Gostos e cores

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Ontem o dia foi dedicado à Consciência Negra, quiçá aqui em Penápolis, contrariando o que ocorre em muitas cidades brasileiras ser feriado, o dia foi de expediente normal. Até aí nada de mais, exceto o fato de o Brasil não conseguir se livrar das marcas indeléveis deixadas pelos mais de três séculos de escravidão – dezenas de décadas em que o elemento africano foi tratado como mercadoria, sofrendo diariamente a sua desumanização por parte de senhores empedernidos e da sanha violenta de seus capatazes. Por isso, faço a seguinte pergunta aos meus leitores: há alguma coisa para se comemorar? Eu creio que não, pois a luta permanece na medida em que a Nação tem por hábito não valorizar o trabalho alheio, justamente por conta desse passivo escravagista, além de esbravejar aleivosias, segundo as quais, o país não é racista. No entanto, os números mostram: a maior quantidade de jovens mortos pelos aparelhos repressivos de Estado é de negros, ou melhor, afrodescendentes – explicarei porque entendo ser necessária a mudança de forma de tratamento quando for se direcionar um descendente de escravo.

Há algum tempo publiquei nestas páginas um texto no qual propunha uma reflexão a partir do adjetivo negro, observando o quanto esse termo não diz respeito à etnia e nem raça [conceito criado pela ONU no final da 2.ª Guerra Mundial, mas consumido pelo tempo, portanto, ultrapassado], mas sim condição de sujeito social, isto é, de marcador social. Para tanto, nomeei aquele artigo a partir dum jogo textual através da grafia atrelando noite e negro: Negra era a noite. Pretendia informar os meus leitores, daqueles tempos, que o adjetivo negro quando utilizado para se referir aos africanos não dizia respeito ao pertencimento étnico ou país de origem e sim a situação em que os mesmos foram mantidos por mais de três séculos: em cativeiro, sendo observados por capatazes, capitães do mato e escravagistas como indivíduos inferiorizados em suas múltiplas condições e, em virtude disso, deveriam ser explorados até a morte! A partir dessa reflexão, é possível entender que o indígena, ao contrário do que aconteceu na América Espanhola, aqui não foi mantido em cativeiro, pois essa ação não renderia dividendos à Coroa que precisava colonizar suas terras recém-descobertas no continente longínquo ao europeu. Em função dessa problematização, é interessante o estudo da História da África pelos estudantes brasileiros. Há diversas experiências pedagógicas nesse sentido, sempre objetivando inculcar, nos futuros adultos, conhecimentos buscando minimizar, o quanto possível, o preconceito contra os descendentes de africanos escravizados aqui no Brasil.

É interessante notar aqui que o cidadão não nasce preconceituoso, mas se torna a partir do meio em que vive e durante o processo de socialização primeira, conforme as Ciências Sociais se ocupam em explicar aos estudantes secundaristas das escolas públicas e também aos alunos do segundo ciclo do ensino fundamental em diversas unidades educacionais privadas e também discentes universitários. Bom! Se as crianças não escolhem os amigos de brincadeiras pelas tonalidades de suas peles, quem é então que introduz em suas consciências as mais diversas formas de preconceitos contra os descendentes de africanos? Há aqueles pais que, querendo culpar tudo e a todos pelos malogros dos filhos em suas fases adultas, acabam dizendo que foi influência da escola e dos amigos, quando na verdade, a situação é bem outra, pois o pré-conceito difundido em sociedade surge dentro dos lares, onde o ser humano dá seus primeiros passos em direção à sua socialização [não confundir com socialismo] e suas sociabilidades. Esse é um elemento importante a ser analisado, já que o sujeito social tende a responsabilizar a sociedade por todas as ações negativas que seus filhos praticam, entretanto, quando estes realizam coisas maravilhosas, aí sim, aprenderam com os pais.

Pois bem: se o preconceito não é inato ao indivíduo, mas infundindo durante as fases em que a criança esteja passando pelo aprendizado em que se constituirá enquanto ser e não na condição de ter, então é possível mudar os rumos que o Brasil vem indicando, ou seja, reduzir consideravelmente o número de pessoas que se acham mais humanas do que outras por conta da tonalidade de suas peles. Indicando assim, parece ser tarefa fácil, mas não é por conta da representação que se tem e os estigmas que os brasileiros de peles escuras carregam em seus ethos formadores, isto é, o peso dos grilhões e as chibatadas que seus ancestrais receberam de empedernidos escravagistas que, além de surrarem impiedosamente os cativos, estupravam as mulheres humilhando-as de todas as formas, inclusive comercializando seus filhos como se estes fossem mercadorias que deveriam render dividendos aos seus proprietários. Essa é uma das heranças que não tem projeto de inclusão, sistema de quotas que elimina: a única alternativa é a resistência, sempre e cada vez mais ocupando espaços que os descendentes de europeus creem serem seus apenas por terem peles mais claras, ou melhor, sem melanina, ou seja, ausência de pigmentação. É justamente nesse ponto que eu recupero um outro texto publicado aqui enfocando o fato de que os descendentes de africanos precisam ter consciência de os sê-los e essa conscientização se concretiza como ferramenta de resistência a todo tipo de exclusão que os pretos estão sujeitos diariamente no Brasil.

É importante acrescentar aqui que, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mais de 50% da população brasileira se autodesignam como pretos ou descendentes de africanos. Isso é uma vitória, mas também escancara outra problemática, já que o país é um dos maiores do mundo em termos de exclusão social e concentração de rendas, sendo que os pretos, em sua maioria, nos grandes centros e cidades médias e pequenas habitam as margens das áreas urbanizadas, daí a compreensão de populações marginalizadas e as múltiplas interpretações que o termo “periferia” ganha e a ideia de território e lugar. O primeiro indica espaço físico e o segundo definição de identidades. Neste sentido, a questão passa a ser mais emblemática, pois conforme apresenta o romance O cortiço, Aluísio Azevedo (1857-1913) e posteriormente Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), os pobres e desterrados dum sistema aviltante, tiveram como destino as encostas dos morros e posteriormente com o empobrecimento de uma classe média – até hoje teme sua pauperização e equiparação com aqueles que foram surrados violentamente durante a escravidão – foram obrigados a subirem os morros, substituindo os cortiços fétidos e repletos de animais peçonhentos derrubados para dar às cidades ares de modernização, conforme ação do prefeito do Rio de Janeiro, Cândido Barata Ribeiro (1843-1910) e sua ação contra o cortiço Cabeça de Porco.

Enfim, o que havia para se comemorar ontem? Muitos dirão que sim, pois o Brasil é um país miscigenado, portanto, de múltiplas cores, credos e ideologias religiosas, entretanto, isso não significa que o mesmo não seja racista, quiçá os sabores que os comensais encontram em seus jantares, almoços e cafés da manhã e chás da cinco, recheados com os condimentos indígenas e africanos que dão paladares especiais aos pratos servidos aos escravagistas pós-modernos que se recusam a valorizar o trabalho de seus funcionários, pois acreditam que qualquer um pode desempenhar as funções e, quando essas forem mais complexas, um descendente de africano, quiçá sua qualificação, não é apto, pois há o filho de fulano que é branco que precisa ser empregado, enquanto ao negro sobra o rodo, a vassoura e o balde. Triste a realidade deste país que, em pleno século XXI, ainda campeia o escravismo. Sendo assim, esta Nação pode ser considerada como uma Nação Liberal, Capitalista ou neoliberal? Creio que não, pois a favela é a senzala pós-moderna.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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