Deslindando a desigualdade social

Gilberto Barbosa dos Santos

 

“-Professor, se quase 60% dos brasileiros se intitulam descendentes de africanos escravizados no Brasil, por que o país é um dos maiores do mundo em desigualdade social?” Eis a pergunta que um aluno me formulou quando ministrava aula sobre matrizes culturais brasileiras. A partir daquele momento, tentei encontrar caminhos que pudessem levar os meus estudantes a compreender o país em que vivem, sem fazer proselitismo ou coisa que o valha, já que o ofício do docente é auxiliar os discentes a transformarem informações em conhecimentos. Tendo esses pensamentos pedagógicos como premissa, me coloquei ao trabalho de explicar algumas razões que levaram o Brasil a ser um dos países mais excludentes do orbe terrestre e, como creio que o conteúdo é alvissareiro, o dividirei com os meus leitores semanais daqui desta página e do meu site www.criticapontual.com.br.

De maneira sintética, iniciei a atividade lhes perguntando qual é o lugar do afrodescendente na estrutura social brasileira? “- Onde ele quiser, professor!”, me respondeu um aluno. Achei significativa essa afirmativa, entretanto, ela só tem sentido se for observada a partir da perspectiva da legislação, ou seja, da Constituição Federal, segundo a qual todos são iguais perante ela, a lei máxima da Nação. Se isso é fato, por que esse preceito não se concretiza? Raízes históricas podem trazer aos interessados alguns indicativas. A primeira diz respeito aos marcadores sociais que os descendentes de africanos são portadores, incluindo aí o “lugar” em que residem, pois são definidores de identidades e determinantes através de suas variantes linguísticas, como por exemplo, as expressões que usam em seus cotidianos que produzem significativos estigmas quando seus portadores entram em contato com outros sujeitos sociais que habitam outras “lajes” e casarões que, mesmo fazendo parte do que se chama periferia, não pertencem aos rincões de miseráveis em que a maioria dos africanos alforriados foram jogados depois daquela manhã de sábado, 13 de maio de 1888, quando a imprensa carioca trazia estampada em página principal a Lei Áurea que colocava fim ao escravismo brasileiro.

Muitos dirão que aquela pequena lei proporcionou Justiça, contudo, um exame mais detalhado, indicará que concedeu ao espoliado africano apenas o direito de ir e vir, já que, mesmo estando, o liberto tinha o vácuo estomacal a lhe incomodar. Também haverá outros que afirmarão que, ao recém-liberto foi lhe dado como garantias permanecer nas terras e nas residências em que até na sexta-feira, 12 de maio de 1888, exercia suas atividades laborais na condição de escravo, tendo uma negra existência Quem observa a situação desta magnitude, creio que vale uma reflexão: quem permaneceria em um local, mesmo trabalhando recebendo um miserável salário, sabendo que naquele espaço foi açoitado, humilhado, as mulheres violentadas por sádicos escravagistas e seus capatazes? Thomas Hobbes (1588-1679) em seu clássico Leviatã explica, do ponto de vista biológico, que aquele que é açoitado, violentado em sua condição humana, tende a armazenar dentro de si o desejo de revidar, ou seja, devolver aos seus algozes os males sofridos na carne. Alguns dirão, pautando suas observações em algumas análises que Aristóteles fez em sua obra Política que o homem escravizado deve compreender que nestas condições, o escravizador tem como escopo civilizá-lo. Essa questão pode ser problematizada, conforme eu já fiz num artigo científico no qual analiso um romance de José Martiniano de Alencar (1829-1877): O tronco do ipê. O trabalho intitulado O sentido da escravidão em O Tronco do Ipê, de José de Alencar pode ser acessado gratuitamente a partir do endereço: https://periodicos.fclar.unesp.br/semaspas/article/view/8346.

Pois bem! Alforriado o escravo, a pergunta que as autoridades se faziam, antes mesmo do ato político – nada benevolente da regente Isabel – era: o que fazer com essa massa de ex-escravos, em sua maioria broncos, sem instrução alguma, já que foi trasladada para cá apenas para servir de mercadoria a ser explorada até a exaustão física? Há diversos trabalhos dando conta de que não havia nenhum projeto, advindo do governo imperial, objetivando absorver os escravos no trabalho assalariado nas nascentes indústrias e até mesmo na lavoura. Preferiu-se dar apoio financeiro, logístico ao elemento europeu, isto é, ao imigrante, enquanto ao negro alforriado apenas a rua e a miséria os esperava e, para fugir dessa sina maléfica, aceitava-se trabalho de toda estirpe, de acordo com o que enuncia Aluísio Azevedo (1857-1913) a partir de seu romance O cortiço.  Desta forma, é possível compreender o “lugar”“coloque-se em seu devido lugar” – que o africano ocupou na nascente sociedade capitalista brasileira dos fins do Oitocentos. Esses são fatos registrados pela nossa História e fartamente analisados pelos cientistas sociais brasileiros e outros brasilianistas.

É desse “lugar” – definidores de identidades – que os descendentes de escravos vêm tentando a ferro e fogo quebrar os marcadores sociais que os atrelam a um passado de dor, violência, sevicias e outros tipos de agressões a que estavam sujeitos desde a mais tenra idade. Sendo assim, é necessário dar uma olhada, mesmo que laconicamente se, ao ex-cativo, foi concedido o direito de ir à escola no afã de se qualificar como futuro proletariado urbano ou rural? Claro que não! Mas aí é possível estender essa negação aos “brancos” que não eram escravagistas, contudo, esses não tiveram adjetivações definidas pelos seus pertencimentos étnicos, ou melhor, estereotipadas e estigmatizadas pela tonalidade da pele e também, suas raízes culturais não foram violentadas em suas integralidades por determinações advindas duma igreja que, quiçá o fato de afirmar que todos são irmãos e filhos de Deus, fez vistas grossas para a violência perpetrada por empedernidos escravagistas à sua escravaria, chegando inclusive a ter cativos em terras brasileiras. Entretanto, deixo os aspectos religiosos para outro momento, e me concentro na resposta que tentava passar aos meus alunos.

Se, ao descendente foi negado o direito à instrução, mínima se quer, como este poderia se livrar dos grilhões que o atavam aos troncos e senzalas espalhadas pelo interior do Brasil? Se o africano não conseguia se desvencilhar desse passado “negro”, o mesmo se pode dizer daquele que até a manhã de 13 de maio de 1888, se dizia dono dos destinos de milhares de seres humanos e não pagava se quer um centavo pelo trabalho realizado pelo africano, acreditando que este viera ao mundo para lhe servir sem receber pecúnia nenhuma e, caso se recusasse a ser violentado em sua condição humana, o corretivo era feito por chicotes e impiedosos capatazes e seus capitães-do-mato. Bom, foi-se a senzala, o tronco, o chicote e o açoite, mas permaneceu o hábito, conforme Machado de Assis (1839-1908) indica em seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas, mais especificamente no capítulo IV Ideia fixa – meu caro leitor, visite esse romance ou pelo menos leia esse pequeno capítulo para que tu tenhas ideia do que tentei passar aos meus alunos que coadunaram, corroboraram com a interpelação feita por um colega. Quando cheguei nesse ponto da explicação, o sinal indicando que a aula havia terminado, contudo, prometi aos meus pupilos que retomaria o assunto num próximo encontro. Creio que eles estão esperando, porque a temática é alvissareira para que todos possam pensar o país do amanhã conhecendo o seu ontem. Pois bem, espero que seja esse também o desejo dos meus leitores semanais: compartilhar com eles as explicações passadas aos meus estudantes.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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