do escritor naturalista Aluísio Azevedo (1857-1913). Há uma questiúncula, entre tantas outras entre os encortiçados, em que um dos moradores, que é policial, tenta resolver a peleja, porém, durante as conversações, o soldado está, como se diz no jargão policial à paisana. Diante da impossibilidade de equacionar o impasse, o mediador vai para dentro do seu quartinho e veste a farda, retornando para solucionar o problema. É interessante esse trecho da enunciação, pois qualquer que seja o fim que deu à rusga, devemos ressaltar a importância que a indumentária tem para quem a usa e aos seus interlocutores. Talvez essa pitoresca narrativa, possa explicar porque, apesar de 25 anos de sucessivos governos militares, em que a liberdade era cerceada, as pessoas ainda apelam para os homens fardados, como se estes pudessem solucionar questões de fundamento, de alicerce da própria sociedade brasileira. Até quando o brasileiro médio terá medo da democracia, optando por alimentar o ódio, querendo que as Forças Armadas equacionem situações que eles mesmos, eleitores, criaram?

Usando esse enredo, juntamente com outro que está presente no conto O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana, escrito por Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), tento entender o indivíduo individualizado a partir da farda que ele utiliza para viver em sociedade. No enredo machadiano, a personagem Jacobina se traveste de alferes e fica diante do espelho recordando os tempos passados naquela fazenda e tudo volta à tona: um passado de violência escravista, entre outras sevícias. Vale a pena percorrer aquelas poucas páginas e buscar compreender porque o isolamento social a que todos estão incumbidos de cumprir tira-nos justamente o uniforme que usávamos para existirmos na coletividade. Dentro de casa, o que fica é a conversa com o espelho, mas aquele objeto tão encantador dos contos de Fada, em que a madrasta pergunta “espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu no reino?” Pois bem! A pandemia faz com que todos os narcísicos de outrora convivam consigo mesmos e alisando-se a partir do lago que reflete a própria imagem, a exemplo do que aconteceu na mitologia grega em que a personagem se apaixona pelo que a fonte reflete: o outro seu que está em si.

Bom! Como ninguém gostou do que enunciei até aqui, acho que posso pular à outra historieta para que o tempo lá fora não seja tão devorador de consciências dentro das próprias residências. Ocorreu-me aqui um filme, cuja tradução para a Língua Portuguesa passou a ser “Um sonho de liberdade”. Sem mais delongas, o enredo fílmico é sobre um banqueiro, da região do Maine (EUA), condenado a duas prisões perpétuas que seriam cumpridas uma após a outra – louca a dosimetria, levando em conta que o sentenciado só tinha aquela existência. A pena foi aplicada por pesar sobre ele a acusação de ter assassinado a mulher e o amante dela – não vou adiantar os fatos, mas apenas me atentarei para um diálogo no qual o prisioneiro diz ao seu interlocutor e melhor amigo de cárcere, existirem duas coisas que se deve fazer na vida: se ocupar em viver ou em morrer. Lógico que ele estava falando não de óbito do físico, mas a ação de deixar de lutar e de construir sonhos para o amanhã. O diálogo me proporciona seguidas reflexões e acho que o momento de confinamento é propício para esse tipo de ação mental: pensar sobre o ontem, como se era e porque se era e, caso fosse possível, dialogar com aquele do ontem responsável pelo ser do hoje. Interessante notar que o indivíduo individualizado do presente seria outro, mas, meus caros leitores, não é possível mudar o passado, exceto aprender com ele e se ocupar em viver a partir da próxima aurora e também quando o vírus nos permitir a isso.

Sendo assim, enquanto o relógio segue manquitola na parede, pois o de pulso não tem sentido algum quando estamos todos fechados em casa, revisitando fotografias já amareladas pelo tempo, ouvindo os antigos LPs e os chiados das agulhas de cristais ou diamante, conversemos sobre o vir a ser da humanidade, como desejava o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), no qual todos atingem a maioridade crítica. Será que um dia a humanidade atingirá esse estágio em que o sujeito debaterá com seu semelhante, usando critérios racionais e pouco emotivos? Esse é o momento em que o tempo está congelado à espera de que os cientistas encontrem uma saída para os males provocados pelo Covid-19, pelas mazelas sociais oriundas de relações senzaleiras que há muito deveriam estar extintas de nossa convivência. Nas três ficções que utilizei em minhas narrativas hoje, fica-nos a certeza de que, do ponto de vista literário, é possível construirmos sujeitos que conseguem ser, ao mesmo tempo, entes racionais e emocionais, sabendo controlá-las para que uma não sufoque a outra e desta forma, criarmos uma ética racional de solidariedade. Posto isto, ultimo essa reflexão com a seguinte interpelação: por que é tão difícil ser solidário com aquele que padece de diversos infortúnios? Por que o dito popular “meu pirão primeiro” continua tão forte em nossa sociedade, repleta de igrejas disso e daquilo e cristãos aos borbotões, mas incapazes de se confraternizarem nesse momento em que o caos na saúde parece ser maior do que qualquer peleja ideológica?

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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